Nas pegadas de Lina

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Lina Bo Bardi e Marcelo Ferraz em Santos (foto de Juan e Alícia Esteves)

A arquiteta norte-americana Jeanne Gang é um dos principais nomes da arquitetura contemporânea. É reconhecida pelo projeto do impressionante edifício Aqua Tower, de Chicago, com 82 andares e 262 metros de altura (o mais alto do mundo desenhado por uma mulher). Mas projetou inúmeros espaços, como o Writers Theatre (2016), o Arkansas Museum of Fine Arts; o Lincoln Park Nature Boardwalk (2010); e a expansão do American Museum of Natural History de Nova York, o Richard Gilder Center for Science, Education and Innovation. Perguntada sobre qual tipo de projeto ela acalenta ainda fazer no futuro, ela não titubeou em responder:

“Eu gosto de todos aqueles diferentes tipos de edifícios que se abrem para o público, que são como o Sesc Pompeia, em São Paulo. Lugares que capturam as experiências individuais das pessoas, espaços públicos, construções para abrigar arte e música. E eu quero me manter trabalhando sempre para as comunidades porque, quando você realmente vê o impacto da arquitetura na vida de alguém, que aquela construção foi adotada por aquela vizinhança, é que você sabe que está construindo para a comunidade. Tem um efeito que se espalha, e eu amo ver isso acontecer”, respondeu Jeanne. “Eu sempre mando gente lá; digo: ‘se você está indo para São Paulo, tem que ver como aquilo funciona’”.

Uma parte importante do como o Sesc Pompeia, esse projeto memorável e referencial de Lina Bo Bardi (1914-1992), veio à tona e se materializou no coração de uma antiga área degradada da Zona Oeste de São Paulo, chega hoje às mãos de leitores de todo o País com o lançamento de Ao Lado de Lina (Editora WMF Martins Fontes, 304 páginas, 94 reais), livro contendo o depoimento pessoal, os documentos, fotografias e reflexões de um jovem arquiteto que trabalhou na equipe de Lina Bo Bardi quando ela gestou o Sesc Pompeia: Marcelo Carvalho Ferraz

Marcelo Ferraz estava completando 22 anos em agosto de 1977, quando foi indicado pelo seu professor Joaquim Guedes para se juntar, como estagiário, à equipe de Lina – que, na época, não tinha escritório e iniciava o trabalho de recuperação de uma antiga fábrica de tambores no bairro da Pompeia, com o intuito de transformá-la num centro de lazer. Trabalharam juntos, ele e outro jovem, André Vainer, entre 1977 e 1986. A experiência, como sabemos hoje, foi revolucionária, mas o início foi de pura desconfiança. “Ela é fascista!”, alertaram os colegas de Marcelo quando ele contou no que estava trabalhando.

O lançamento será nesta terça-feira, 15, no Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93), às 19h30, com entrada gratuita. Marcelo Ferraz conversa com Marta Bogéa e Augusto Massi, organizadores do volume, e fará uma sessão de autógrafos do livro logo após.

Marcelo descobriria que Lina, apesar da personalidade forte (“Sou barra pesada”, advertia aos interlocutores), era obcecada com a democratização dos espaços públicos e com a firmeza nas questões éticas. “Não era nem ortodoxa nem heterodoxa, ela era do paradoxo”, disse o filósofo e poeta português Agostinho da Silva sobre Lina. A primeira tarefa que ela lhe deu foi a de sinalizar os banheiros dos operários na obra, o que fez Ferraz saber que ela tinha um outro tipo de compromisso com a integração social e a elaboração de uma façanha arquitetônica – todo o projeto foi desenvolvido dentro do próprio canteiro de obras.

Marcelo acredita que, hoje, por conta principalmente do impacto que tem o prédio do Masp na paisagem de São Paulo, a imagem que se tenha de Lina é demasiado glamurizada, e contém equívocos. Parte do seu impulso de fazer o livro é revelar as preocupações de fato da arquiteta, além de ampliar a visão que se tem sobre a produção da artista – que projetou, além do Sesc Pompeia e do Masp, o Teatro Oficina, o Museu de Arte Moderna de Salvador (Solar do Unhão), o Polytheama, a Casa de Vidro, a Casa do Benin, entre outros. Tinha uma ligação muito forte com a arte popular brasileira e com o espírito do tropicalismo.

Lina Bo Bardi foi homenageada com o Leão de Ouro da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2021, uma das maiores honrarias do universo arquitetônico. Ao Lado de Lina tem projeto gráfico de Gustavo Piqueira, da Casa Rex, e uma entrevista inédita com Lina Bo Bardi realizada pelo jornalista Fábio Altman em 1988 para a revista Veja. O fac-símile do documento original inclui anotações de próprio punho de Lina, e a orelha do livro traz texto da cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhotto. “Contra as fachadas de aparência, de imitação, a arquitetura descolonizada, brasileira, viva. Sem conforto acomodado e sem cópia. Arquitetura que visa mudar o mundo para melhor.”

Marcelo Ferraz se formou arquiteto pela pela FAU-USP em 1978. Sócio-fundador do escritório Brasil Arquitetura e da Marcenaria Baraúna, realizou diversos projetos premiados no Brasil e no exterior. Trabalhou ao lado de Lina Bo Bardi de 1977 a 1992, participando de todos os seus projetos nesse período, com destaque para o Sesc Pompeia. Foi também colaborador de Oscar Niemeyer em 2002. Dirigiu o Instituto Lina Bo e P. M. Bardi (1992-2001) e o Programa Monumenta — Ministério da Cultura (2003-2004), dedicado à recuperação de cidades históricas. Lecionou na Washington University in Saint Louis (EUA) como professor convidado e na Escola da Cidade, em São Paulo. Publicou os livros Arquitetura Rural na Serra da Mantiqueira (1992), Lina Bo Bardi (1993) e Arquitetura Conversável (2011).

“O que eu penso é que algo que é obrigatório no trabalho de Lina é a observação do comportamento das pessoas. Como as pessoas se comportam no espaço? O que fazem? E como você pode tornar essa experiência melhor? É a forma como as pessoas socializam e, depois, como você usa aquela observação do jeito que as pessoas se comportam, que ela usou para desenhar espaços. Não é apenas um monumento, não é como pensar em um edifício e fazer um ‘shape’. É mais como as pessoas vão usar aquilo”, afirmou a norte-americana Jeanne Gang, analisando o trabalho da colega ítalo-brasileira.

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