A Agência Nacional de Cinema (Ancine) aprovou nesta segunda-feira, 10, a destinação de cerca de R$ 3 milhões do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para a produção de um documentário de longa-metragem sobre o ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, morto há um ano. O documentário, que leva o título de Ascensão e Queda de Edemar, terá a produção da Ama Filmes e Produções, do Rio de Janeiro.
Edemar Cid Ferreira foi uma das figuras mais controversas do mundo financeiro e das artes na virada dos anos 1990 para os 2000. Com uma ascensão fulminante, tornou-se em poucos anos um dos proficientes colecionadores privados de arte do País e, como presidente da Fundação Bienal de São Paulo, sua influência levou à realização de uma das maiores mostras de arte já feitas no Brasil, a exposição Brasil +500, no Ibirapuera. Falava com ministros e presidentes e dava as cartas no mercado de arte do eixo Rio-São Paulo. Com a decretação da falência fraudulenta do seu banco em 2005, iniciou-se um longo e penoso processo de descida ao Inferno, que culminou com sua prisão em 2006. Edemar, sempre gentil e cavalheiresco, tinha se tornado em poucos anos um dos mais generosos mecenas das artes paulistas e jurava estar sendo vítima de uma injustiça, lutando para reaver seus bens enquanto pode.
A sinopse do projeto, enviada à Ancine pela produtora, parece incorporar a tese do ex-banqueiro, de que foi uma espécie de Jay Gatsby, ao realçar que ele “acumulou inimigos no setor financeiro, o que levou à falência do banco e sua prisão”. O texto integral diz o seguinte:
“Edemar Cid Ferreira, negociante de café e fundador do Banco Santos, se tornou um grande mecenas das artes no Brasil, organizando exposições e formando uma vasta coleção de arte. Apesar de seu sucesso, ele acumulou inimigos no setor financeiro, o que levou à falência do banco e sua prisão por corrupção e lavagem de dinheiro. O documentário detalha sua trajetória, destacando seu impacto nas artes e os esquemas financeiros usados para sustentar seu império. Entrevistas revelam sua influência cultural e a polêmica mansão que simboliza sua queda”. A mansão de Edemar, no Morumbi, é um imóvel que ocupa um terreno de 8 mil m2 e tem um complexo construído de cinco andares em área de 4.100 m2, com duas galerias de arte, uma biblioteca e heliponto. O local foi cenário da série Felizes para Sempre?, da Rede Globo.
Em 2016, quando a coleção de arte de Edemar foi a leilão, por ordem da Justiça, no Hotel Unique, a reportagem foi lá para conferir, e foi publicado, na ocasião, o seguinte texto:
O LEILÃO DO EDEMAR
Na venda das obras confiscadas do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, elite se enfrenta pelos despojos de um dos seus milionários caídos
No meio do leilão, um curto-circuito nos abajures do lado esquerdo do palco fez com que as lâmpadas começassem a estourar com um pipoco engraçado, e o leiloeiro pediu para não confundirem. “Tão pensando que é champanhe?”, brincou Aloisio Cravo, 30 anos de arremates. Mesmo com uma área do grande salão no subsolo do hotel Unique na penumbra, não houve outra alternativa senão seguir com os lances. “No escuro é difícil, mas vou dar um jeito”, exagerou Cravo.
Foi no escuro mesmo que ele vendeu a tela Composição, de Tomie Ohtake, por R$ 340 mil (três vezes o lance inicial). De um lado do salão, estavam Sueli e Rodrigo Cravo, mãe e filho do leiloeiro, colhendo lances por celular e pelas mãos sempre levantadas bruscamente, como mãos de bailarinas de flamenco. Os galeristas, como os da Almeida & Dale, sentavam-se em grupos, alternando-se em lances nos seus objetos do desejo, como as fotografias de William Klein (todas compradas por eles).
Foi Rodrigo Cravo quem foi atrás do maître do hotel para solucionar o problema dos abajures que explodiam, como se fosse uma espécie de Maldição da Massa Falida jogada por Edemar Cid Ferreira, que tentou embargar o leilão judicialmente. Fracassou: a Justiça negou liminar na véspera. O incidente com os abajures foi pequeno, havia muita luz no salão, e o leilão prosseguiu com grande movimentação.
Lá pela sétima fileira de uma salão de 528 lugares, uma amiga da socialite Tânia Derani a encorajava a arrematar um cavalo de terracota chinês de R$ 80 mil, que media 116 cm por 103 cm, mas ela ajeitou o grande óculos de armação branca e pôs a mão no ombro da amiga. “Não tenho onde por isso, amor…”, explicou Tânia. A amiga insistiu: “Coloca no jardim!”. Tânia encerrou o assunto: “Esse cavalo não pode por no jardim, terracota não pode ficar em área externa”. E voltou às anotações na lista de obras com o amigo Paulo Velloso, dono de vistoso lenço de cambraia no bolso do paletó: “Eu gosto de Krajcberg, Paulo”, confidenciou.
O galerista Mario Cohen chegou atrasado, empunhando uma mala de rodinhas. Estava entre o leilão e o aeroporto, contou. A tempo, entretanto, de comprar um de seus alvos, uma fotografia de Bettina Rheims, que arrematou por R$ 9 mil. Perdeu duas disputas por fotos de Robert Doisneau, mas estava chateado mais pelo que tinha perdido antes de chegar com sua maleta, algo que não quis dizer o título. “Os preços não são bons nem ruins. Preços de mercado”, afirmou Cohen.
Um importante curador estrangeiro que vive em São Paulo discordou. Ele tentou comprar duas obras de Odires Miászho, mas não conseguiu por conta da concorrência. “As fotografias estão com preços ridículos”, afirmou. Havia fotos de Man Ray por R$ 3 mil de lance inicial, quando seu preço no mercado era no mínimo de R$ 30 mil. “Mas você não pode me citar, tá? É uma opinião não oficial!”.
Para o leiloeiro Aloisio Cravo, o leilão da coleção de Edemar Cid Ferreira tinha um componente atrativo adicional: não era uma coleção apenas de artes plásticas, mas também de etnografia, arqueologia e outros focos de interesse. Se foi esse o grande leilão da carreira do pregoeiro? “Há 10 anos eu fiz um grande leilão para o banco J.P.Morgan. Foi algo de dimensão parecida”, contou. “Por isso coloquei mais de 500 cadeiras hoje. É melhor sobrar do que faltar”.
Antes de começar a leiloar as peças, ele agradeceu ao juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, “a pessoa que confiou a nós a venda dessa coleção”. Os colecionadores ali parecia que conheciam intimamente as obras, provenientes de um integrante daquela elite que tinha caído em desgraça. De vez em quando, Cravo lembrava aos presentes a natureza do negócio que conduzia: “É leilão judicial, senhores! Amanhã não tem mais!”.
Essa advertência se tornou mais estridente em três ocasiões. A primeira foi na venda de uma escultura em ferro de Amílcar de Castro, Sem título, que atingiu R$ 1,5 milhão. O leilão partiu de R$ 220 mil, e o painel mostrava os lances da internet crescendo como se fosse um daqueles impostômetros instalados nos centros de algumas grandes cidades. A segunda foi na venda de uma obra de Tunga, Tríade Trindade, arrematada pelos patronos da Pinacoteca de São Paulo (e que vai integrar o acervo daquela instituição). E a terceira foi na venda de uma escultura de Victor Brecheret, Vestal Reclinada com Pássaro (“Uma peça como essa vai levar 25 anos para aparecer uma igual”, disse Cravo), que atingiu R$ 2,8 milhões. O comprador fez o lance, comprou a peça, levantou-se como se nada tivesse acontecido e foi ao saguão tomar a única coisa que ofereciam no leilão: água aromatizada com limão siciliano e hortelã.
Com longos mullets devidamente gomalinados, presença de espírito e experiência, Cravo tem alguns bordões que usa em diferentes momentos de sua performance. “O melhor dessa venda é a homenagem a essa obra”, bradava. “Briga boa é aquela que a gente não esquece pelo resto da vida”. Volta e meia, provocava os brios daqueles que entravam numa disputa: “A senhora não quer mais?”. Os principais contendores, ao serem derrotados, pareciam jogadores que tinham mostrado uma carta ruim. Tinham no rosto aquela convicção de que, na próxima, viria um coringa. A tela Prumo, de Antonio Manuel, que iniciou lances a R$ 9 mil, foi objeto de um verdadeiro “tiroteio”: todos sabiam do seu valor, sabiam que estava sub-valorizada, e ela acabou sendo vendida por R$ 220 mil.
Após R$ 11,8 milhões vendidos, o leiloeiro então anunciou que os compradores receberiam as notas de arremate por email, depois teriam de segunda a sexta-feira da semana que vem para retirar as peças. Também anunciou a partilha: 95% para a Justiça, 5% para o leiloeiro.