Sobre o tema da Redação Enem 2019, o jornalista, crítico musical e biógrafo Jotabê Medeiros afirmou: “Não lembro mais como se faz uma redação. Mas eu lembro como não se faz.” E, então, se desafiou a escrever uma, que certamente tiraria zero ao ser corrigida por um avaliador bolsonarista.
Um redação para o Enem
O cinema tem lembrado à humanidade, ao longo de mais de um século de existência, que os conceitos de humanismo são inegociáveis, além de ter acalentado nossas aspirações de liberdade, democracia, solidariedade, nossas angústias filosóficas, sentimentais, nossas expectativas formais e nossa natureza igualitária. É possível encontrar essas abrangências nos filmes da Disney, dos irmãos Meliès, de Steven Spielberg, de Glauber Rocha, de Woody Allen, de Mazzaropi, de Scorsese, da Pixar e de milhares de realizadores em todo o mundo. Qualquer pessoa que vê E.T. O Extraterrestre reconhece imediatamente que se trata ali de uma fábula de acolhimento do estrangeiro, de uma demonstração da força da tolerância e da superação do preconceito.
O cinema não resolve as contradições. Nem é esse seu papel, mas cuida de tratar delas, de evidenciá-las e de, eventualmente, fazer as plateias sonharem com finais alternativos, algo próprio da condição humana. Por isso, cada vez que um regime autoritário busca fortalecer sua sanha negacionista, o cinema é um dos primeiros inimigos declarados dessa corrente. O Brasil, lamentavelmente, vive essa experiência nesse exato instante.
Quem propôs a Redação Enem 2019, tema que ocupa nesse instante as atenções de 5 milhões de estudantes, foi o mesmo governo responsável por cortar 43% do Fundo Setorial do Audiovisual. É esse fundo que financia a produção cinematográfica nacional. Inicialmente, o governo anunciara a total extinção da Agência Nacional de Cinema (Ancine), órgão que se ocupa de fomentar a produção, a exibição e a promoção do filme brasileiro. Finalmente, em uma cruzada de exibição pública de preconceito de gênero, o governo suspendeu um edital que incentivava, entre outros, filmes LGBT. Face à iminente troca de comando na Ancine, o presidente Jair Bolsonaro disse que pensa em colocar ali um nome “terrivelmente evangélico”. Esse é um eufemismo para não dizer “terrivelmente avesso à diversidade”.
Essas intervenções mostram com clareza que noções de democratização do acesso, republicanismo e visão igualitária não constam nem remotamente entre as preocupações do atual regime. Que é por puro cinismo que propõem essa questão aos estudantes. Sua ação praticamente paralisou a produção do cinema nacional. E, mesmo que o novo governo tivesse entendido a expressão “democratização do acesso” como uma necessidade de ampliar as plateias, formar novos públicos, algo que fosse além do fomento aos filmes, nada mostra que haja um só movimento nessa direção.
O Brasil tem uma grande dívida de usufruto de cultura para com sua população. Preços altos de ingressos, de livros, de assinaturas, tudo isso torna a universalização do acesso algo a ser perseguido pelas políticas públicas. Em 2018, 9% dos brasileiros nunca tinham ido ao cinema, e 21% tinham frequentado uma sala de cinema pela última vez havia mais de um ano, segundo pesquisa da J.Leiva em todas as capitais do País. Há uma relação direta entre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das capitais e o acesso a bens culturais. Mas a ação política é também preponderante. Recife é uma das capitais que mais têm produzido cinema fora do circuito, fomentando uma produção de qualidade que representa o Brasil em inúmeros festivais internacionais – não por acaso, é um diretor oriundo dessa cena de vitalidade, Kleber Mendonça Filho (de Bacarau, agora, e antes O som ao redor e Aquarius), que veio a se tornar, simbolicamente, o maior inimigo dos sacripantas governamentais no poder. Por causa de sua atenção à produção de qualidade, Recife apresenta uma média de público cinematográfica acima das demais capitais.
O cinema em salas de exibição vive sua própria circunstância de crise por fatores tecnológicos. Hoje, jovens de 12 a 24 anos consomem filmes e séries majoritariamente pela internet, em plataformas de streaming e vídeo on demand. É uma questão que muda a cultura da produção, seu tempo de maturação e a condição do filme artesanal. A chegada da Netflix, que produz seus filmes desde 2017, criou um cenário novo para o próprio conceito do que é democrático em termos de acesso. Mas é evidente que esse é um debate que não interessa ao governo brasileiro. A menos que consiga achar uma forma de lucrar em meio à fragilização da produção nacional.
O tema da Redação Enem 2019 que propuseram aos estudantes é, portanto, farsesco. É uma farsa porque os articuladores de tal temática não estão dispostos a encarar o resultado de uma redação que mostre o que têm feito para aniquilar qualquer sonho de democratização de acesso ao cinema. Esse governo transferiu a estrutura do Conselho Superior de Cinema para a Casa Civil da Presidência. Assim, o objetivo é de controlar tudo aquilo que é produzido e que possa representar a pluralidade do pensamento nacional; também aniquilou o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual para fugir das representações da sociedade, coisa que aflige todo regime autoritário. Agora, ele solicita à vigorosa massa crítica do novo pensamento estudantil nacional que finja que não sabe de tudo isso e escreva sobre algo que é objeto do seu mais hediondo desprezo. Fascistas! Não passarão!