Cristina Buarque, garimpeira secreta

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Cristina Buarque
Cristina Buarque na capa de seu quinto LP, "Cristina", de 1981

A morte de Cristina Buarque, neste domingo de Páscoa, fez o parceiro Zema Ribeiro evocar o texto abaixo, sobre o fazer musical da cantora e não-compositora (será?) que dedicou sua vida ao samba dos antigos, das antigas. Foi publicado originalmente na edição de 27 de fevereiro e 2008 da revista CartaCapital. Os links ao final do texto de 17 anos atrás não funcionam, porque, num projeto grosso de desmemória, a CartaCapital retirou do ar todo o conteúdo referente à produção deste jornalista e de seus colegas de FAROFAFÁ. Os links quebrados resistem como símbolo – e como memória (apagada).

Cristina recebe Clementina de Jesus para cantar o fundador do samba João da Baiana

Involuntariamente, a morte de Cristina se comunica com outro texto memorial, recém-publicado por este autor, “Lá vem a Nega Luzia no meio da cavalaria“, no qual ela é citada ligeiramente. Na concisa discografia memorial em modo menor e voz pequena de Cristina, constam sambas mangueirenses, portelenses etc., quase sempre lados B, de Cartola (“Ao Amanhecer“, “Pedem Socorro“), Nelson Cavaquinho (“Nome Sagrado“), João da Baiana (“Quando a Polícia Chegar”, em duo com dona Clementina de Jesus), Donga (“Canção das Infelizes“), Ismael Silva (“Amor de Malandro“), Bide e Marçal (“Sorrir“), Heitor dos Prazeres (“Sou Eu Que Dou as Ordens“), Zé da Zilda (“Amar É um Prazer“), Manacéa (“Quantas Lágrimas“), Jamelão (“Esta Melodia“), Geraldo Pereira (“Resignação“), Monarco (“Vida de Rainha“), Pedro Caetano (o genial “Foi uma Pedra Que Rolou“), Paulinho da Viola (o fulminante “Comprimido”), Paulo da Portela, Ary Barroso, Dona Ivone Lara, Mano Décio da Viola, Aniceto, Mijinha, Valzinho, Cyro de Souza, Tom Jobim, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Chico Maranhão, Milton Nascimento, Novelli & Cacaso, Djavan

A versão de Cauby Peixoto ficou bem mais célebre, mas consta que foi para ela que o irmão mais velho Chico Buarque compôs “Bastidores“. O grande destaque de sua curta obra gravada são os álbuns inteiramente dedicados a gênios (mais ou menos reconhecidos) do samba: Noel Rosa, Candeia, Mauro Duarte e Wilson Baptista, esse último no visceral Ganha-Se Pouco, mas É Divertido (2000). Indisposta a pegar carona no sobrenome duplo platinado Buarque de Holanda, a cantora de sambas encabulados optou, até 1994, a assinar-se apenas Cristina.

Cristina Buarque canta Wilson Baptista, em 2000

A seguir, a entrevista de Cristina Buarque (1950-2025) em CartaCapital:

A GARIMPEIRA SECRETA

“Às vezes quero parar, não é uma coisa que eu goste tanto de fazer.” A autora da frase é Cristina Buarque, 57 anos, e se refere ao ofício que ela abraça desde os 16 anos de idade, o de cantora. “De show, tenho pavor. Gosto muito de gravar, de estúdio, ensaio, amizade com músicos. Mas daquele negócio de público não gosto, nunca gostei. Gosto de fazer coro, agora estou no de Paulinho da Viola, isso eu adoro. Você fica lá atrás, é mais tranquilo, menos responsabilidade.”

Sem presença ostensiva ou peso comercial na música brasileira, Cristina tem sido uma trabalhadora incansável do samba, ao menos desde 1974, quando lançou um primeiro álbum solo. E, embora invariavelmente discreta, anda em plena atividade, como no álbum duplo O Samba Informal de Mauro Duarte (Deckdisc), que divide com o grupo Samba de Fato, às vezes quase como coadjuvante, mas sempre com elegância e precisão.

“Eu até hoje praticamente não fiz sucesso, né? Insisto, meio contra a vontade, mas não sou assim um noooome… Miúcha tem um pouco mais de nome”, ri, citando outra das irmãs cantoras e deixando de banda o mano mais famoso, Chico Buarque. Foi em dueto com ele que fez uma das primeiras gravações, de “Sem Fantasia“, em 1968. Mas a afinidade com o samba ela credita a outro irmão mais velho, Sergito. “Escutava muito os discos dele, de Aracy de Almeida, Mário Reis, Cyro Monteiro. Desde nova tinha preferência por esse tipo de velharia”, ri.

Cristina canta “Sem Fantasia”, secundada por Chico, em 1968

Lembra a primeira gravação, em 1967, num disco em homenagem ao sambista paulista Paulo Vanzolini. “Ele era muito amigo dos meus pais, então minha mãe não reclamou muito. Ela tinha muito medo dessa coisa de ser artista, não gostava, não. Ainda mais eu, que era muito nova, estava estudando, sempre fui meio vagabunda na escola.”

Ora, mas não havia, desde então, um vencedor de festival de música dentro de casa? “É, ele já fazia bastante sucesso. Mas sabe como é, é homem, né?“, ri mais uma vez. “Estudei, fiz o que mamãe queria, entrei na faculdade de fonoaudiologia. Mas não terminei. Não foi nem por causa de música, eu já estava com muito filho. Na época eram dois, agora são cinco.”

Alternou os papéis de mãe e cantora, entre 1974 e 1985, com cinco discos tão pouco difundidos quanto memoráveis e, hoje, influentes entre artistas mais jovens, como a discípula Teresa Cristina. “Ah, Teresa é amiga da gente”, minimiza. “Ela às vezes faz um negócio legal, mas não é tudo”, avalia, qual mãe protetora e exigente.

O rótulo de pesquisadora, às vezes apenso a ela pela constância com que garimpa e revela temas esquecidos nos baús do samba, é outro que não lhe agrada. “Não gosto muito, porque conheço vários pesquisadores, é um trabalho sério o que fazem. O meu é muito superficial.” Tampouco sambista ela se considera: “Sou meio encabulada para ser sambista. Sambista tem que sambar, é uma coisa mais… completa, talvez. Mas eu canto samba”, ri por último, do alto da autoridade modesta de mãe, madrinha, cantora, descobridora e redescobridora de sambas. 

entrevista, parte 1

entrevista, parte 2

entrevista, parte 3

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