Mais de 40 mil pessoas rumaram na noite deste sábado, 15, para o Allianz Parque, em São Paulo, para ver (ouvir, cantar e acender as telas dos celulares ao som de) um dos mais celebrados grupos dos anos 1980, o Simply Red, capitaneado pela voz do britânico Michael James Hucknall, ou apenas Mick Hucknall.
A voz de Mick Hucknall é onipresente há quatro décadas nos “charts” das emissoras de rádio mais populares do mundo todo, e nada indica que deixará de ser assim nos próximos 40 anos. Ele está com 64 anos agora e é impossível não repetir o clichê após a saída do show: sua voz ficou ainda melhor com o tempo. Não mais contida, não mais polida, não mais maturada: exatamente a mesma.
Ao contrário de Danny, O Vermelho, líder dos movimentos estudantis de maio de 1968, Mick Hucknall, o Vermelho de Manchester, é outro tipo de subversivo. No auge da era do rock e do punk, Hucknall conectou o underground com o refinamento da soul music, do funk, do reggae e de algum jazz. Ele sonhava se aproximar do céu de Marvin Gaye, atingido com What’s Goin’ On. Não por acaso, antes de cantar You’ve Got It, ele celebrou (como um fã) sua colaboração com um dos compositores fundamentais da Motown, Lamont Dozier, seu parceiro nos discos Men and Women (1987) e A New Flame (1989).
Mick abriu a noite com Sad Old Red, uma canção de seu álbum de estreia, Picture Book, de 1985. É uma espécie de “manifesto do ruivão”, no qual ele canta “Eu sou o velho e triste Vermelho. Eu não quero ficar sozinho”. Sad Old Red é um jazz moderno, Hucknall é um crooner da nova era, atando as qualidades heroicas de intérpretes que o precederam à nonchalance típica de sua época, um tipo de falsa irresponsabilidade cockney.
Esse mesmo disco inicial do Simple Red, Picture Book, continha as três primeiras canções da noite (e parte expressiva do que se tornou o ouro do Simply Red, como a imortal Holding Back the Years) – além de Sad Old Red, Jericho e Money’s Too Tight (To Mention), esta dos Valentine Brothers. Hucknall canta covers de uma forma que a gente acredita que sejam canções dele mesmo. É o caso de If You Don’t Know Me By Now, que é de 1972, de Harold Melvin and the Blue Notes, grupo de soul da Filadélfia. E mesmo The Air that I Breathe (de Albert Hammond) e It’s Only Love Doing Its Thing (de Barry White).
Romântico, mas do tipo sarcástico, Hucknall acaricia e morde, eleva e empurra, a voz passando por modulações de extremos, segurando o microfone, muitas vezes, quase na cintura. “Você é tão linda/Mas tão chata”, ele canta, em You’re So Beautiful. Holding Back the Years, o hit máximo da noite, é uma canção de 50 anos atrás da banda punk que deu origem ao Simply Red, The Frantic Elevators, revisada por seu compositor, Mick Hucknall.
Uma lua enevoada sobre o Allianz Parque e uma plateia tranquila e extasiada que só levantou em peso das cadeiras quando a banda começou os acordes de Stars, canção-título do disco de 1991, um hit do qual, se alguém escapou dele, é porque estava no buraco do Saddam. Stars foi o disco mais vendido durante dois anos no Reino Unido e na Europa, vendeu cerca de 60 milhões de cópias pelo mundo.
Mick Hucknall fez do atual Simply Red um hepteto que desempenha o papel de uma big band de tintas funky, e é um absurdo poder ouvir tantas feras juntas em canções tão azeitadas pela experiência. O guitarrista é o mitológico Kenji Suzuki (que, entre aventuras de sideman com Annie Lennox e Seal, também tocou canções do Cream com o baixista Jack Bruce e o baterista Anton Fig). Kenji acompanha Hucknall desde o álbum Blue (1998), e foi sublime sua passagem ao violão.
O baterista é o suíço Roman Roth, que se espantou ao ver que Mick Hucknall é um dos raros artistas que conheceu que gravam seus discos ao vivo em estúdio, com o grupo inteiro, e não em takes alternados. Gary Sanctuary é o tecladista do Simply Red desde 2023. Nos metais está a alma do negócio. Da velha guarda, prevalece o saxofone de Ian Kirkham, que está com o Simply Red desde 1986 (e é o diretor musical da banda). No trompete, Kevin Robinson, que toca com o grupo desde 1998. De vez em quando, uma trompa surge para pintar uma estocada na tela da balada do Simply Red, como uma pincelada de Lucio Fontana.
No lugar do baixista Steve Lewinson, que morreu vitimado por um tumor em dezembro do ano passado (e tocara também com Amy Winehouse e George Michael), me perdoem a falha de apuração, mas não consegui saber quem era. Mas é difícil que saia da banda algum dia: tocando tanto o baixo elétrico quanto o acústico, impôs uma pulsão ao show que fez até as moças que tiravam as IPAs e as Pilsens dançarem nos seus quiosques. Demorou pouco, e Mick Hucknall se tornou hoje um tipo de Sinatra ou Tony Bennett de sua geração. Apreciar sua arte com esse grau de decantação é um privilégio e eleva barbaramente o astral.