Lô Borges, saudades siderúrgicas

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Lô Borges fez um balanço abrangente sobre sua história e o legado do Clube da Esquina na entrevista abaixo, que concedeu em 28 de maio do ano passado, por telefone, de Belo Horizonte, para constar do livro Caixinhas de Música – Conversas Sobre Música Brasileira, Tempo e Cidades, organizado por Renata Rocha e Fabio Maleronka e publicado em dezembro passado pela editora Autonomia Literária. Comentou a caudalosa safra de canções inéditas que vinha compondo em seus últimos anos. Falou das “saudades siderúrgicas” que sentiu de Belo Horizonte quando gravava Clube da Esquina no Rio de Janeiro. Evocou Paul McCartney, Neil Young, Nando Reis, Samuel Rosa… E arriscou, para o aniversário de 60 anos do álbum seminal dividido em 1972 com Milton Nascimento, previsões que infelizmente não serão concretizadas. É nossa vez de sentir saudades siderúrgicas de Lô Borges (1952-2025), e tentar amenizá-las com uma de suas últimas entrevistas.

Em 2024, Lô posa para divulgar “Tobogã”, que seria seu último álbum lançado em vida – foto divulgação Deck

Lô Borges, a outra face da moeda de Milton Nascimento no mitológico álbum duplo Clube da Esquina (1972), tem uma história visceral com Belo Horizonte, a cidade onde nasceu, em 1952, e onde continua morando aos 72 anos. Quando o álbum coletivo foi gravado, em 1971, sentia uma “saudade siderúrgica” da capital de Minas Gerais. Não é para menos, já que Lô é a alma do nome pelo qual a coletividade mineiro-carioca e o som que faziam acabaram historicamente conhecidos.

A tal esquina era o cruzamento da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, no bairro belo-horizontino de Santa Tereza, onde ficava a casa da família Borges. Caçula de um agrupamento que aproximou gente como Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes, Tavito, Nelson Angelo e muitos outros, o adolescente Lô frequentava a esquina com os amigos de bairro, antes de se filiar ao clube que seria uma espécie de movimento não declarado. Nem Milton, nem os demais músicos que gravaram Clube da Esquina fizeram morada no também mitológico lugar onde hoje há uma placa comemorativa e nada mais, que decepcionou jazzistas internacionais que, passando por Belo Horizonte, fizeram questão de ir conhecer o lugar onde tudo começou. “Essa esquina só tinha gente desconhecida, inclusive eu. Eu era o mais desconhecido de todos”, diverte-se Lô.

Outro lugar-símbolo dessa história é o Edifício Levy, no centro de Belo Horizonte, onde os Borges moraram durante parte da adolescência de Lô, antes da consolidação do Clube. Foi onde Lô, ainda criança, atraído por uma voz que ouvia pelos corredores, descobriu Milton Nascimento, então morador de uma pensão no mesmo prédio. Ali começou a história que desaguaria na canção “Clube da Esquina” (1970), no álbum Clube da Esquina, na coletividade e no movimento cultural Clube da Esquina. Apesar do espírito comunitário, o álbum duplo saiu assinado, na contracapa, com o nome de apenas dois deles, Milton e Lô, autor das melodias de vários dos clássicos que compôs aos 17 anos. Com humor e alegria, Lô Borges relembra mais uma vez os fatos históricos de cinquenta anos atrás.

Pedro Alexandre Sanches: Você está gravando um novo disco?

Lô Borges: Estou gravando uma série sem fim de discos [risos]. Acabei um, estou fazendo um arranjo para outro e tem um outro pronto que já está mixado e tudo. É o que comento sobre minha capacidade de fazer discos: está faltando um ano para eu lançar disco. Adoro compor, é minha forma de expressão, minha maneira de lidar com o mundo. É incorporado no meu cotidiano.

O mitológico “disco do tênis”, de 1972

LB: É, comecei devagar, mas teve um arranque quando tinha 18, 19 anos. Dos 19 aos 20, fiz as minhas oito músicas do Clube da Esquina [“Tudo Que Você Podia Ser”, “O Trem Azul”, “Nuvem Cigana”, “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, “Estrelas”, “Clube da Esquina Nº 2”, “Paisagem da Janela” e “Trem de Doido”] e fiz quinze do disco do tênis [Lô Borges, 1972], no mesmo ano. Foi uma época poderosa, mas logo em seguida broxei. Broxei não, estressei. Pô, não quero saber de morar no Rio de Janeiro, embaixo da ditadura, longe dos meus amigos, das minhas amigas, da minha família, da minha liberdade. Comecei a me sentir um funcionário de gravadora, sabe? Os caras quiseram que eu fizesse um terceiro disco em dois anos. É por isso que o primeiro disco é o mais caótico. Clube da Esquina é totalmente solar, tem canções mais solares. E o disco do tênis é todo hermético, tudo meio maluco. Parece que eu estava querendo, que a minha intenção era fazer um disco que os caras que estavam me contratando não entendessem.

PAS: Você ficou viajando pelo Brasil depois do disco do tênis?

LB: Fiquei, e aí voltei para Belo Horizonte. O disco do tênis foi uma arrancada foda. Eu fazia a música de manhã, meu irmão fazia a letra à tarde, e à noite a gente ia para o estúdio, onde tinha uma banda esperando para fazer a gravação, valendo para todo o sempre. Era muita pilha, uma viagem diária rumo ao desconhecido. A gravadora gostou tanto de ver “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, “O Trem Azul”, essas coisas do Clube da Esquina, que queria que eu lançasse um disco solo no mesmo ano. Só que, quando saiu o disco do tênis, que é caótico, psicodélico, doidão, falaram: “Pô, aqui o cara não fez mais nenhum ‘Girassol’, nenhum ‘Trem Azul’, nenhum ‘Nuvem Cigana’, o cara ‘emburacou’ aqui em uma maluquice experimentalista”. E é, é um disco experimentalista em que um cidadão com 20 anos de idade estava experimentando tudo, inclusive muita droga, ácido, LSD, que era para segurar a barra da ditadura. Tinha que fazer uma viagem ao interior. Não é que a cada ácido que eu tomar vou fazer uma música, não era isso, mas era comum tomar ácido quase que diariamente na época do disco do tênis. Diferente do Clube da Esquina, que foi gravado em 1971 e terminou de lançar em 1972, que tinha pessoas mais velhas, tinha o Bituca tomando conta de todos nós, tomando conta de mim até perante minha família, que autorizou ele, com muito custo, a me levar ao Rio para gravar um disco. Minha mãe não queria que eu fosse para o Rio de Janeiro debaixo da ditadura militar morar com Bituca e com Beto Guedes e fazer um disco.

PAS: E você queria? Ou ficava na dúvida?

LB: Não, eu queria ir. Tive que convencer minha mãe e o exército brasileiro, porque eu estava na idade de servir o exército. Quando Bituca me convidou para morar no Rio, ele já tinha duas músicas chamadas “Clube da Esquina”: a original, “Clube da Esquina” (1970), e “Clube da Esquina Nº 2” (1972). A gente fez duas músicas com esse nome, e isso até justificou Bituca me convidar para dividir o álbum com ele. Ele gostava das músicas que eu estava compondo, então para mim foi muito interessante poder ir para o Rio. Mas, para convencer a minha mãe… O exército foi bem traumatizante, era ditadura militar, eu já estava com a companhia designada, com um pé dentro. Já tinha cortado meu cabelo de recruta, inclusive. Naquelas fotos do Clube da Esquina, quando a gente estava morando na Praia de Piratininga [em Niterói, também conhecida como Mar Azul], você pode reparar que meu cabelo está curto e o do Beto está longo. Porque Beto era um ano mais velho que eu e passou por essa experiência de ter que cortar o cabelo por causa do exército um ano antes. Fui morar em Piratininga e compor as músicas, mas eu tinha uma saudade siderúrgica de Belo Horizonte. O pessoal acha que a gente compôs todas as músicas na Praia de Piratininga, mas a gente conviveu bastante, trabalhou as músicas, e a maioria das músicas do Clube da Esquina foi feita antes, em Belo Horizonte. “Girassol”, “O Trem Azul”, “Tudo Que Você Podia Ser” e Trem de Doido” eu fiz em Belo Horizonte. “Nuvem Cigana” fiz em Piratininga. Eu era aquele morador de Piratininga junto com Bituca e Beto e o primo do Bituca, e de 15 em 15 dias pegava um ônibus na rodovia que Toni Tornado cantou na música de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, a “BR-3” (1970). Eu pegava aquele ônibus direto, sabia as curvas, de tantas vezes que fui para Belo Horizonte. “Paisagem da Janela” eu compus no piano, em Belo Horizonte. Essa casa de Piratininga não tinha piano. Músicas de violão dava para fazer lá, mas eu estava com muita vontade de compor no piano. E é curioso que essas músicas todas eu hoje toco na guitarra, e compus tudo no piano.

PAS: O que você sente hoje em dia, quando o disco Clube da Esquina começa a ser eleito em primeiro lugar entre os melhores de todos os tempos da música brasileira?

LB: É bacana, é bom. É um reconhecimento por uma obra que foi feita com muita tiração, muita liberdade, muito espírito desbravador, de tentar acertar. Tudo para o adolescente é uma descoberta, e eu era adolescente. É um reconhecimento superimportante na carreira do Bituca, minha e de todas as pessoas que participaram. Todos desenvolveram carreira solo na sequência, Beto Guedes, Toninho Horta. Tudo começou dentro daquele disco. Conheço muitos fãs mais xiitas meus que se identificam mais com o disco do tênis que com Clube da Esquina. Quando Clube da Esquina fez 40 anos, alguém da imprensa me perguntou o que eu achava que ia estar fazendo depois de dez anos, respondi: “Acho que eu vou estar falando dos 50 anos do Clube da Esquina” [risos]. Tem um foco em cima desse disco, não sei se tem alguma mágica nele que atrai as novas gerações, é uma coisa meio perene, que vai passando de geração para geração. Essa pergunta eu mesmo me faço. As respostas que tenho são muito assim, porque foi feito com muita inspiração, ninguém tinha sonho de se dar bem, vender milhões de cópias, todo mundo fazia pelo amor à arte. Aquele álbum era o amor à arte.

PAS: O documentário Nada Será Como Antes [2023, dirigido por Ana Rieper] dá algumas pistas, principalmente sobre o trabalho realmente coletivo, em que cada uma dessas identidades particulares trazia referências diferentes. São raros os discos coletivos a esse ponto, não?

LB: Sim, talvez o Acabou Chorare (1972).

PAS: Mas ali eram só os Novos Baianos, O Clube da Esquina era uma multidão de músicos reunidos.

LB: É, tinha os que vieram de Belo Horizonte, que era meu caso e do Beto, especialmente para trabalhar no álbum. E tinha o pessoal que já morava no Rio e já tinha uma carreira, tocava com cantoras famosas como Elis Regina e Gal Costa, como Toninho Horta, Nelson Angelo, Luiz Alves, Robertinho Silva. Mas Luiz Alves e Robertinho Silva não são mineiros, estou falando dos mineiros. Tavito, Toninho Horta e Nelson Angelo eram de Minas, e todos já moravam no Rio. Quem Bituca levou mesmo foi o pessoal que era, entre aspas, uma nova geração, os beatlemaníacos, que éramos eu e Beto. A turma do Clube da Esquina era muito ligada ao pessoal do Rio, tinha muita coisa de samba também. Na história do álbum acho que as minhas composições ajudaram a dar uma cara um pouco mais pop que a música que se fazia. Não sei se é isso, não consigo falar muito legal do Clube da Esquina, não, cara. É tanta gente que vive de Clube da Esquina. Eu não vivo, não faço nenhum show chamado Clube da Esquina. E eu teria toda a legitimidade de fazer, porque sou o coautor do álbum e fiz a metade das músicas. Mas nunca fiz isso. Aqui em Belo Horizonte, toda semana tem show chamado Clube da Esquina em algum lugar.

PAS: No filme, você e Márcio Borges aparecem andando pelos lugares importantes dessa história, mas, quando chegam na Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, é apenas uma esquina mesmo.

LB: Dessa turma, de todos que ficaram famosos, eu era o único militante da esquina. Era vizinho da esquina e ficava tocando violão com meu irmão que não era famoso e com uma turma grande. No disco do tênis, um ano depois, fiz uma música para essa turma da esquina, chamada “Aos Barões“: “Uma rua, um buraco/ ficam sentadas umas pessoas/ e eu fico vivendo com elas/ e a gente é a paisagem/ e os outros olham para a gente/ como se a gente fosse gente/ e a gente fica esperando uma coisa/ que eu não sei o quê”. Esse “não sei o quê” é o baseado.

PAS: Você ainda passa por essa esquina? O que ela é para você hoje?

LB: Não, cara. Eu corro dessa esquina [risos]. Atualmente não passo nessa esquina mais, não.

PAS: Por quê?

LB: Porque virou uma coisa… Não moro mais no mesmo bairro, não tenho mais 20 ou 17 anos de idade. Ela foi, aos 17 anos de idade, um dos motivos do Bituca me convidar para gravar um disco que já tinha título, que ele botou, já ia chamar Clube da Esquina. E também porque no disco de 1970 do Milton Nascimento ele gravou três músicas minhas, e uma delas teve um grande êxito, “Para Lennon e McCartney”, que eu compus com 17 anos.

PAS: Essa esquina não merecia ter um monumento?

LB: Tem lá uma placa da prefeitura. Quando inaugurou essa placa, botaram um palanque, um palco na esquina, e teve música ao vivo na esquina. Minha mãe era viva, fez um discurso inflamado: “Vocês estão aplaudindo agora os meus filhos. Vocês sempre chamaram a polícia para eles quando ficavam tocando violão na esquina!” [risos]. Fez um discurso inflamado contra os moradores da esquina. Porque a gente não era bem visto na esquina, era uma turma de maconheiros e ficava tocando violão. A gente desagradava os vizinhos e desagradava principalmente a polícia, porque fazia barulho à noite, de violão tocando, gente cantando, bebendo. Eu era militante dessa esquina. Beto Guedes e Flávio Venturini moravam em outro bairro, Toninho Horta, Tavito e Nelson Angelo moravam no Rio. O pessoal que trabalhou no álbum Clube da Esquina não frequentava essa esquina. Dos caras conhecidos do Clube da Esquina que frequentavam a esquina, era eu.

PAS: O próprio Milton também não?

LB: Milton também não. Essa esquina só tinha gente desconhecida, inclusive eu. Eu era o mais desconhecido de todos.

PAS: E o Edifício Levy, um outro lugar histórico do clube na cidade, não tem nada a ver com a esquina?

LB: Nada, o Edifício Levy é no centro de Belo Horizonte. Quando eu tinha 10 anos, minha família resolveu se mudar do bairro de Santa Tereza para o centro de Belo Horizonte. Minha mãe queria fazer uma escola na casa de Santa Tereza. Então minha família alugou o apartamento no centro de Belo Horizonte, que era no Edifício Levy. Nós ficamos seis anos no centro de Belo Horizonte.

PAS: E no Edifício Levy é onde você vai conhecer Milton?

LB: É, esse ano de 1962 foi totalmente mágico para mim. Eu tinha 10 anos. Mudei para o Edifício Levy e descia a escadaria, minha família morava no 17º andar. Um dia estava descendo a escadaria a pé, no mesmo mês em que tinha mudado para lá. O cara com 10 anos de idade dispensa o elevador e vai descendo no corrimão de bunda, né? Era o meu caso. À medida que ia descendo o corrimão de bunda, eu escutava um violão e uma voz, um falsete. Eu me aproximava cada vez mais daquele violão, daquele falsete, e cheguei no quarto ou quinto andar, não lembro em qual andar era a pensão onde Bituca morava e Wagner Tiso morava também. Encontro um cara tocando violão lindamente. Naquela época fazia diferença, eu era uma criança de 10 anos e ele era um adulto de 20. Mas a música me encantou, o que ele estava cantando. Aí, sentei na escadaria e ele ficou conversando comigo: “Você mora aqui no prédio? Você parou para me ouvir tocar, gosta de música?”. Eu falei: adoro música, na minha família todo mundo gosta. Você vai até conhecer meus irmãos mais velhos que moram aqui, que gostam de tocar violão, de cinema, de arte. Ele falou: “Acho que conheço algum irmão seu”. E eu: continua tocando aí, está bonito [risos].

PAS: Ele já conhecia algum Borges ou você foi o primeiro?

LB: Acho que já conhecia. Ele só não tinha ido à minha casa ainda. Passou mais um mês, e eu, andando na rua no centro de Belo Horizonte, conheci um cara em cima de um patinete. Era Beto Guedes. Duas pessoas muito importantes na minha vida, Bituca e Beto, conheci pelo acaso. Beto era da mesma idade que eu, estava em cima de um patinete, aí eu quis o patinete para mim, tentando combinar com ele um escambo qualquer. Esse ano de 1962 foi tão mágico, tão importante, que no primeiro semestre comecei a aprender a tocar violão através do disco Chega de Saudade (1959), do João Gilberto. Na minha casa, o pessoal era bossa-novista e jazzista. Vi até uma entrevista do Beto em que ele fala que, quando a gente fez nossa bandinha cover The Beavers, com 12 anos de idade, eu não tocava nenhum instrumento. Tocava, sim, só que eu tocava bossa nova, e Beto nunca gostou de bossa nova. E eu não tocava Beatles. Beto tinha muito mais prática de instrumento, porque o chorinho tem muitas pestanas, muitos acordes similares que remetiam mais aos acordes dos Beatles. As músicas do Tom Jobim, o Chega de Saudade, é tudo dissonante. Costumo dizer que aprendi a tocar violão pelo lado mais difícil. Porque tocar Beatles é só acordes maiores, menores, perfeitos, e está tudo certo, mas tocar bossa nova era difícil.

PAS: Tem a história de quando você está com Milton e pede para beber álcool também, foi uma espécie de rito de passagem para a vida adulta e para o Clube da Esquina?

LB: Eu tinha 15. No centro de Belo Horizonte eu já bebi. Teve uma vez que tomei um porre no Natal que fiquei maluco, maluco. Eu tinha uns 14 anos, foi meu primeiro porre da vida. Aí, com 16 anos, a gente voltou a morar em Santa Tereza, encontrei meus amigos de infância em Santa Tereza que eu tinha largado com 10 anos para ir morar no centro.

PAS: É nesse momento que você entra para o clube, deixa de ser um menino e passa a ser um homem, cantor, compositor?

LB: Tem a ver, quando eu tinha saído do Edifício Levy e voltado a morar em Santa Tereza, Bituca sempre ia na casa da minha mãe e já era um cara famoso, já tinha feito “Travessia” (1967), já estava em festival internacional. Nesse dia ele falou comigo: “Lô, vamos no bar comigo”. Bora lá, vamos no bar. Chegou no bar, falou: “Eu quero uma batida de limão”. E eu falei: uma batida de limão.

PAS: Até chegar o momento do disco Clube da Esquina, você chegou a ter uma vida de artista, se apresentar em Belo Horizobnte em show ou cantando em bar?

LB: Não, cara, fui sem nenhuma bagagem de música. Não era conhecido nem em Belo Horizonte. Quando fiz Clube da Esquina, Nelson Angelo, Toninho Horta e o pessoal já eram conhecidos aqui. Eu era um lado B que ficava na esquina tocando violão.

PAS: Mas também você não tinha nem barba ainda, né?

LB: Não, não tinha. Não estava na hora ainda. Mas comecei a compor muito novo.

PAS: E logo compôs “Para Lennon e McCartney” (1970)?

LB: É, essa música tem uma história maluca. Tinha muitas festas, com muito músico, muitos amigos e meus irmãos, uma família numerosa. Os amigos dos meus irmãos, e Bituca era um deles, eram muito festeiros. No dia em que compus “Para Lennon e McCartney”, estava rolando uma festa em casa, gente passando com o violão para lá e para cá. Você abria a porta dos quartos, estava alguém tocando violão. E eu, na sala, compondo “Para Lennon e McCartney” no piano. Chegou uma hora que falei com Márcio Borges e Fernando Brant, que estavam na festa: gente, estou achando que fiz uma música aqui e ninguém está prestando atenção. Vocês estão passando, conversando, e eu aqui, deixa eu mostrar para vocês. Eles falaram: “Pô, essa música é muito boa”. Marcinho falou com Fernando: “Vou decorar a música, vou ali no quarto da sua mãe fazer a letra”. Em meia hora eu fiz a música, em meia hora eles fizeram a letra a quatro mãos, e ficou pronta. E ficamos a festa inteira cantando essa música, que tinha um refrão muito fácil de decorar: “Eu sou da América do Sul/ eu sei, vocês não vão saber/ mas agora sou cowboy/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais”. Aliás, consigo identificar muito bem quem é quem nessa letra de dois parceiros, as partes A são do Márcio: “Por que vocês não sabem do lixo ocidental?/ não precisam mais temer…”. E o B tem tudo a ver com Fernando Brant: “Eu sou da América do Sul/ eu sei, vocês não vão saber…”. Isso é a cara do Fernando Brant, o refrão da letra é dele. E Bituca gravou logo em seguida.

PAS: Quando vocês compunham essas primeiras úmsicas já estavam imaginando na voz do Milton, ou não passava por isso?

LB: Eu não imaginava na voz do Milton, imaginava na voz do John Lennon, do Paul McCartney, do George Harrison [risos].

PAS: Eles teriam que gravar uma música falando que não iam saber de vocês [risos]?

LB: Seria cruel [risos], né?

PAS: Será que eles sabem dessa letra, ou melhor, que Paul McCartney sabe?

LB: Paul esteve aí recentemente, tirou uma foto com Bituca segurando esse disco. Segundo o filho do Bituca me contou, Paul se interessou pela faixa “Para Lennon e McCartney”. Ele não escutou, só falou: “Ué, tem uma música que chama ‘Para Lennon e McCartney’? Essa música é para nós?”. E perguntou para o filho do Bituca: “Quem é esse
Lô Borges?”. Ele viu que a música não era do Milton. Fiquei todo feliz, né? Ele deve ter escutado na Inglaterra, em Nova York, na casa dele. Não deve ter escutado no Brasil. Se é que ele escutou. Mas acho que deve ter escutado, sim, viu?

PAS: Pode ser que não tenha entendido ou prestado atenção na letra?

LB: Esse pessoal é muito bem assessorado, talvez tenham lido a tradução da letra e ele não tenha gostado. A gente não sabe e vocês não vão saber [risos], já está escrito na letra. Se fosse um beatle, eu não ia gostar dessa letra.

PAS: Como aconteceu o encontro da turma do Clube da Esquina com o ex-presidente Juscelino Kubitschek? Você esta ali?

LB: Estou no meio ali, com 15 ou 16 anos [o encontro aconteceu em 1971].

PAS: Qual é o contexto disso? É em Diamantina, vocês o encontram na rua?

LB: A história é a seguinte: Bituca já fazia sucesso, foi na cola do disco do Milton de 1970, que fez sucesso com “Para Lennon e McCartney”. A gente estava fazendo uma reportagem para a revista O Cruzeiro, onde Fernando Brant era repórter. E a revista Manchete, que era a concorrente da O Cruzeiro, estava fazendo uma entrevista com JK em Diamantina no mesmo dia. Como Diamantina não é uma cidade muito grande, nos cruzamos na porta de uma igreja daquelas, por acaso mesmo. Tem um fato curioso, você não acredita qual o título dessa matéria d’O Cruzeiro: “Os Beatles brasileiros” [risos].

PAS: É Fernando Brant quem assina a reportagem?

LB: Não sei se é ele que assina. Não lembro mais se ele estava só de artista ou de repórter. Mas sempre tem um editor que dá um título, esse título com certeza não é dele. Tem um fato engraçado do JK, que alguém falou para Bituca: “Toca uma música com Juscelino aí”. Sabe o que o Juscelino falou, cara? “Toca qualquer uma, menos ‘Peixe vivo’, que eu não aguento mais ouvir essa música [risos]”. Em qualquer lugar do mundo que ia, tocavam “Peixe vivo” para ele.

PAS: A canção “Dois Rios” marca um encontro inesperado, entre você, Samuel Rosa [da banda Skank, que gravou a umsica em 2003] e Nando Reis. O que significou esse encontro para você?

LB: Primeiro tenho que contar a história de por que conheci Samuel. O Skank estava lançando o primeiro disco, que tinha a canção “Te Ver” (1992). O grupo ainda não era muito famoso, estava começando a estourar. E eu estava gravando um disco chamado Meu Filme (1996), com produção de Chico Neves e Ronaldo Bastos, no Rio. Esse disco tem até uma música minha com Caetano Veloso, a única parceria que cantei com ele até hoje, porque generosamente topou cantar comigo nesse Meu Filme. O disco era eu sozinho tocando três violões, o grupo instrumental Uakti e o percussionista Marcos Suzano. Tem uma letra linda do Bituca para mim, “Alô”, e ele toca sanfona nessa faixa. Estou falando isso porque encerrei esse disco gravando uma canção do Skank, “Te Ver”, que tinha acabado de aparecer. Um dia, em uma festa aqui em Belo Horizonte, o Skank já estourado, me apresentaram Samuel Rosa, e ele diz: “Cara, você é meu ídolo! Você me deu a alegria máxima da minha vida. Nem nos meus melhores sonhos eu imaginava que você fosse gravar uma música minha!”. Gravei lá do meu jeito. E Samuel falou: “A gente podia juntar forças, misturar Clube da Esquina com as coisas que eu faço”. Antes das nossas primeiras parcerias a gente fez um show que teve uns 40 ensaios. Misturar Skank com Clube da Esquina não era uma coisa tão fácil, porque o Skank estava no começo da carreira, naquela fase ska. Era como misturar carne de porco com doce de leite. Passado um tempo, eu e Samuel ficamos grandes amigos, fizemos turnê e tudo, e começou a nossa parceria.

PAS: “Dois Rios” foi a primeira?

LB: Tem uma antes, com letra do Rodrigo Leão [“A Última Guerra” (2000)], mas é meio fake essa parceria. Samuel fez sozinho, queria ser meu parceiro, botou meu nome lá [risos]. Eu dei um palpite só, mas um palpitezinho assim. Vários palpites. E em “Dois Rios” não foi tão diferente, não. Samuel me ligou: “Lô, estou aqui em casa há três dias tentando fazer uma música e não consigo sair do A e do B, está faltando você meter o bedelho aqui para mim. Você não quer vir aqui em casa?”. Beleza, cara, vou na sua casa, tranquilo. Fui, e ele me mostrou “Dois Rios”, que, na minha opinião, já estava muito bem encaminhada, quase pronta.

PAS: A letra é do Nando Reis?

LB: A letra é do Nando. Passei uma tarde na casa do Samuel, só nós dois, aí fiz a minha parte, e Nando depois escreveu a letra: “E o meu lugar é esse ao lado seu, meu corpo inteiro/ dou o meu lugar, pois o seu lugar/ é o meu amor primeiro/ o dia e a noite, as quatro estações”. Essa parte é minha contribuição com a música. Botei um intermezzo em “Dois Rios”. Considero que se tiver 25% meus, está bem avaliado. Samuel não concorda comigo. “Não está pronta, Lô, está faltando um intermezzo”. Então vamos lá. Estou lá com o violão, nós dois com dois violões, aprendi a tocar a parte dele e, de sopetão, mandei esse intermezzo.

PAS: Deu liga, porque depois fizeram outras parcerias, você e Samuel fizeram show juntos.

LB: É, perguntei para ele quem ia fazer a letra dessa música que a gente tinha acabado de concluir. Samuel falou: “Estou compondo muito com Nando Reis, queria chamar ele para escrever”. Pô, legal para caramba! Em 2023 aconteceu uma coisa superinédita, num show corporativo do Samuel aqui em Belo Horizonte: eu, Nando e Samuel cantamos “Dois Rios” pela primeira e única vez até agora, ao vivo, os três autores juntos. Não era nem Skank mais, já tinha terminado. Depois fiz outras com o Samuel. Foi muito bom, Samuel é uma coisa muito boa. Estou fazendo muita música, muito disco. Agora tirei um ano para não compor mais. Não dá para lançar dois discos por ano, igual Neil Young lança. A gravadora não quer, os parceiros da indústria fonográfica não querem. Falei: para a alegria da minha banda e dos meus produtores e técnicos, este ano vou cair na estrada com vocês. Falaram: “Pô, finalmente! Você faz muito pouco show”. O pessoal tem que ganhar dinheiro, né?

PAS: A pergunta inevitável: o que você vai estar fazendo nos 60 anos do Clube da Esquina?

LB: Nos 60 anos do Clube da Esquina vou estar fazendo 80 anos. Se o pessoal não esqueceu com 120, 20, 30, 40, 50, acho que a probabilidade de esquecerem com 60 é muito pequena. Os fatos mostram que Clube da Esquina é u ponto fora da curva, do ponto de vista de ele se renovar década a década, e o pessoal comemorar e celebrar. Tem grande chance de eu estar fazendo disco.

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