‘(Um) Ensaio sobre a Cegueira’, do Grupo Galpão, vê e repara

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Cena com o elenco de '(Um) Ensaio sobre a cegueira', peça em cartaz no Sesc 24 de Maio
Cena com o elenco de '(Um) Ensaio sobre a cegueira', peça em cartaz no Sesc 24 de Maio - Foto: Guto Muniz/ Divulgação

[O texto abaixo contém spoiler apenas para quem não leu (e ainda vai ler) o livro citado]

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, aconselha a epígrafe de Ensaio sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago. O romance completa três décadas e, para quem o leu, traz um desfecho que é uma grande lição: a Humanidade, que subitamente perdera a visão, ganha uma segunda chance e os cegos voltam a enxergar. É justamente um pouco antes desse desenlace que o Grupo Galpão inova sobre a obra do Nobel de Literatura. A montagem (Um) Ensaio sobre a Cegueira, em cartaz no Sesc 24 de Maio, não quer apenas encenar a distopia, mas apresentar uma peça teatral para um Brasil socialmente cego de 2025.

A mensagem de Saramago era sobre um milagre que representava o direito a um recomeço. A mensagem do Galpão, sob a direção e dramaturgia de Rodrigo Portella, é sobre a escolha que antecede o milagre. A peça do grupo mineiro, que o público assistirá por duas horas e meia, termina de forma diferente do livro, e esse, sim, é o verdadeiro não-spoiler que precisa ser vivido de forma plena no teatro.

Ensaio sobre a Cegueira mostra como uma epidemia assola uma metrópole anônima, forçando as autoridades a confinarem os doentes em um manicômio para, ironicamente, expor a fragilidade do pacto civilizatório. Apenas a Mulher do Médico (Samarago não dá nomes próprios aos personagens) se manteve com a visão, testemunhando a acelerada decomposição ética da sociedade. Portella, desde que leu o livro, sonhou em encenar essa história.

A montagem que ele criou atinge seu ápice de deslocamento político quando quebra a quarta parede. O público é chamado ao palco. Pessoas comuns que comprarem presencialmente os ingressos podem decidir se querem fazer parte da peça. Estas são vendadas e se tornam parte da cena, representando os novos grupos de cegos que chegam ao manicômio. O gesto é simples, mas plena de uma força simbólica. O espectador é forçado a deixar de ser um mero observador para se tornar um participante da pandemia que é denomimada de “cegueira branca”. Ao vermos corpos reais, vizinhos de poltrona, naquela condição de colapso, o efeito de espelhamento é imediato. A ficção se funde com o real e nos projeta e convida a voltar uma segunda vez apenas para vivenciar a experiência.

Cena com o elenco de '(Um) Ensaio sobre a cegueira', peça em cartaz no Sesc 24 de Maio - Foto: Guto Muniz/ Divulgação
Cena dramática de ‘(Um) Ensaio sobre a cegueira’, em cartaz no Sesc 24 de Maio – Foto: Guto Muniz/ Divulgação

Assim que o público vai chegando ao teatro do Sesc 24 de Maio, onde ocorre a segunda temporada paulista, após uma passagem pelo Sesc Santo André, ele vê os atores em um espaço vazio, quase minimalista. O cenário de (Um) Ensaio sobre a Cegueira é inexistente e, ao longo do espetáculo, as construções cênicas são totalmente expostas: atores carregam objetos, manipulam a iluminação e constroem, diante dos nossos olhos, as imagens de horror e degradação. Não há para onde fugir. Ainda temos a visão e podemos ver.

Essa escolha pela teatralidade explícita é mais do que estética. Em um mundo onde a imagem e a violência a ela associada são mediadas e banalizadas por telas, o Galpão exige um pacto de invenção e reinvenção partilhadas. A sugestão se sobrepõe à exposição nas cenas de sexo e violência, presentes na obra de Samarago, protegendo a plateia dessa exposição e forçando-a imaginar o que não podemos (ou não queremos) ver.

O Galpão, que celebra mais de quatro décadas de atividade, reafirma uma marca de sua trajetória: a criação coletiva. O elenco (Antonio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones) atua em sintonia, sustentando energicamente o fôlego da narrativa. Em um espetáculo sobre a falência da visão, a escuta é potencializada. O trabalho de Federico Puppi na direção musical não sublinha a cena, mas atua como uma camada narrativa sensorial extra. Os atores tocam instrumentos como meio para serem ouvidos. A compensação perceptiva nos obriga a escutar com mais atenção e a sentir o caos e a barbárie que se instalam na comunidade isolada. Saramago e o Grupo Galpão querem que todos acompanhem a queda dos vestígios de civilidade que ainda nos restam. A deterioração de uma sociedade não se dá pela deficiência, mas pela indiferença, pelo egoísmo e pela covardia. É a incapacidade de enxergar além de nós mesmos.

O Grupo Galpão ensina que a peça (Um) Ensaio sobre a Cegueira não é sobre quem perdeu a capacidade de ver, mas sobre quem, vendo, insiste em não enxergar. É um espetáculo que privilegia o contar e ouvir histórias para reafirmar que o teatro, como o que o Galpão propõe, ainda é transformador.

(Um) Ensaio sobre a Cegueira. Com Grupo Galpão. No Sesc 24 de Maio, de quinta a sábado (19 horas), e aos domingos (18 horas), até 14 de dezembro. Ingressos a partir de 21 reais.

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