Cacá Diegues via o cinema como uma janela para o desenvolvimento e a alegria da brasilidade

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Se Cacá Diegues (1940-2025) tivesse dirigido somente Bye Bye Brasil, de 1979, já teria reservado seu lugar no pódio máximo do cinema brasileiro. É, na minha opinião, o maior filme sobre o País já realizado, o retrato alegórico de uma terra em eterna mutação e desalojados perenes. Cacá tentou revisitar esse insight em um filme mais recente, O Grande Circo Místico (2018), mas dessa vez sem êxito e vislumbre estético.

Mas Cacá foi muito além do cinema. Sua morte hoje, aos 84 anos, encerra um grandioso ciclo de cineastas-ideólogos, diretores de cinema preocupados em influir (política e industrialmente) na relação entre o Estado e o cinema, entendendo essa interface como um pólo de potencial desenvolvimento, liberação política e afirmação internacional. Ao mesmo tempo, sempre se posicionou com energia nos debates sobre os destinos da Nação, na definição da forma como o País enxerga a si mesmo por meio das instituições. Inimigo figadal das ditaduras, ele insurgiu-se contra o arbítrio que dizia seu nome, o regime civil-militar dos anos 1960, e também contra a protoditadura que se ergueu a partir da confusão de conceitos, a bolsonarista. Entretanto, uma fleuma liberal o mantinha em nicho especial no front: foi Cacá quem criou, em 1978, uma expressão de debate contínuo no campo da política: “patrulha ideológica”. Era uma forma de rechaçar as agendas compulsórias da esquerda.

Todo o ativismo espontâneo de Cacá em relação às intersecções entre o Estado e o cinema o tornou um líder das demandas do audiovisual, mas também o expôs ao revanchismo e ao arbítrio. Recentemente, por exemplo, foi colocado na berlinda pelo bureau da guerra cultural do bolsonarismo, por declarar publicamente sua aversão ao regime que se pretendia autocrático. Fustigaram-no por meio de muletas burocráticas, a mais dolorosa a que está embargando seu derradeiro filme, Deus Ainda é Brasileiro, que está previsto para estrear em agosto deste ano. A agência de cinema (ainda sob orientação revanchista) botou lupa em cima da produção, ressalvando picuinhas, e atrasou sua finalização deliberadamente.

“Nada aconteceu de bom neste governo (Bolsonaro) em relação à cultura. Não só não houve interesse em colaborar com o setor como também está sendo destruído o que havia. Um desastre”, afirmou Cacá em plena era Bolsonaro. “Como a Ancine tem acesso a muitos recursos e nada acontece, às vezes imagino que tudo isso é um satânico projeto do governo para acabar com o cinema brasileiro por inércia”, afirmou. “O mais grave não é o que ele diz que pensa, o mais grave é que Bolsonaro é um farsante, incompetente, despreparado, desequilibrado, incapaz e, sobretudo, um homem mau. O Brasil está sendo governado por uma negativa do que deveria ser o ser humano.”

Apesar da idade avançada, Cacá nunca esteve preso a uma explicação cristalizada do que fossem o cinema e a realidade brasileiras. “Sempre tentei fazer os filmes do meu tempo. Tenho orgulho de dizer que sempre fui um cineasta do presente, sem nenhuma nostalgia do passado, nem tentando enviar mensagens para o futuro”. Um dos criadores do Cinema Novo, nunca também se prendeu a uma profissão de fé de hermetismo e negação do cinema das multidões. Ao menos dois dos seus filmes, Xica da Silva (1976) e Deus É Brasileiro (2001), passaram em muito o milhão de espectadores, e Tieta (1996) arrastou multidões às salas de cinema.

Diretor de 19 longas, entre eles preciosidades como Quando o Carnaval Chegar e Chuvas de Verão, membro da Academia Brasileira de Letras – na cadeira que foi de Euclides da Cunha, superando Conceição Evaristo, o que causou protestos –, Cacá Diegues nasceu Carlos José Fontes Diegues em Maceió, Alagoas, e se mudou com os pais para o Rio de Janeiro aos 6 anos de idade. Cursou Direito na PUC em finais dos anos 1950 e, ao lado de amigos como David Neves e Arnaldo Jabor, inclinou-se ali para o cinema. Na PUC, dirigiu o jornal O Metropolitano, ligado à União Metropolitana dos Estudantes, que o levou para o Centro de Cultura Popular (CPC) da União Nacional dos Estudantes. No CPC, ao redor de figuras como Leon Hirszman, Gláuber Rocha e Paulo César Saraceni, ocupou-se de lançar o mais consistente movimento cinematográfico de nosso tempo, o Cinema Novo.

Foi casado com a diva da bossa nova, Nara Leão. Perseguido pela ditadura militar, após a promulgação do AI-5, em 13 de dezembro de 1969, Cacá se exilou na Europa com Nara, com quem esteve casado até 1977. Viveu entre Itália e França e voltou ao Brasil em 1972. Em 1962, dirigiu seu primeiro filme profissional em 35 mm, Escola de Samba Alegria de Viver, um dos episódios do longa Cinco Vezes Favela (os demais episódios são dirigidos por Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges). Entre 1964 e 1969, realizou seus primeiros longas-metragens – Ganga Zumba (1964), A Grande Cidade (1966) e Os Herdeiros (1969). Foi amigo e parceiro de Caetano Veloso, foi crítico de algumas ações da gestão de Gilberto Gil como ministro da Cultura, foi poderoso e reverente, humilde e influente, apaixonado pela cultura brasileira e pela utopia de um País livre do jugo de um gosto padronizado e de autonegação.

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