IMG_20150728_182607Em entrevista a Jô Soares exibida em 23 de julho, o cantor Pablo foi bastante ironizado pelo apresentador por não ter lembrado o nome de Roni dos Teclados, compositor de seu grande sucesso “Porque homem não chora”, ainda mais pelo fato de Pablo “estar ganhando dinheiro em cima dele”. Sobraram críticas nas redes sociais a Pablo, mas também a Jô, por ter colocado seu entrevistado em uma situação bastante constrangedora e ter discorrido sobre a interpretação complexa da letra da música, o que pode ter parecido irônico aos ouvidos de alguns.

O áudio oficial de “Porque homem não chora” no Youtube tem mais de 25 milhões de visualizações. O clipe oficial, mais de 700 mil. Há ainda inúmeros vídeos caseiros em que homens, meninos e até cachorros choram ao som da sofrência de Pablo. A pesquisa no Youtube por vídeos de Roni dos Teclados cantando sua própria música resultou em um vídeo de apenas 752 visualizações, gravado de forma caseira em um show de outro artista, Tinho Baiano e Banda Leop@rduz, no qual Roni fez uma participação especial.

Não é de hoje que no Brasil e no resto do mundo o público confunde cantor e compositor, atribuindo ao primeiro canções de autoria do segundo. Em alguns casos, o compositor não se incomoda em ser ofuscado pelo intérprete, seja porque possui a sua própria carreira de cantor bem sucedido, seja porque não deseja alcançar o estrelato e cair na estrada, seja porque reconhece que não possui o menor talento para cantar, seja porque prefere ser gravado por um cantor com muito mais potencial de sucesso para arrecadar mais em direitos autorais.

O leitor já deve ter cantarolado muitas vezes canções de César Augusto, Piska, Carlos Colla, Joel Marques, Paulinho Resende, Elias Muniz, Paulo Debétio, Paulo Sérgio Valle, Maurício Duboc e tantos outros sobre os quais nunca ouviu falar. Mas com certeza já ouviu falar de seus intérpretes: Leandro e Leonardo, Alcione, Só Pra Contrariar, Roberto Carlos, entre tantos outros. Alguns dos compositores mais populares também firmaram carreiras como cantores – Peninha, Fátima Leão, Michael Sullivan -, embora sejam muito menos conhecidos do que alguns de seus intérpretes habituais – Daniel, Bruno e Marrone, Sandra de Sá, respectivamente.

imageEm uma das cenas de “Dois filhos de Francisco”, Zezé Di Camargo, ainda um desconhecido lutando para construir uma carreira de cantor em São Paulo, fica cabisbaixo ao ver que na loja de discos onde toca “Solidão” nas vozes de Leandro e Leonardo não há o seu próprio disco e não é reconhecido como compositor da música. O “empreendedor” Zezé percebe que, por mais que sua música faça sucesso na voz de outros, só conseguirá ascender se gravar ele próprio um grande sucesso. Alguns anos após a cena mencionada, “É o amor” estoura no país inteiro. Da mesma forma, Lady Gaga, antes do estrelato, compôs músicas para Britney Spears.

José Alfredo Jimenez, “El Hijo del Pueblo” e rei das rancheras mexicanas, sabendo que não tinha a mesma potência vocal nem a mesma beleza dos cantores que atuavam no cinema mexicano, como Pedro Infante e Jorge Negrete, se destacou cantando suas próprias composições.

Na história da música brasileira, durante alguns anos intérpretes masculinos, geralmente virtuoses influenciados pelo bel canto operístico, como Cauby Peixoto, cantavam principalmente obras alheias. Outros como o Rei da Voz Francisco Alves compravam coautorias – prática, por sinal, ainda em voga nos dias de hoje –em uma negociação desigual com compositores ávidos por visibilidade e/ou em uma situação financeira difícil. Os Festivais da Canção foram o marco não somente do nascimento daquilo que se convencionou chamar de Música Popular Brasileira, mas do início da hegemonia dos autores-cantores, que davam sua cara à tapa ao interpretar suas próprias canções e ao se posicionarem politicamente sobre diversos assuntos, sendo importantes formadores de opinião.

É assim que cantores que nos padrões da década de 1940 seriam execrados como desafinados ou medíocres, como Tom Zé, Jorge Mautner e Chico Buarque, foram celebrados como “gênios”. A deficiência de sua voz, longe de incapacitá-los para a carreira de cantor, representaria uma marca pessoal, aliada ao “estilo inconfundível” e “personalíssimo” de suas composições. É essa individualização romântica do gênio criativo que aparece na fala sarcástica de Jô Soares na entrevista com Pablo: “Quando eu ouvi a música eu digo: só pode ser do Roni dos Teclados”.

O próprio conceito de autoria durante muito tempo foi pensado tendo em vista a chamada “cultura erudita”. A “cultura popular”, “folclórica”, em uma visão idealizada, seria fruto do coletivo, em um passado distante e puro. A apropriação do samba pelo mercado e sua adaptação ao modelo liberal e burguês de direito autoral expôs essa contradição. Sinhô já dizia que “samba é igual passarinho, de quem pegar primeiro”.

Em pleno século 21, a relação da cultura de massa periférica parece não querer se encaixar nesse mesmo modelo tradicional de direito autoral. Enquanto o tecnobrega “sampleia e rouba”, o funk, vendido informalmente nas bancas de camelô, apresenta não raramente muitas versões de uma mesma música. Tratando-se de “proibidões”, funks acusados de fazer apologia ao crime, a autoria das canções não é reivindicada por motivos óbvios. Houve casos, no entanto, de disputas judiciais pela paternidade de funks. É o caso de “Ah, eu to maluco”, refrão apropriado pelas torcidas organizadas de futebol na década de 1990 do século passado, e de “Ai, se eu te pego”, refrão supostamente composto por sete (!!!) amigas em uma viagem para a Disney.

Enquanto CDs da gravadora Biscoito Fino, como o próprio nome diz, são vendidos a preços exorbitantes em lojas oficiais, com encartes repletos de informações, com letras e caprichada produção gráfica, compatível com o status dos medalhões da MPB que se abrigaram nessa gravadora, CDs de funk, forró eletrônico e outros estilos populares são vendidos por camelôs ou em lojas de rua em pontos de concentração de trabalhadores de classe média e baixa por preços bem mais acessíveis ou até distribuídos como brindes pelos próprios artistas para se divulgarem.

Mesmo os CDs originais dos estilos mais populares muitas vezes têm estética pirata. Para baratear o custo de produção, os encartes muitas vezes resumem-se a uma única folha, com a foto do cantor e sem nenhuma informação a não ser o nome das músicas. O formato das letras escolhidas é de mau gosto para os padrões da Biscoito Fino. As cores são berrantes. O nome do CD frequentemente é o nome do próprio artista, seguido de uma numeração que acompanha a ordem de lançamento dos CDs daquela discografia. Talvez seu público não esteja preocupado com o “conceito” do CD e não o escute com tanta reverência, sacralização e fetichismo, como se o encarte fosse um livro com um odor gostoso de sentir.

No CD “Pablo, A Voz Romântica nº 3” não há indicação dos músicos participantes das gravações, dos arranjadores, dos produtores, do fotógrafo, muito menos dos compositores das músicas. O mesmo se observa em relação ao CD que o antecedeu, “Pablo, A Voz Romântica nº 2”. Isso não impede que no encarte esteja escrito: “Todos os direitos reservados ao proprietário desta obra. O uso indevido sujeita o infrator as (sic) penas da lei”.

É apenas a partir do CD “Arrocha Brasil”, gravado ao vivo em 2013 com a participação especial de artistas consagrados como Daniela Mercury, Gaby Amarantos e a compositora-cantora já citada Fátima Leão, que se observa encarte mais caprichado, tanto em termos visuais (nos padrões hegemônicos de bom gosto) quanto em termos de informações, com as letras das músicas.

Pablo já estava na SomLivre, braço fonográfico das Organizações Globo, e consolidava uma mudança de imagem que culminaria na capa do CD “É só dizer que sim”, gravado em 2014 e que traz justamente o sucesso “Porque homem não chora”. Pela primeira vez, o nome do CD é o nome de uma música que o integra, o que é usual entre cantores de MPB. A capa, totalmente sóbria, mostra Pablo vestido todo de preto sob um fundo cinza. O encarte, embora sem as letras das músicas, traz as informações principais sobre a gravação e a produção do CD. O nome de Roni dos Teclados está lá.

A visibilidade do compositor de música popular pode vir por outros caminhos. O Projeto de Lei nº 3.156/2004, de autoria do deputado federal Ivan Valente (PSOL), dispõe sobre o dever das empresas de rádio ou televisão de informar aos ouvintes ou telespectadores os dados das obras musicais executadas em sua programação, incluindo o nome de seus compositores. Justifica-se que o projeto tem como objetivo “viabilizar a fiscalização do respeito aos direitos autorais e ao seu correspondente aproveitamento econômico”. Pablo declarou a Jô Soares que Roni dos Teclados “também está ganhando dinheiro” e deve estar ganhando mesmo, para os padrões dos compositores brasileiros.

O projeto de lei, porém, tem também outro importante objetivo: “Cumpre-nos atentar, também, para o alcance sócio-cultural da presente Lei no que tange à valorização e à perpetuação da memória do nosso patrimônio cultural, ao darmos publicidade não apenas às obras, mas também aos seus criadores. Estaremos assim contribuindo de forma decisiva para que as gerações atuais e futuras reconheçam e valorizem, ainda mais, os artistas e suas criações”. O projeto já foi aprovado pelas Comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática; de Constituição e Justiça e de Cidadania; e de Educação e Cultura, mas ainda está em tramitação.

Na peça “Cyrano de Bergerac”, escrita por Edmond Rostand, o herói ajuda Cristiano a conquistar Roxane, mulher amada por ambos, escrevendo a ela cartas de amor em nome do rival. Pelo menos no seu leito de morte foi reconhecido pela amada como o verdadeiro autor daquelas belas palavras. O compositor Roni dos Teclados fez o Brasil inteiro chorar. Será que nosso Cyrano de Bergerac chora?

Como diria Caetano Veloso em “Festa imodesta”: “Vamos homenagear todo aquele que nos empresta sua testa construindo coisas pra se cantar (…) Salve o compositor popular!”

 

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