minha mãe, que é uma mulher simples de 71 anos, já entendeu todo o riscado: “você está fazendo matérias muito diferentes desde que saiu da ‘folha’, seu trabalho mudou muito, não é?”. é, mãe, isso mesmo, yeah, yeah! mas é que mãe é mesmo assim, mãe nunca estranha e sempre se adapta rapidamente a qualquer coisa (pai também, mas pai fica mais quietão, escutando, observando). às vezes noto uma perplexidade maior entre amigos, conhecidos, colegas, desconhecidos leitores de jornal. o susto mais comum é meio assim “ah, mas você não vai mais só escrever sobre música?” (alô, mariana!), “não vai mais escrever sobre música?”. eu respondo: “vou, vou, vou”.
mas não só, e é a intuição que anda dando todas as cartas (alô, cigana!) no meu tarô. mas, amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos, isso é mera ilusão, viver feliz (num “paraíso” comodista)… porque eu nunca escrevi só sobre música, né? aparentemente, dentro do meu armarinho só cabia música, mas sempre teve tanta coisa mais, né?… no mais, enquanto eu escrevia sobre música a música escrevia sobre mim, dentro de mim. e sinto que hoje em dia ela, a música (com lindas exceções), está assustadiça, medrosa, amedrontada, semi-silenciosa. diante da perplexidade, cala-se, parece não querer se arriscar…
para lá da música, quero aprender a escrever sobre as coisas, para que as coisas possam escrever sobre mim, dentro de mim… e, conforme isso for acontecendo, a música vai ficar, e vai voltar ainda mais forte, mais vibrante, mais colorida (alô, danny boyle!) do que nunca.
mas, enquanto dona loba não vem, a música continua bela e formosa, dentro das coisas, duvida? então pega a reportagem sobre os ciganos, da carta capital 350, que reproduzo abaixo (furando a fila), e repara só como ela é cheia de música, dá até para ouvir os violinos.
aumentando um ponto, conto o conto dos ciganos brasileiros, recém-descobertos por mim, e tão-tão-tão-tão fascinantes. dos mais vistosos (e maltratados) dos ciganos, sabemos que vivem sem eira nem beira, de parada em parada, de porto em porto, de palco em palco, de expulsão em expulsão, de tombo em queda. em turnê pelos campos da vida, eles sabem, como milton nascimento, que todo cigano tem de ir onde o povo está – porque o povo É cigano, o cigano É o povo.
é então que eu te proponho. você, que porventura esteja saudoso dos entreveros de pas com a mpb, deixa o rei congo no congado, abre as cortinas do passado-presente-futuro. pense bem, pense outra vez, tente outra vez, pensa em mim, pense menos, pense nas mulheres mudas, telepáticas. olha só que linda história de ciganagem, de nomadismo, de gitas, zíngaras e nuvens ciganas assoma sobre seus ombros, sob seus ouvidos.
pense, com aa lma cigana, na tez sofrida, nômade e maltratada de sidney magal, perla, roberto carlos. mas não só nas deles, pense também nas de ney matogrosso, raul seixas, elis regina, joão gilberto, caetano veloso, maria bethânia, gal costa, tom jobim, rita lee, alberto marsicano, sá & rodrix & guarabyra, milton, os borges, o clube da esquina todinho, bosco & blanc, arnaldo baptista, renato teixeira, rolando boldrin, inezita barroso, itamar assumpção, cássia eller, clara nunes, jorge mautner, fafá de belém, zeca baleiro, rita ribeiro, chico césar, lenine, maroca, poroca, indaiá, hermeto pascoal, elba ramalho, zé ramalho, egberto gismonti, marcos valle, jorge ben e sua mãe lenheira tuareg, wanderléa, erasmo carlos, pense em quem mais você puder. ou quiser hão de ser todos ciganos nômades brasileiros auto-exilados desapegados do cio da terra, de fato ou de direito, de cama (uma esteira) ou de fama. ciganos como juscelino kubitschek, ciganos como a política brasileira, ciganos como os jogadores de futebol, ciganos como a mpb, ciganos como o brasil.
quem aí não tiver a alma cigana atire a primeira gotícula de ilusão (e inicie a “guerra dos mundos”).
VIDA CIGANA
Herdeiros de uma milenar cultura nômade, eles lutam contra o preconceito e pela cidadania
Por Pedro Alexandre Sanches
Fotos de Olga Vlahou
“Somos a minoria das minorias, o elo mais fraco da corrente”, afirmava pelos corredores de uma conferência sobre igualdade racial, na semana passada, em Brasília, o cigano curitibano Cláudio Domingos Iovanovitchi, de 48 anos.
É fato: a delegação cigana só conseguiu levar a Brasília 25 representantes, que se diluíram numa população flutuante de cerca de 6 mil participantes. Dentro de uma forte maioria negra e mulata, distribuíam-se minorias de brasileiros descendentes de indígenas, caboclos, árabes, judeus, palestinos e… ciganos.
A 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, note-se, era ocasião especial. A diluição dos ciganos se agrava se for considerada a população brasileira como um todo. Você, por exemplo, já viu um cigano em sua cidade, em seu bairro, em sua rua? Pode não ter visto, mas, segundo estimativas variáveis e pouco precisas, a população cigana estaria hoje entre 600 mil e 1 milhão de pessoas dispersas por todo o território nacional.
Seja como for, algo de novo acontecia sob o céu azul de Brasília (e do Brasil). Pode ser fato a condição de minoria entre minorias (“aqui na conferência, somos nós os negros”, cravou o espanhol abrasileirado Gagu Emanuel Moreno). Mas a presença da delegação cigana numa conferência promovida pelo governo Lula, via Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), já era um sinal de que a população cigana do Brasil pode estar vivendo um processo inédito de descoberta e auto-afirmação.
Outro sinal da saída incipiente do armário: principal porta-voz cigano na conferência, Cláudio Iovanovitchi é, além de integrante da Seppir, o presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci), que há pouco começou a se articular no Paraná e já tem sedes em São Paulo e no Rio Grande do Sul.
Politicamente, ele encara o apartheid cigano como uma modalidade de preconceito racial: “Discriminação racial não acaba por lei ou decreto, só por geração de conhecimento. É preciso entender o outro, se colocar no lugar do outro”.
A epopéia dos ciganos costuma ser pouco abordada publicamente pela sociedade. Em termos históricos, é nebulosa e em geral mal documentada, em parte porque seus dialetos não têm registro escrito, o que para alguns ciganos significa, paradoxalmente, trunfo de preservação de uma identidade fechada e exclusiva. “O dialeto é nossa arma. Não existe a língua escrita”, diz o delegado ambiental e estudante de direito Farde Estephano Vichil, 38 anos, cigano rom, de ascendência iugoslava, que preside a Apreci de São Paulo.
A natureza nômade dos ditos ciganos dataria de cerca de 4 mil anos atrás, a partir da expulsão e diáspora de um povo originário de territórios localizados onde hoje ficam a Índia e o Paquistão.
Estigmatizados desde então por alcunhas xomo “ladrões”, “desonestos”, “trapaceiros”, “imorais” etc., disseminaram-se de expulsão em expulsão por Ásia, Europa e, afinal, o chamado Novo Mundo, pelo qual espalharam também o fascínio externo por valores como exotismo, musicalidade, dons artísticos, sensualidade etc.
No Brasil, as primeiras levas teriam aportado já em 1574, quando ciganos ibéricos ditos calons, expulsos de Portugal e Espanha, passaram a ser desterrados para a então colônia portuguesa. Iovanovitchi persegue as pistas de sua própria cultura: “Aqui, o cigano misturou-se com o índio e o negro. São as três etnias que têm mais dificuldades de inclusão social no País. Não fizeram quilombos porque não eram escravos, mas participaram fazendo escambo de quilombo em quilombo. Mais do que negros, os quilombos reuniam ‘bruxas’, hereges, ciganos, judeus. Nós girávamos, éramos as boas notícias que chegavam ao quilombo”.
Ele não se furta a uma pitada de ironia: “Fazíamos o papel que hoje é dos Correios”. Escândalos políticos do século XXI à parte, sublinha o orgulho: “Nós fizemos o Brasil, nossa contribuição é inegável”.
Até hoje, a maioria dos calons brasileiros vive em acampamentos precários, numa versão menos visível de Movimento Sem Terra. “O sem-terra vive nômade embaixo de tendas, mas sonha conquistar a terra. O cigano, não, ele está feliz embaixo da tenda, sem querer terra”, diz Iovanovitchi. Apesar de ter um ônibus-palco em que encena com negros e indígenas sua visão sobre a história do Brasil, ele é um cigano que estabeleceu residência fixa em Curitiba – em casa, não em barraca.
É que Iovanovitchi pertence a outro subgrupo, chamado rom, de ciganos que migraram de diversos países do Leste Europeu, sobretudo no período entreguerras. Em outro flagrante da presença semi-invisível dos ciganos no mundo ocidental, é pouco citado o fato de que o nazismo promoveu não só o holocausto judeu, mas também o extermínio de ciganos (teriam morrido de 250 mil a 500 mil, segundo estimativas também imprecisas).
Estigmatizados por sociedades que encaram com desconfiança sua personalidade nômade, os ciganos reproduzem internamente certos modelos de segregação e discriminação. Em geral, os calons seguem pobres e nômades, enquanto os rom tendem a fixar residência e progredir socialmente, quase sempre ocultos atrás da omissão da identidade de origem.
Ciganos rom como Iovanovitchi e Vichil têm sido os primeiros a quebrar o muro de invisibilidade, preconceito e segregação persistente no Brasil. “Estamos atuando em prol dos ciganos nômades, que vivem em miséria enorme. Os fixos estão aculturados, embora nunca deixem de ser ciganos”, explica Iovanovitchi.
Há personalidades mais atípicas entre os mais militantes, como a jornalista formada em letras e pedagogia Márcia Yáskara Guelpa, 64 anos, que, apesar da origem calon, vive fixa num bairro de classe média alta de São Paulo. Indiana naturalizada brasileira, é também muçulmana e, por convicção, “feminista e ateísta”.
Márcia resume três reivindicações em torno das quais a Apreci pretende a princípio se assentar, e que condensam alguns dos problemas mais profundos dos ciganos: cidadania, educação, endereço.
Devido a um misto explosivo entre marginalização por parte da sociedade e acomodação interna devida ao nomadismo e à vida precária, muitos ciganos nem sequer providenciam registro civil a suas crianças, que ficam sem acesso à educação básica, atendimento hospitalar etc.
Outro militante atípico é Carlos Kalon, nômade que correu o Brasil e a América Latina como acrobata de circo, obteve alguma ascensão social e hoje vive numa casa na periferia do município paulista de Franco da Rocha. “Sobrevivo só por ser cigano: canto, danço, vivo da música e da arte cigana”, diz ele. “Parei aqui há dois anos, tenho de ficar porque tenho um filho na tevê (o menino Igor, que participa do programa de Raul Gil) e sou funcionário público (da prefeitura tucana da cidade). Aos 53 anos, pela primeira vez consegui um emprego sem preconceito.”
Ele luta pela população calon de sua cidade, prestando cuidado e assistência a acampamentos como um de cinco barracas, localizado na divisa de Franco da Rocha com Francisco Morato, que foi visitado por CartaCapital. “Batalhamos para que os ciganos não percam sua origem”, justifica-se. Márcia Yáskara tem atuação parecida, salvaguardando um acampamento no município de Roselândia.
“O que nós reivindicamos é essencialmente cidadania. Queremos que a sociedade saiba que somos diferentes, mas que nossas diferenças não sejam entendidas como desigualdades”, diz Márcia, que faz uma ponte improvável ao refletir sobre o porquê do avanço de mobilização cigana nesses anos Lula: “Acho que as paradas GLBT estão ajudando muito a nossa sociedade. Quando eles dizem do orgulho gay, suscitam junto o orgulho de negros, latinos, ciganos, de todas as minorias que querem ser menos discriminadas”.
Há também representantes de gerações mais jovens e de um novo modo de pensar a identidade cigana. É o caso de Vitsha Nicolas Romano de Almeida, 21 anos, colega de Farde na faculdade de direito e secretário-geral da Apreci. Filho do casamento-tabu entre uma cigana e um não-cigano, Nicolas diz que até há pouco não revelava a ninguém sua origem.
“Minha família dizia para eu não dizer. Todos pensam que cigano é ladrão de criança, apesar de que eram as mães que jogavam as crianças no rio e culpavam os ciganos”, afirma, citando contrapartida cigana à má fama de “ladrões de crianças”: a Corte portuguesa no Brasil teria verificado casos de mulheres ricas que escondiam gravidezes clandestinas por baixo dos vestidos e, ao parir, abandonavam os bebês em acampamentos ciganos.
Nicolas segue: “Fiquei dez anos na mesma escola e poucos souberam que eu era cigano. Na faculdade começaram a saber agora. Não vou chegar e contar para alguém que nunca vi na vida. O que mais existe é perguntarem se não sou brasileiro, se sou estrangeiro”.
Seu caso não é incomum. “Quem é empresário rico não está nem aí, mas os que dependem de vida pública, como artistas e políticos, restringem a informação sobre serem ciganos”, diz Farde Vichil. “Existem muitos ciganos que dizem que não são, mas quem é sabe reconhecer. Escondem para não ser alvos de discriminação. Se algo acontece no bairro, quem é o primeiro suspeito? O cigano, sempre.”
Do hábito do armário emergem especulações sobre quem seriam os ciganos ocultos que desfrutam de boa posição social. Citam exemplos na sociedade brasileira (Cecília Meirelles, Fagner, Zé Rodrix, o trapalhão Dedé Santana, o palhaço Carequinha), poetas latinos (Federico García Lorca), até astros hollywoodianos (Charles Chaplin, Rita Hayworth).
Um de seus orgulhos clandestinos é o de que o Brasil teria tido um presidente cigano:
Juscelino Kubitschek. “JK teve de omitir que era, senão não seria presidente. Nunca fez nada por nós, também porque não fomos pedir”, diz Iovanovitchi. Embora raramente mencionada na historiografia, a afirmação tem o apoio de estudiosos como o geógrafo e historiador da Uni-BH e da PUC mineira Rodrigo Corrêa Teixeira e o antropólogo holandês Frans Moonen, co-autores de textos sobre a história dos ciganos brasileiros.
“Os ciganos de Inconfidentes, em Contagem, preservam o relato oral de visitas de JK às comunidades. Ele tinha origem cigana, relacionava-se com eles. Quase nenhum homem cigano se auto-intitula. Num negócio financeiro com não-ciganos, é prejudicial se assumir”, diz Teixeira. “Juscelino só falava disso na presença de outros ciganos. Nunca se assumiu, o que é comum e acontece em todos os países. No Brasil, ainda não é bom dizer que se é cigano”, concorda Moonen.
Consultado por CartaCapital, Zé Rodrix (co-autor de Casa no Campo, sucesso na voz de Elis Regina em 1972) respondeu assim à pergunta sobre sua origem: “Não sou, quem é cigano é o Wagner Tiso (músico ligado ao Clube da Esquina mineiro). Mas conheço bastante sobre os ciganos brasileiros e falo um pouco das duas línguas ciganas (romanês e calé). Tenho tias que se casaram com ciganos. Uma delas, minha tia Miosótis, foi literalmente roubada por meu tio Manoel, que depois voltou com ela para a família e se tornou sedentário, cigano apenas no nome”.
Aparentemente pitoresco, o arco amplo de possíveis ciganos, que vai de García Lorca a Carequinha e de Juscelino a Chaplin, é significativo para ilustrar o grau de disseminação e dispersão de uma estirpe nunca reconhecida por seus próprios feitos e sempre estigmatizada por crimes espalhados “democraticamente” pela humanidade, mas dos quais se tornou bode expiatório preferencial.
Não são só acampamentos precários nas periferias e ciganas cartomantes em praças centrais que são mal-entendidos e percebidos pela sociedade. Há comunidades de elite confinadas em mansões de bairros nobres como Alphaville, em São Paulo, e Taquaral, em Campinas.
“Muitos rom têm casa construída, mas não se acostumam e montam barracas no fundo do quintal. Andam de helicóptero, têm mansões e dormem em barracas luxuosas forradas com tapetes persas”, testemunha Farde Vichil. “Há ciganos que montam mansões, mas continuam viajando para todo canto. Para o cigano, a casa não é o ‘lar, doce lar’, mas sim um investimento”, complementa Iovanovitchi.
Zé Rodrix colabora com outra história: “Há ruas inteiras em bairros nobres onde só moram ciganos. A grande marca é o fato de as torneiras e maçanetas das casas serem de ouro maciço, para que possam ser levadas em caso de fuga emergencial”.
A acumulação de riqueza em ouro é outro mito fortemente ligado à cultura cigana, perpetuado talvez pela aversão a valores capitalistas como contas bancárias.
Na visita ao acampamento de Franco da Rocha, CartaCapital encontrou o lado mais desfavorecido dessa moeda. Mesmo vivendo em situação precária, em terreno emprestado por um proprietário particular, os adultos da comunidade têm, sem exceção, seus dentes frontais forrados com placas de ouro, que ornam em exuberância com as roupas de cores fortes, saias longas, lenços na cabeça e outros componentes da identidade visual cigana.
O alto contraste entre precariedade e viço atravessa cada detalhe. Sem saneamento básico, o acampamento não tem água encanada nem banheiros. Vizinhos amigos emprestam tambores de água fria, com os quais se banham, e as necessidades fisiológicas são resolvidas no matagal atrás do camping de terra batida.
Fiações expostas puxadas de postes vizinhos trazem às barracas espaçosas energia que abastece lâmpadas, tevês, aparelhos de som e até um frigobar, numa das residências. Na ausência de telefones próprios, os amigos dispõem do número do orelhão do outro lado da rua; mas vários dos habitantes possuem celulares.
“Tenho fogareiro, mas não tenho dinheiro para comprar o bujão de gás”, diz, enquanto cozinha arroz e feijão, ao entardecer, em fogueira e panelas imaculadamente areadas. Por perto, vivem agregados o cão vira-lata Popó (que posa para as fotos junto à família humana), algumas galinhas e gansos (“para matar cobra”). A tradição nômade afasta os ciganos dos hábitos de criação de animais e cultivo da terra.
Nas barracas maiores, convivem, num mesmo espaço sem divisórias, apetrechos de cozinha, equipamentos de dormitório e até, em alguns casos, automóveis (entre os quais um brasileiríssimo fusca amarelo) com que se transportam ao trabalho de pequenos comerciantes de feiras (os homens) e quiromantes (as mulheres).
“Este povo que está aqui trabalha mesmo”, defende Santiago, 19 anos, filho do protetor do acampamento, Carlos Kalon. Músico que se prepara para cursar veterinária ou educação física, Santiago visita o camping uma vez por semana, a cavalo, para conferir se está tudo bem, se a polícia incomodou, se alguém está doente etc.
“Tive um problema de coluna, a ambulância não veio me buscar. Fui dirigindo para o hospital”, conta o cigano Roberto do Amaral, 46 anos, ainda convalescente. O hospital a que se refere era particular. Evitados pela rede pública e sem qualquer convênio médico, não raro optam por custear seus tratamentos e consultas.
Algumas das crianças do acampamento já ostentam carteiras de identidade, carimbadas com a distinção “não alfabetizado”. “A gente não pára aqui, não tem tempo de procurar vaga. Ou então procura, mas não acha. A gente pagava para um rapazinho dar aula particular, mas ele parou de vir”, conta um dos pais, Xexéu Pereira, 35 anos.
Um documento que todos os adultos afirmam ter, e utilizar, é o título de eleitor. É o que diz o líder do acampamento, Euclides Pereira (o “Capitão”), 59 anos, sanfoneiro que nos anos 70 tocou com o Trio Parada Dura: “Votei no Lula”. Votará de novo? “Não sei, tem de pensar. Ele prometeu muita coisa…”
Sua esposa, Elizete Moreira (a “Preta”), 45 anos, conta da lida de ler a sorte em público: “As pessoas têm medo, a gente fica envergonhada. Tem pessoa que maltrata, xinga, quer agredir até. A gente tem de sair de perto. A gente fica ouvindo que rouba criança, fica acanhada. Só ficam criticando, mas nós não somos aquilo”.
Também nesse aspecto, o parentesco longínquo vai se colar às casas mais ricas, onde ciganas cultivam a quiromancia de modo mais estruturado, atendendo até artistas e políticos de expressão nacional. “Minha mãe lê mão, tem clientes que são empresários, pilotos de avião”, conta o futuro advogado Nicolas Romano. Demonstra-se, mais uma vez, que os ciganos se espalham por todas as classes sociais e ideologias. E passam despercebidos, em todas elas.
Militante do movimento, a ministra da Seppir, Matilde Ribeiro, dá em Brasília testemunho surpreso nesse sentido: “Os ciganos vieram de várias partes do mundo, segundo eles, são pelo menos 600 mil no Brasil, e eu não os enxergo. Ou pelo menos não enxergava”. A ministra, assim como você, via os ciganos sem saber que os estava vendo.
Iovanovitchi carimba o discurso de Matilde, avisando que a mobilização cigana vai crescer: “Vamos fazer ressuscitar a esperança, porque a esperança dos ciganos nasceu morta”. Refere-se a seus pares de infortúnio e discriminação, mas usa palavras que, em tempos de balbúrdia política e midiática, se poderiam estender aos brasileiros como um todo.
IGUAIS E DESIGUAIS
Minorias étnicas e culturais brasileiras encontram-se em Brasília
Você não leu esta notícia em nenhum jornal, nem viu as imagens na tela da Rede Globo, mas a 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial terminou com uma cena rara: uma declaração conjunta pela paz e abraços calorosos trocados pelos representantes da Confederação Nacional Israelita (Sérgio Niskier) e da Confederação Árabe Palestina do Brasil (Farid Suwwan).
Até então, a conferência se desenrolara sob a espreita de eclosão de conflitos entre os grupos judeu e palestino. Uma mesa de debates no primeiro dia terminara em bate-boca, os palestinos criticando o Estado de Israel, os judeus protestando contra a impropriedade da abordagem do tema num evento que versava sobre igualdade racial entre brasileiros.
Após a leitura da declaração conjunta, Niskier colocou seu quipá na cabeça de Suwwan, que retribuiu o gesto repousando seu manto sagrado nos ombros do outro. Do palco do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, partiram gritos de “Brasil!”, ao que a plenária reagiu se levantando e cantando o Hino Nacional Brasileiro.
Intermediadora da negociação, a ministra Matilde Ribeiro, da Seppir, foi até o púlpito e discursou aos prantos (em que era acompanhada por delegados, platéia, jornalistas, fotógrafos). “Minha maior aflição era saber se chegaríamos ao final com uma unidade de 100%. Esta é uma demonstração do Brasil para o mundo”, disse, antes de ir se abraçar a Niskier e Suwwan.
Fecho privilegiado, o tríplice abraço judeu/árabe/afro-brasileiro coroava outros episódios inusitados, como o encontro, numa mesa de debates, entre uma norte-americana e um cubano.
“Não é todo dia que posso estar num lugar assim e dizer que Cuba é uma vergonha para os Estados Unidos. Como um país pobre pode ensinar todos os seus habitantes a escrever? Nos EUA, isso é impossível, lá é preciso ser rico para aprender a ler e escrever”, afirmou Sheila Walker, da ONG norte-americana Afro-Diaspora.
“Vocês, brasileiros, têm um presidente que reconhece a dívida da América com a África e pede desculpas. É impossível isso acontecer nos EUA, onde não há como termos um presidente que ao menos ache um negro bonito”, acrescentou Sheila.
Tais choques culturais pacíficos eram, também, reflexos da Babel protagonizada por participantes trazidos à conferência de todos os estados do Brasil. “Durante o processo, todos os discriminados foram se encontrando na Seppir”, afirmou Matilde Ribeiro, não sem certa surpresa.
As delegações haviam chegado inicialmente ressabiadas, fragmentadas em subgrupos de quilombolas, indígenas, ciganos, mães e pais-de-santo, caboclos da Amazônia, muçulmanos, árabes, judeus, militantes negras lésbicas, Mano Brown (líder dos Racionais MC’s, em passagem-relâmpago) e outros tantos.
Inúmeros representantes vestiam-se de acordo com sua identidade primordial, ostentando garbosos turbantes africanos, roupas brancas de candomblé, cocares e tangas indígenas, túnicas muçulmanas, emblemas de Bob Marley etc. Aos poucos, minorias que pouco se comunicam umas com as outras descobriam semelhanças escondidas por trás de conhecidas diferenças. Dentro do espírito vigente da cultura fast-food de celebridades, causavam furor fotográfico e de autógrafos tanto astros pop como o cantor de pagode e apresentador de tevê Netinho de Paula como políticos como o secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e a senadora e militante negra Benedita da Silva.
No pólo dos “anônimos”, também ciganos e indígenas eram disputados por afro-brasileiros e muçulmanos para fotos conjuntas, e vice-versa. No terceiro dia, já eram comuns rodinhas unindo, por exemplo, uma mãe-de-santo, um indígena e u4m descendente árabe.
A essa altura, um grupo musical lotava os corredores batucando músicas como O Canto das Três Raças (sucesso de 1976 com Clara Nunes). Eram muito mais que três raças presentes, e os ciganos o comprovavam ao mesmo tempo, causando correrias rumo às suas danças típicas.
Assim como descendentes brancos de europeus eram franca minoria, também o era a mídia nacional – CartaCapital encontrava-se quase só, entre jornalistas estrangeiros e integrantes da imprensa alternativa.
A sambista Leci Brandão abriu os discursos repreendendo Lula (na presença dele) pelos rumores de que a Seppir poderia ser extinta. No encerramento, puxou sob fortes aplausos o coro contrário à omissão da imprensa local, que chamou de “apartheid midiático”.
Depois, completou: “No Brasil, infelizmente, a mídia é racista. Apesar de minha história, nunca tive uma capa de variedades nos jornais, nunca fui chamada ao programa de Jô Soares. É discriminação contra minha postura de mulher negra e politizada”.
Mais tarde, ela integraria outro caldeirão de misturas, dividindo show de encerramento na Esplanada dos Ministérios com os pagodeiros do Fundo de Quintal, o grupo afro-baiano Olodum e os rappers Rappin’ Hood e Nega Gizza.
Assim se encerrou a conferência, após discussões e articulações para promocer a marcha Zumbi + 10, em novembro próximo, em Brasília, e aprovar o Estatuto da Igualdade Racial, proposto pelo deputado Paulo Paim (PT-RS).
Em tempo: um dos que do palco gritavam “Brasil!” para emoldurar a trégua entre judeus e palestinos era o cigano Cláudio Iovanovitchi. “Minoria entre minorias”, ele fora no último dia um dos mediadores mais atuantes da negociação que culminou na declaração conjunta pela paz.
Marco da luta das minorias, a conferência, um apoteótico e promissor encontro de diferenças, evidencia as contradições brasileiras: como uma nação tão capaz de produzir tais eventos pode ser campeã de desigualdades?