E então o rock’n’roll desceu das tamancas, no festival musical que faz da sustentabilidade seu mote principal. A turma do Peter Gabriel tretou com a turma do Roger Moreira, e a treta ocorrida num descampado no interior de São Paulo correu mundo, fazendo efeito em roqueiros de Chris Cornell a Lobão a Brian Eno. Até o tão viril rock’n’roll pode viver seus dias de revista de fuxico e fofoca, por que não?
Não estou indo aos shows do SWU, nem acompanhando pela televisão. Mas o Twitter, em casos como esse, é quase suficiente para informar a espinha dorsal do que a gente precisa saber: a turma do Peter Gabriel, gênio por trás do grupo britânico setentista de rock progressivo Genesis, tentou dar um passa-fora na turma do Roger, gênio por trás do grupo brasileiro oitentista de rock new wave Ultraje a Rigor. Atenção para a próxima frase: tentou, mas não conseguiu.
A maioria dos artistas e bandas daqui prefere historicamente abafar o hábito corrente em festivais multinacionais, de os brasileiros serem tratados feito lixo perante os sempre gringos “astros principais”. A discrepância causa boataria desde pelo menos 1985, no primeiro Rock in Rio, quando a moeda corrente jurava que um Whitesnake valia algo como uns dez ou cem ou mil Erasmos Carlos.
O caso mais rumoroso foi o dos preparativos para o Rock in Rio 3, em 2000, quando os maus tratos e as mamatas diferenciadas para nomes estrangeiros motivou a saída em bloco das bandas “subdesenvolvidas” Charlie Brown Jr., Cidade Negra, Jota Quest, O Rappa, Raimundos e Skank. O público brasileiro mais pagapau abaixou o topete e se satisfez com as atrações internacionais da hora. Pouco se reclamou da exclusão do rock nacional do festival que levava rock no nome e Rio no sobrenome, e ainda por cima sobraram garrafadas, palavrões e vaias para o baiano Carlinhos Brown – simplesmente porque ele estava se apresentando, e não porque não tivesse acompanhado os colegas na decisão de dizer um basta às humilhações, ou rebeldia parecida. Afinal, o rock é rebelde ou não é?
Ontem, vasculhando o Twitter durante a confusão, vi espertinhos brasileiros xingando Roger de otário e louvando o talento do Genesis em comparação ao do Ultraje – enquanto o gênio britânico Brian Eno tentava entender o que tinha acontecido, sem aliviar a barra do compatriota contemporâneo.
Perdão, mas discordo em gênero, número e grau dos espertinhos. Desde o primeiro momento da treta, me voltou à cabeça a letra de “Inútil” (1983), rock de protesto juvenil que celebrizou o Ultraje a Rigor e virou um hino informal da redemocratização do país, após duas décadas de ditadura.
“A gente não sabemos escolher presidente/ a gente não sabemos tomar conta da gente/ a gente não sabemos nem escovar os dentes/ tem gringo pensando que nós é indigente/ inútil, a gente somos inútil”, cantava o jovem Roger, não sem requintes de crueldade autodirigida. Minha geração aprendia com rocks como “Inútil” a protestar contra a impossibilidade de votar – e aprendia, ao mesmo tempo, a nos autoconsiderar um povinho de merda.
Muita água rolou por baixo da nossa “bridge over troubled water” desde 1983. O Ultraje acabou e voltou um bocado de vezes. Nas paradas locais de sucesso, o rock virou sertanejo que virou pagode que virou axé que virou grunge que virou… Pós-sucesso, o roqueiro Roger cometeu a audácia de posar com o pau de fora numa revista gay. Mais recentemente, ele próprio virou brigão de Twitter, daqueles que volta e meia expelem vaticínios mais para retrógrados e reacionários que para progressistas e, hum…, roqueiros.
Particularmente, amanheci a segunda-feira (14) orgulhoso do Roger, de quem costumo discordar muito mais que concordar. Não se foi tudo espontâneo, ou se algo de concreto lhe veio à mente ao rejeitar a “proposta” da gangue do Peter Gabriel, de encolher seu show de uma hora para meia hora (para comodidade do playboy gringo, devo supor?). Mas a postura que o autor de “Inútil” teve foi bem diferente daquela de quando era jovem e depreciava a si próprio e a seu próprio país cantando que “a gente faz filho e não consegue criar”, “a gente pede grana e não consegue pagar” (alô, FMI), “a gente joga bola e não consegue ganhar” (nos tempos em que futebol, supostamente, era só o que tínhamos a oferecer).
Ainda na noite de ontem, @roxmo (ou seja, o Roger) escreveu para Peter Gabriel, em inglês, via Twitter: “Hey, @itspetergabriel! Boa sorte no seu voo para casa! Pensei que você fosse um artista; quando você se tornou um cuzão? Ativista mundial, meu cu…”. Que deselegante!, diria Sandra Annenberg. Sim, mas consideremos que nem sempre um roqueiro brasileiro de primeira, segunda ou quinta viagem se expõe assim publicamente, em legítima autodefesa contra as arbitratriedades dos sustentáveis e dos insustentáveis.
Hoje, Roger já estava todo feliz outra vez no Twitter, porque sir Gabriel lhe teria ligado, em pessoa, para pedir desculpas. Não que convença muito a fábula “o médico e o monstro” aplicada a Mr. Gabriel, um lorde, e seu “manager”, um ogro – ou aplicada a qualquer outra estrela, do rock ou fora dele.
Mas a liçãozinha de sustentabilidade que eu tiro desse SWU (“starts with you”, “começa com você” em inglês) é que sempre vai ter gringo achando que nós somos indigentes – enquanto nós acreditarmos que somos indigentes. Muito conterrâneo zoou o Roger a valer porque o pau dele não parecia lá muito grande na G Magazine – mas quem de nós, roqueiros ou não, tem pau grande o suficiente para botar na mesa, desmentir bobagens ditas 25 anos atrás e exigir respeito de igual para igual a lordes britânicos de nariz empinado?
* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil
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