A chuva fina que caía e o vento quente que soprava conferiam uma sensação extra de felicidade à terça-feira gorda, no caminho a pé pelo Minhocão. Desci da via elevado-rebaixada que antigamente levava nome de ditador (aliás, ainda leva), passei pela igreja da Barra (pro)Funda, dobrei a esquina e, bem atrás do padre, encontrei o inicialmente compacto bloco Agora Vai. “E o jacaré? E o jacaré? Ninguém sabe o que é!”, cantava a doce melodia enquanto a chuva e a multidão encorpavam.

Não havia muita novidade em nada disso, isto não é uma notícia. Era carnaval em SP, algo tão banal. Pelas ruas, nesses dias, não havia #NãoVaiTerCopa, não havia black blocs, neste ano nem #NãoVaiTerCarnaval não houve em SP. O movimento contínuo que transita por vias nem sempre desinterditadas pulsa, contrai, expande, se (des)energiza em slogans intermitentes de #NãoExisteAmorEmSP, #ExisteAmorEmSP, #SemPartido, #VemPraRua – e segue adiante. Neste 2014, particularmente, foi possível pular cinco dias corridos (ou mais) de carnaval em SP, na rua, ao ar livre, sem cordão. #EuFui.

De minha parte, a sensação gostosa de cansaço parece a de ter andado uns 2.000 quilômetros a pé, pelas ruas da cidade que adotei como minha há 22 anos (que se completarão, datas fatídicas à parte, no próximo 31 de março). É gostoso passear pela minhoca do ditador, quando se chegou aqui num dia de (des)aniversário tão mesquinho.

Elevados à parte, ver a cidade que te adotou em contato direto com o asfalto são outros 500. SP tem sido boa e generosa para quem quer viver essa experiência, seja em passeatas, manifestações, marchas, paradas, viradas, jornadas, comícios, caminhadas solitárias ou outros carnavais.

Tem sido assim em SP, ainda que sob as bombas da truculência e da intolerância. Assim como gentileza gera gentileza, sensação de pertencimento gera sensação de pertencimento, e daqui a pouco a rua está apinhada de gente.

Meu carnaval começou antes do carnaval, quando peguei o finalzinho do ainda bebê e já muito amado Bloco Soviético, reunião de gente amiga que festeja, hedonista à esquerda, o vermelhume do golpe comunocapetalista.

No dia seguinte, no Bloco da Abolição, também vermelho, vermelhusco, vermelhante, a bateria do Movimento Sem Terra (MST) pulsou no compasso e consolidou a consciência de que brincar junto com nossa própria tribo é, além de possível, maravilhoso.

Na sexta-feira de abertura dos, digamos, ~trabalhos~ carnavalescos, o bloco afro Ilu Obá de Min era uma multidão gigantesca (para padrões paulistanos, pelo menos). Viaduto Major Quedinho, Theatro Municipal, Igreja do Rosário dos Pretos, orixás, pernas-de-pau, caboclos de umbanda, preto/brancos/índios em pajelança glauberiana: tudo é rito quando você consegue se reconhecer dentro da sua própria tribo.

Mas tribos são muitas, e pode ser que a gente pertença não a uma ou duas, mas a várias delas ao mesmo tempo. Sambódromo anhembista não era exatamente a minha, quando o tempo é sem-cercas, sem-cercados, mas a Bia Abramo me convidou e eu fui, e atravessei descalço o alagamento gelado, e fiquei bobo cas luzes – e não me arrependi.

Rachei o bico com a delícia das fantasias, embora achasse que as referências gringopop do carnaval paulistano de “avenida” ultrapassam o surreal – muito Michael Jackson, muito defunto de “Thriller”, muita máscara-da-morte, muito cubo mágico, muito Darth Veder, muito Harry Potter (ou algum mestre de magos canastrões que o valha), muita Penélope Charmosa, muito Dick Vigarista, muita Mortícia Adams. Santa pulsão de morte, Batman!

(Mas sabe que eu gostei e me apeguei a alguns dos sambas-enredos, Eduardo Nunomura? Esse negócio de decadência bonita dos sambas, não sei não, viu?…)

No desfile de blocos-meio-escolas do Parque da Luz, lua furada por paisagens-mitos de parque e estação (e metrô, para variar, lotado), a impressão se repetiu: não sei se algum dia vou ouvir de novo, mas que delícia o samba sobre lixeiros da Mocidade Amazonense! E que delícia o enredo da Pavilhão 9, sobre sertanejos, lampiões, luízes gonzagas e tantos outros ciganos nordestinos de SP!

E, para não dizer que não falei de sexo, digo, de funk, quero dizer, de ciganos (nós): depois do bloco pré-carnavalesco Ciga-Nos, no coração nervoso & (des)amoroso da Praça Roosevelt, voltei para a versão baile, agora na (des)ocupação Trackers, coração (in)tranquilo de MSTs, MSTSs e outros Ms.

Desta vez, além do tradicional relicário musical cigano acoloridado por vestuário tropicalista dos queridos hipsters, ripsters, ipsters balcânicos brazyleyros, houve uma sessão escandalosamente de hard música nordestina, de forró profundo, de xote & xaxado & baião, mais algumas tonalidades que me fizeram pensar de novo em umbanda. Luiz Gonzaga era cigano, e só quem entender isso poderá se reconhecer brasileiro dentro do coração do Brasil.

E, bem, o que mais? Pelas ruas de SP havia muitas e muitas e muitas barbas – a tendência não vem de hoje, mas se consuma em verdadeira epidemia, como se a barba houvesse caído do rosto de Luiz Inácio Lula da Silva e se multiplicado num bilhão de brasileirinhos orgulhosos de sua vegetação facial.

E pelas ruas de SP havia muitos e muitos e muitos homens de saias, vestidos, presilhas, batons, calcinhas, biquínis (eu sei, é carnaval, e isso não é nenhuma novidade, isso não é nenhuma notícia) – como se o movimento de emancipação feminina encampado e liderado por Dilma Rousseff trouxesse no bojo e no útero uma enxurrada de emancipação masculina (até mesmo em SP!) que já nos havia cansado de tanto tardar.

(Lula emancipa Dilma que emancipa Lula que emancipa Dilma que emancipa nozes: as árveres, os árvoros, as árvaras.)

A emancipação feminina é a emancipação masculina é a emancipação feminina é a emancipação tra(ns)vesti, e o nosso nome somos carnaval.

No bloco pop-rock-gringo d’A Loca de domingo, era um rio de gente. No Bloco Bastardo do alegríssimo bairro de Pinheiros, era um mar de gente – começando pelo povo-de-bloco (aquele que frequentava bailes indies e vem saindo ressabiada & fofamente de vários armários), inundando-se de todo-tipo-de-gente e espanando a tradicional poluição cor-de-burro-quando-foge de SP.

Isto não é uma notícia, nem este texto tem uma conclusão. Ou melhor, acho que tem: tentemos.

Concluo, reprisando, que nesses dias todos de peregrinação funk-cigana-carnavalesca, completei não calculo quantas horas sem ligar, nenhuma vez sequer, a televisão. Imagino que dona Rede Globo não esteja lá muito contente, seja com as tendências de carnaval rueiro e descentralizado da “grande SP”, seja com a minha (nossa) rebeldia vermelhinha – mas é nestas & noutras que dá haver tanta gente reunida por tanto tempo nas ruas de SP.

Lamentamos comunicar estas & outras à ex-vênus ex-platinada e a outros ogros antirrua. Mas este é um fenômeno irreversível. Daqueles de fazer a chuva ferver e o calor amornar.

 

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5 COMENTÁRIOS

  1. Pedro, teu texto é a mais completa tradução do que vivemos nesses dias. São Paulo nos pertence e nós a ela. Grande mãe protetora de concreto perfumada de asfalto molhado. Experiência nova, pulsante e irreversível.

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