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Por princípio, sou contra programas como The Voice KidsMasterchef Kids e que tais. Não me venham dizer que os que por lá desfilam são fofinhos, inocentes, que cantam e/ou cozinham com a alma e blá blá blá. Nem se apressem simplesmente em me tachar mero chato, estraga-prazeres, #diferentão.

Os cantos das crianças, afinados até demais, as feições emocionadas dos jurados – certamente bastante ensaiadas – e as lágrimas de ambos, concorrentes e jurados, nada é capaz de tocar e amolecer meu coração de pedra, perdoem-me a fra(n)queza.

O que percebi, vendo alguns poucos minutos do certame musical mirim televisionado é que as crianças ali perdem sua inocência e pureza: são tão ensaiadas que chegam a opinar com desenvoltura até sobre a questão indígena brasileira. E certamente saberiam, caso instigadas, comentar política, economia, o impeachment da presidenta, o crime de lesa-humanidade cometido pela Vale/BHP Billiton/Samarco em Mariana (MG) e por aí afora.

Crianças devem brincar e estudar – e nisso, consequentemente, desenvolver habilidades. Expô-las a competições e aos constrangimentos inerentes, ainda mais transmitidos simultaneamente pela TV para outros milhões de terráqueos, é algo que não consigo conceber.

Alguns hão de argumentar que o mundo é assim mesmo e que, na seleção “natural”, quem não pisa na cabeça dos outros será engolido, tentando justificar, talvez, que, por isso, é necessário que mais e mais cedo crianças entrem no jogo – literalmente. Sinceramente, não creio. Crianças não são miniaturas de adultos, como no anúncio que abre/ilustra este post, da Revista da Semana de 19 de março de 1918, que roubei daqui.

Imaginem os danos psicológicos que uma derrota, ou mesmo um comentário mais ácido (e/ou cretino) de um jurado, pode causar em uma criança. O mundo já é por demais cruel e não precisamos antecipar o ingresso dos petizes nesta trágica realidade.

A meu ver reality shows mirins são uma forma bizarra de os pais realizarem alguma frustração: um sonho abandonado em prol de alguma questão prática é realizado num filho, seja lá por vaidade, os 15 minutos de fama, ou mesmo a sobrevivência – quanto rende, ainda que temporariamente, um talento revelado por um grande canal de tevê? Outro problema disso é que pode pintar aí uma nova frustração, desta vez redobrada.

Pai recente e de primeira viagem, preocupo-me naturalmente com os rumos que ofereceremos ao guri. Como livrá-lo da miríade de horrores propagada pela mídia convencional e/ou sob demanda, sem prendê-lo numa bolha, sem sermos extremamente superprotetores?

É claro que quero que ele experimente se arriscar a tocar um instrumento musical, praticar esportes, aprender línguas estrangeiras: ter as possibilidades. Mas não quero simplesmente impor-lhe estes anseios, como um “diferencial de mercado”. Antes, é preciso deixá-lo à vontade para escolher o quê e quando fazer, aproveitando as coleções de “vícios antigos” do pai – respeitando-lhe os tempos, escolhas e abdicações.

O que me incomoda em reality shows mirins é também o que me incomoda em reality shows adultos: muito show e pouca reality. Todo mundo ensaiadinho buscando as cifras milionárias da premiação. A vantagem dos segundos em relação aos primeiros: os participantes já estão bem grandinhos e podem decidir seus destinos por si mesmos. O que vão fazer com a grana do prêmio, eventuais contratos descolados a partir dele, se vão posar nu/a/s ou não só lhes diz respeito.

Dos males o menor em relação aos problemas que afligem nossa infância? Certamente. Num país em que crianças são assassinadas no colo da mãe, escravizadas ou exploradas sexualmente, ou sucumbem às drogas e ao crime, sua exibição musical-televisiva nem chega mesmo a ser problema.

Esses outros casos, citados aqui de raspão, constituem o verdadeiro show de realidade que infelizmente ainda persiste no Brasil. A este reality show nos negamos a assistir.

 

(Texto publicado originalmente no blog Homem de Vícios Antigos, de Zema Ribeiro.)

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Zema Ribeiro é jornalista. Homem de vícios antigos, apresenta o programa Balaio Cultural (sábado, das 13h às 15h, com Gisa Franco), na Rádio Timbira AM. É coautor do livro "Chorografia do Maranhão" (Pitomba!, 2018, com Ricarte Almeida Santos e Rivânio Almeida Santos) e autor de "Penúltima Página: Cultura no Vias de Fato" (Passagens, 2020). Pai do José Antonio, vive em São Luís do Maranhão. Antifascista.

19 COMENTÁRIOS

  1. Tenho um filho de 9 anos de idade campeao nacional de Taekwondo nos EUA. Ele e’ americano. Isso exige dele 2-3 horas de treinos diarios e tudo indica que um dia ele vai representar os EUA Nas olimpiadas. Um dia, ele chegou em casa e disse q nao queria mais. Conversamos p saber se essa era a vontade dele ou se algo mais havia acontecido. Enfim. Era a vontade dele. Tudo bem entao. E essa e’ a diferenca. Nao vou forca-lo a fazer algo p mim e perder a infancia. Posso estar julgando, Mas nao creio q se algum dos participantes mirins nao quiser mais serao apoiados.

  2. Isso seria um problema, apenas se não fosse da vontade da criança. Tive muitos amiguinhos na infância que diziam com todo o coração que seu maior sonho era ser cantor, jogador de futebol ou bailarino e entrar em campo, subir no palco ou aparecer em programas de televisão para mostrar ao mundo o que desejam, e não raros eram os casos de pais que o impediam de fazer tudo isso. Isso desmorona a força de vontade dessas crianças, é como se dissessem friamente “não” ao sonho delas, como se eles não fossem importantes. Algumas sequer tinham o espírito de competição, e sim um desejo de realização própria.

    Acredito que o que deve ser feito nestes programas é pensar bem como será a acolhida dessas crianças e tomar todas as medidas de segurança necessária. É claro que uma mensagem de desaprovação tem que ser diferente, a forma de comunicação no geral tem que ser diferente. E isso se a criança realmente quiser aparecer lá, e não por vontade dos pais.

    • E essa soberania infantil em tomar decisões vale pra tudo, Marcy? Para transar, assaltar, fumar, beber…? A partir de que idade, 4 ou 5?

      E pra pedir uns trocados no sinal de trânsito, vale também?

  3. Discordo totalmente do texto. O programa não é forçado, pelo contrário, são crianças que já cantam e até vivem da música há muito tempo. Raul Gil fez esse programa durante anos e não me lembro de críticas. O problema é que quando a Globo faz e está fazendo bem feito gera comentários! Quantas crianças começaram pequenas nas novelas e hoje são grandes atrizes ou atores; o futebol traz também vários talentos e por aí vai. O importante é quem está ao lado dessa criança. Muitas estão com todo conforto em casa abandonadas e sem atenção dos pais! Não é um programa que vai trazer trauma!

    • Muito ~normal~ crianças que ~vivem de música há muito tempo~ né Simone? Viva o Raul Gil, o Tiago Leifert, o Neymar que também deve ter aprendido há muito tempo a sonegar impostos…

  4. Gente, coisa mais chata.

    Pode até existir quem force os pequenos, mas há também crianças que estão alí porque gostam e se derrepente a criança decidir que não quer mais resta a ele decidir há país que irão aceitar outros não mas isso está na esfera familiar não temos que nos meter.

    No master chef kids era nítido a preocupação dos chefs em tratar bem a criança, em falar de maneira correta em ajudar.

    Ô mundo veio chato, tudo é motivo para se discutir, pra gerar polêmica.

    • Chatíssimo o mundo, Maxwell, principalmente pra essas crianças cheias de poder decisório, que inclusive deviam estar governando o mundo no lugar dos imaturíssimos adultos.

      • Você fala com um ar de arrogância que até chega a ser ridículo.
        Debocha da resposta como se fosse “superior”.
        Mas não vejo você articular a sua opinião a respeito nas respostas, apenas alfinetando as pessoas, dizendo que devemos deixar as crianças serem crianças, como se muitos já não o fazem.
        Mas esquece que crianças tem sonhos, desejos, que não podemos fecha-la em uma sala e impedir que veja o mundo que está a nossa volta, seja ele bom ou ruim.
        Temos sim que ensinar valores e limites, mas se a criança tem um talento, podemos lapidar e dentro da nossas possibilidades, fazer com que chegam a este objetivo.
        Por fim, suas respostas são vagas, assim como o seu texto, que tem um início, mas sempre se perde no meio, com metáforas e ideias demais, divagando sobre 5 temas em um, o tornando confuso, assim como suas respostas, curtas, um tanto grosseiras e vagas.

    • Caro Maxwell,

      Você está equivocado quando diz que “se derrepente a criança decidir que não quer mais resta a ele decidir há país que irão aceitar outros não mas isso está na esfera familiar não temos que nos meter”, pois, se os pais e mães que explorem os filhos e filhas ou forem negligentes devemos, sim, nos meter. Talvez você não saiba, mas existe um órgão chamado conselho tutelar que existe justamente para “se meter” nas esferas familiares a fim de preservar os direitos das crianças e adolescentes.

      Você pode até argumentar que os programas não prejudiquem as crianças, mas, se prejudicar, a família deverá sim ser abordada.

  5. Concordo plenamente e não só no tocante aos casos citados. Outro dia recebi um vídeo no wats app de uma garotinha, creio eu, em torno dos 06 ano,s fazendo uma pregação religiosa num programa infantil. Fiquei pasma de ver como ela discorria com tanta clareza um assunto mais ou meno complexo. Pensei ; foi treinada. E ao final ela disse uma frase que me deu mais certeza. Tive pena. Esta menina deveria, estar além, do horário da escolinha, brincando, descansando, se divertindo. E não assistindo ao mesmo vídeo seguidas vezes, até decorar o texto.

  6. Uma criança pode até sonhar em ser cantor, artista, mas vamos esperar que tenha a idade da certeza. Um menor não pode trabalhar é lei, mas pode ficar horaras em um estúdio, trabalhando para sustentar os pais muitas vezes com luxo e muita ostentação. Parabéns pelo texto sincero.

    • E quantos não são “descobertos” né, Mara. Mas, para muitos o dinhero justica qualquer ação. Fato é que, para ambos, os 99,9% não aprovados e o restante, fica a alienação como legado. E o futuro disso ? A resposta está bem na nossa frente, na correta observação do presente e no conhecimento passado. Boa noite.

  7. Quanto a danos psicológicos, algumas escolas já se encarregam de fazer isso, não somente programas de televisão. Muitas “tias” não têm tino pra lidar com criança e acabam fazendo estragos em suas mentes.

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