Uma das várias imagens apavorantes de Avante, o novo disco de Siba, encontra-se na faixa “Canoa Furada”: “Quem veio foi um tubarão pra me arrodear/ será que ele quer me lanchar?/ será que eu aguento a dentada?/ a canoa furada já tá perto de afundar”.
O artista pernambucano deve estar falando de suas próprias experiências. Mas estes dias em que o FBI norte-americano prende cidadãos de outras nacionalidades e arrebenta sites de compartilhamento de música fazem a imagem remeter diretamente à derrocada da indústria fonográfica pesada (com o grupo Mestre Ambrósio, Siba chegou a pertencer ao elenco da gravadora Sony, no pico de ascensão do movimento manguebit, nos anos 1990).
Aquilo que costumamos chamar espírito do tempo serve para encadear figuras disparatadas à “Canoa Furada” de Siba, das gravadoras ao Megaupload, do naufrágio do navio Costa Condordia na Itália aos vários Titanics simbólicos de 2012. Talvez coubesse à metáfora até mesmo do manguebit pernambucano, hoje um barco à deriva às portas da maioridade.
Em 2012, a geração fora-do-eixo bate à porta, pulverizada em incontáveis coletivos dispersos pelo país inteiro e tributária em quase tudo dos manifestos dos caranguejos com cérebro de 18 anos atrás. Depois de extrair o sumo dos ensinamentos parabólicos de Chico Science, Fred Zeroquatro e companhia, a molecada coloca seus pais simbólicos nas cordas: será que, como desafiam, o manguebit ficou perdido nalguma esquina do passado?
É um tema crucial para Pernambuco, caldo de cultura histórico de muita tensão entre tradição e inovação, que já nos legou Lampião, Luiz Gonzaga, Luiz Inácio Lula da Silva, Ariano Suassuna, o Calabar ficcional de Chico Buarque e o rap-rock-embolada de tambores bem reais de Chico Science & Nação Zumbi.
Imerso na massa nutritiva dramaticamente fértil do manguebit, o Mestre Ambrósio de Siba parecia até modesto, mais interessado em rabecas, maracatus e carrancas folclóricas que em experimentos antropofágicos, levantes tropicalistas ou coisa que os valessem. Nada como o tempo histórico para mostrar que as coisas nem sempre são exatamente aquilo que parecen.
Se algum dia Siba pareceu radical na devoção ao tradicionalismo, hoje soa qualquer coisa, menos acomodado, estagnado ou parado no tempo. Transitando dos maracatus da aldeia pernambucana para o pop tribal das favelas congolesas, ele exalta sintonia, ainda que involuntária, com vanguardas periféricas como o tecnobrega paraense, o kuduro angolano, a Bollywood indiana, o brega nordestinos de beira de estrada ou dos morros funkeiros cariocas. A tradição é a inovação, e vice-versa, seu Avante parece clamar.
Década e meia atrás, o Mestre Ambrósio e o Fuloresta do Samba pareciam pender mais para a rigidez do movimento armorial de Ariano Suassuna que para a música informática e o programa ideológico arrojado do mangue. Hoje, Siba ostenta leveza acumulada suficiente para, aqui e ali, desabrocnar mais manguebit que os mangueboys mais excêntrico que os fora-do-eixo.
Não deve ser por acaso ou coincidênca que em “Preparando o Salto” ele borboleteia, ainda algo desesperado: “Daqui a pouco meus dois braços serão asas/ e eu me levanto renascido e cru”.
Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.
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