O lugar ocupado por Fernando Brant (1946-2015) na música popular brasileira é bem maior do que permitem reconhecer os olvidos de anos recentes. Só para citar alguns totens excluídos da coleção abaixo, Brant escreveu os versos de “Outubro” (1967), “Saídas e Bandeiras” (1972), “Credo” (1978), “Canção da América” (1980), “Nos Bailes da Vida” (1981), “Notícias do Brasil (Os Pássaros Trazem)” (1981), “Encontros e Despedidas” (1981), “Menestrel das Alagoas” (1983)…

Talvez a sequência abaixo dê pistas sobre o que foi feito de Vera (Cruz), nos desencontros entre o inventor das letras de algumas das maiores canções de Milton Nascimento e a pátria que o pariu.

1. Elis Regina, “Travessia” (1967) – Tudo começou com Elis, a gaúcha que o carioca Milton Nascimento reputa como sua descobridora (e também, portanto, do letrista mineiro Fernando). A canção de festival que apresentou Milton ao mundo foi imediatamente gravada pela jovem madrinha. “Solto a voz nas estradas”, dizia a letra, preparando o mundo para a voz etérea do músico e para o pendor cigano do letrista.

1968 2 MPB 42. MPB 4, “Sentinela” (1968) – O barroco e o catolicismo mineiros. A morte. A morte sob tortura, talvez, “no corpo deste irmão que já se foi”.

3. Wilson Simonal, “Aqui É o País do Futebol” (1970) – Quando ainda existia a pilantragem e ainda não estava denominada a etiqueta “clube da esquina”, e minutos antes de virar bode expiatório máximo para a esquerda (e para a direita) brasileira(s), Simonal cantou esse hino futebolístico com letra de de protesto ambíguo de Brant. Era a Copa de 1970, cenário de guerra entre inimigos e apoiadores da ditadura, entre o país tropical abençoado por Deus e os porões da tortura, entre a música brasileira negra e a branquidão internacionalista da Rede Globo de Televisão. Brant andava pelas cordas bambas.

61G2qkYcMJL._SY355_4. Luiz Eça y la Família Sagrada, “O Homem da Sucursal/ Barravento” (1970) – Ainda em pique de Copa e futebol, “O Homem da Sucursal” seduziu o bossa-novista Luiz Eça, artífice do Tamba Trio, que ajudou a mundializar o tema do documentário Tostão, a Fera de Ouro, lado a lado com a glauberiana “Barravento”, de Sérgio Ricardo.

5. Milton Nascimento, “Para Lennon e McCartney” (1970) – John Lennon Paul McCartney não sabiam do lixo ocidental, neste anti-hino composto com os irmãos Lô Borges Márcio Borges, que temperava o eterno complexo de vira-latas com um desejo imenso de orgulho de ser braSileiros com S maiúsculo: “Eu sou da América do Sul/ sei, vocês não vão saber/ mas agora sou caubói/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais”.

1970 Som ImaginaÃÅrio6. Som Imaginário, “Feira Moderna” (1970) – Nesta parceria de Brant com Beto Guedes, a letra é barroca em linhagem mineira, não em linhagem baiana-tropicalista. Versos como “feira moderna, um convite sensual/ ó, telefonista, a palavra já morreu/ meu coração é novo/ e eu nem li o jornal” pouco dizem aos ouvidos entupidos de MPB tropicalista, mas a irmandade foi percebida por Gal Costa, que em 1971 levou o grupo que acompanhava Milton para a base do mítico show Fatal.

evinha 37. Evinha, “Feira Moderna” (1971) – Tal como fez a tropicália, também o clube da esquina paquerou a pilantragem de Simonal e fez sexo com ela – aqui, na voz aveludada-gelatinosa da sensacional ex-cantora mirim do jovem-guardista Trio Esperança, aqui adentrando fase adulta apadrinhada por Simonal. O lado iê-iê-iê de Brant eclodiria de fato anos depois, em ambiente não-musical, quando ele se tornasse diretor visível que protegia eminências pardas do “lixo ocidental” do sistema Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).

1972 Cicatrizes8. MPB 4, “San Vicente” (1972) – Versão do quarteto vocal que acompanhou Chico Buarque em “Roda Viva” para a dramática canção que, na voz de Milton, tornou-se um dos mais sólidos monumentos do álbum semi-coletivo Clube da Esquina (1972). “Coração americano/ acordei de um sonho estranho/ um gosto vidro e corte/ um sabor de chocolate/ no corpo e na cidade/ um sabor de vida e morte/ coração americano/ um sabor de vidro e corte”, diz a letra sonho-acordada entre corpos negros, enquanto anoitece.

1976 Clementina de Jesus9. Clementina de Jesus, “Cinco Cantos de Trabalho” (1976) -“Os Escravos de Jó” é a composição de Milton e Fernando que abre e fecha alas para o “Ensaboa” de Cartola e os cantos de trabalho de domínio público “Alegria do Carreiro”, “Peixeira Catita, e “Atividade no abano”, compilados pela matriarca. No contexto futebolístico da Copa de 1970, o tema era um canto de trabalho operário, urbano, chamado “O Homem da Sucursal” (ver item 4). Três anos depois, voltou como “Os Escravos de Jó”, tema de início do mítico álbum Milagre dos Peixes (1973), transformado em canto de escravos pela voz de Clementina e pelas adaptações na letra de Brant (“saio do trabalho/ volto para casa/ não lembro de canseira maior/ em tudo é o mesmo suor”). Nos caminhos intrincados da parceria Milton-Fernando, voltaria em 1977 como “Caxangá” (ver item 23), na voz de Elis.

Elis+197410. Elis Regina, “Conversando no Bar” (1974) – Também denominada “Saudades dos Aviões da Panair” (na versão de Milton), traz letra de cornucópia tropical-mineirista em que cabem sobe-e-desce ladeira de bonde, motorneiro, orquestra, casos da campanha da Itália, as asas dos aviões da finada Panair, sustos, padres, pecados, medo, memória, fala oculta, mesa de bar. E mudanças. E a perda total de chão.

1975-Gotas-dagua-1-300x30011. Simone, “Idolatrada” (1975) – A cantora baiana é a primeira a gravar a lavra grande das canções de mulheres, femininas, feministas de Milton e Fernando – integrada também por “Maria Três Filhos” (1970), “Maria Solidária” (1977), “Maria, Maria” (1978)…

12. Nana Caymmi, “Ponta de Areia” (1975) – Com a lamúria pela estrada de ferro que ligava Minas ao mar, mas “mandaram arrancar”, a canção de protesto passava pela fresta da janela que a ditadura civil-militar trancou em 1968.

1977 A PaÃÅgina do RelaÃÇmpago EleÃÅtrico13. Beto Guedes, “Maria Solidária” (1977) – Antes da forte versão de Fafá de Belém (em 1978), a aguda, femininíssima, do conterrâneo Beto.

1977 AÃÅgua14. Fafá de Belém, “Raça” (1977) – O mais explícito canto racial de Milton (e Fernando) nasceu em 1976, na voz do dono – e virou mulher a seguir, com a potência da paraense Fafá.

15. Simone, “Povo da Raça Brasil” (1979) – Canto racial, canto de trabalho, canto de escravos: “Ponha a mão na mágoa/ ponha a mão no couro/ ponha a mão na massa pra fazer o pão”.

16. Milton Nascimento Nana Caymmi, “Sentinela” (1980) – A mineira Nana visita o sublime ao reinterpretar, com o dono da voz, o tema barroco e católico de carpideiras mineiras de 1969.

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1980 Dengo17. Zezé Motta, “Bola de Meia, Bola de Gude” (1980) – A cantora negra fluminense também tentou ecoar a voz da raça, mas ficou mais popular a versão em quatro vozes masculinas do grupo clube-da-esquinista 14 Bis.

18. Fafá de Belém, “Bicho Homem” (1981) – “O meu canto chuta o traseiro do ditador”, escreveu Brant no amanhecer pós-anistia.

1983 ...Pois EÃÅ19. Ney Matogrosso, “Coração Civil” (1983) – Outro tema possível após o início de abrandamento da ditadura, quando ainda se acreditava que os civis de 1964 tivessem princípios mais nobres que seus pares militares. O clamor pelo fim do regime de exceção hoje soa óbvio, apesar de implícito. Filho de militar, o sul-mato-grossense Ney encarnou o coração civil de Brant.

20. Pena Branca & Xavantino, “Chaleira do Alto da Poeir”a (1995) – De meados dos anos 1980 em diante, a parceria Nascimento-Brant feneceu. Restaram temas esparsos, como esse em parceria com Tavinho Moura, e a atividade corporativa como defensor dos direitos de autores no sistema Ecad. Perdido da voz de Milton, o discurso de Fernando foi se tornando o contrário do que fora nas pautas das canções.

21. Lô Borges, “Paisagem na Janela” (2001) – “Da janela lateral do quarto de dormir”, a versão do coautor e conterrâneo Lô Borges para o tema histórico interpretado por Beto Guedes no Clube da Esquina de 1972. (Correção enviada por Pablo Castro: embora a versão de Beto Guedes seja bastante popular, a original, de 1972, já era interpretada por Lô.)

2002 Flora Purim Sings Milton Nascimento22. Flora Purim, “Maria Três Filhos” (2002) – No espetacular Flora Purim Sings Milton Nascimento, majoritariamente dedicado aos anos duros do clube da esquina, a carioca cigana migrante estadunidense Flora mundializa o que já deixou de ser de Minas e tece a mais épica das versões para a primeira das Marias de Milton (e Fernando): “Negra voz de velha só. numa igreja interio/ me falando de seu tempo/ conta a idade, conta o que restou”.

2010 Bom Tempo23. Sergio Mendes Milton Nascimento, “Caxangá” (2010) – “O Homem da Sucursal”, depois “Os Escravos de Jó”, depois “Caxangá”: “Veja bem, meu patrão/ como pode ser bom?/ você trabalharia no sol/ e eu tomando banho de mar?”. “Eu vivo de brigar com o rei” – ou com a rainha e conterrânea, se Minas fosse maior que o mundo e se se tratasse do Brant dos anos 2010.

2012 Redescobrir - Ao Vivo24. Maria Rita, “O Que Foi Feito Devera (De Vera)/ Maria, Maria” (2012) – A filha paulistana de Elis (e, de certa maneira, de Milton) canta duas obras-primas da parceria com Brant, ambas apresentadas originalmente no Clube da Esquina 2 (1978). A melodia de Milton ganhou duas letras diversas, a outra chamada “O Que Foi Feito de Vera”, de Márcio Borges. O tom memorial da versão de Brant é especialmente marcante, e fala do moço Fernando nos dias de sua morte: “O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou?/ o que foi feito da vida?/ o que foi feito do amor?/ quisera encontrar aquele verso menino/ que escrevi há tantos anos atrás”. Alguém acrescentaria, saudoso de Brant: “E o que foi feito é preciso conhecer/ para melhor prosseguir”.

25. Bruno Souto Chá de Pólvora, “San Vicente” (2015) – No exato instante em que Fernando Brant morria, em algum lugar no mundo jovens cantavam letras de Fernando Brant – esta versão pertence à coletânea Mil Tom, produzida por Pedro Ferreira para o selo-site Scream & Yell. Do mundo e de Minas, ainda com sabor de vidro, corte, sangue e América do Sul.

2015 Mil Tom - Disco 1

 

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8 COMENTÁRIOS

  1. Fiquei triste. Soube na hora. Saiu no face. Conhecia pouco a biografia. Mas o suficiente para entristecer. Fernando Brant está no topo de tudo que é maravilhoso. Creio que será reconhecido agora, pos morte. Talvez por ser tão grande seu acervo cultural. Iluminado ,simplesmente.

  2. O Milton Nascimento NÃO É CARIOCA. Ele nasceu na cidade de Laranjal no interior do Rio de Janeiro e só é CARIOCA quem nasce na CIDADE RIO DE JANEIRO. Quem nasce no interior do estado do Rio de Janeiro é FLUMINENSE. Além disso, ele apenas nasceu no estado do Rio de Janeiro, ele foi adotado ainda bebê e foi criado na cidade de Três Pontas no Interior de MG, onde começou a se aventurar pela música. Posteriormente ele mudou para Belo Horizonte onde fundou o Clube da Esquina.
    Se o seu intuito é dizer que o MILTON NASCIMENTO um simbolo da música mineira não é mineiro eu até te entendo, porém creio que chamar aquele que nasce em Laranjal de Carioca é um equivoco.
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Carioca
    Não se sinta ofendido.
    Um forte Abraço

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