Há 50 anos, um Catatau tirava a literatura brasileira para dançar

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O escritor Paulo Leminski em foto de Juvenal Pereira

Muitos tentaram lê-lo, milhares fracassaram. Entre os desistentes, muito provavelmente estão aqueles que foram intimidados por sua absurda naturalidade em criar uma linguagem nunca antes experimentada. “Engalfaláxia os ofiófagos em fábulas de apalpoulação!”, diz uma das frases híbridas da narrativa desse livrinho que agora completa meio século de fecundação: Catatau, de Paulo Leminski.

Há exatos 50 anos, esse livrinho de apenas 214 páginas (cujo nome já era uma antítese sarcástica do tamanho de sua própria lombada) mudaria de forma incontornável a face da literatura experimental brasileira. E fez isso a partir de um jogo de ressonâncias e impactos quase indetectável, pois foi editado pelo próprio autor e teve somente 2 mil exemplares em sua primeira edição, em 1975.

E não é que o autor tenha conseguido escoar esses 2 mil exemplares rapidamente. Em 1975, logo após publicar o Catatau, o poeta Paulo Leminski (que mais adiante se tornaria um dos poetas brasileiros de maior alcance público) ficou com um estoque considerável de sua produção encalhada em sua casa, em Curitiba. “Quando pernoitei na casa, no sótão, ele falou: ‘Você vai dormir rodeado de uma obra-prima’. Eram pilhas do Catatau que o autor guardava no sótão, e que foi distribuindo ao longo dos anos”, contou certa vez o escritor Domingos Pellegrini, amigo de Leminski, ao jornal literário Nicolau.

Hoje, um aqueles “colchões” improvisados do quarto de visitas da casa de Leminski, a edição original (não as reedições da Sulina, de 1989, da Travessa dos Editores, de 2004, e Iluminuras, de 2010) pode ser encontrada por até R$ 4 mil reais em sebos e lojas virtuais de preciosidades. Destino irônico para uma obra cuja prensagem só saiu porque a agência publicitária P.A.Z., onde o poeta trabalhava então, aceitou investir na publicação após um acordo com o autor para abater o custo da gráfica do salário do poeta.

Lido sem medo e sem travas, Catatau hoje se mostra um delírio antecipatório. O próprio autor, debochado, já aconselhava na página de rosto: “Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se”. Com o “agora” da frase, Leminski queria dizer que a ideia original do livro, um entrecho e algumas amostras de sua obra já tinham sido mostradas em novembro de 1969 no Jornal do Escritor, do Rio de Janeiro.

Catatau injetou na literatura brasileira um germe de experimentação que nunca mais foi igualado. “Para ser mensageiro, seja mensagem primeiro”. O livro foi diversas vezes comparado a um livro-chave (e notoriamente inacessível) da obra do irlandês James Joyce. “O livro é uma espécie de Finnegans Wake brasileiro, uma investigação de linguagem profunda. Há provérbios populares, neologismos, línguas latinas como o hebraico e o latim”, declarou o cineasta e artista mineiro Cao Guimarães quando lançou uma versão audiovisual do romance, intitulada Ex Isto.

Como todo romance, há uma história subjacente ao lençol de linguagem do Catatau. Leminski imaginou o filósofo, físico e matemático francês René Descartes (que chama de Renatus Cartesius no livro) numa viagem insólita pelo Brasil como integrante da expedição do holandês Maurício de Nassau (que desembarcou no Brasil no século 17). Descartes anda pelo País enxergando tudo através de uma luneta. “O Catatau é um romance sofisticadíssimo, um romance filosófico na mesma tradição de Rabelais, Swift, Defoe. O Catatau também é um livro delirantemente alegre, tropicalista, e que agradará o leitor que se dispuser a lê- -lo aos poucos, pois como todo livro experimental, impõe uma leitura diferenciada”, disse também certa vez o tradutor, escritor e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça, que defendeu uma dissertação de mestrado sobre a obra.

Qual é a grande malandragem de Leminski com a história? O pensamento de René Descartes (1596-1650) é a base do cartesianismo, movimento intelectual que dominou os séculos 17 e 18, e que se caracterizava pelo racionalismo, pelo primado da razão, pela dedução rígida e a construção de uma noção de verdade a partir de axiomas simples, sempre em oposição ao tradicionalismo. É o autor da famosa frase “Penso, logo existo”. O que um cidadão com essa disposição de organização racional enfrentaria ao encontrar a cosmogonia tupinambá (“toupinambaoults”), as estratégias de sobrevivência tropicais e tropicalistas, a deglutição antropofágica, o milagre brasileiro?

Nesse sentido, é um romance filosófico, que justapõe o pensamento dito “civilizado” ao caos da vida sem regras e que abraça o mistério. “Morte vinda, um texto me garante a eternidade, a árvore me cresce o nome na casca”, reflete Cartesius. “Lá em cima, filhos, ficaremos em sangue ou em estrelas? Ou passarei como passa bicho para dentro de outro bicho, inscrito num organismo e um seguinte esperando a vez, círculos concêntricos num ciclo sem fim, o bicho A contendo o bicho b (cada bicho resulta da passagem de bichos infinitos por um apetite estrategicamente instalado), um parafuso arquimédico?”.

Leminski sempre soube do tamanho de sua façanha literária, embora seu eco estivesse muito longe de se ouvir naqueles anos 1970. Contam que ele andava por Curitiba para cima e para baixo com os originais do livro que produzia para mostrar aos amigos e interlocutores que encontrava. “Na prática cotidiana, no comércio clandestino das ruas, nascem as palavras, os latidos da raça humana, logo repetidas como se fossem a boa nova de si mesmas”, escreveu, no Catatau.

À estupefação de Renatus Cartesius em seu reconhecimento da existência de um lugar que desafiava seu regramento (“Claro que já não creio no que penso, o olho que emite uma lágrima faz seu ninho no tornozelo dos crocodilos beira Nilo. Duvido se existo, quem sou eu se este tamanduá existe?”) se sucede uma transmutação da consciência do mundo (“Sinto em mim as forças e formas deste mundo, crescem-me hastes sobre os olhos, o pelo se multiplica, garras ganham a ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de fera, renato rui. Se papai me visse agora, se mamãe olhar para cá”).  

Em Catatau, Paulo Leminski mergulhou com astúcia, poesia e inteligência na elucidação da identidade nacional, usando para isso um hospedeiro europeu circunstancial e involuntário. “Que espécie de lugar é este que nos pergunta onde estamos? Ainda se arroga? Colabore se quer ir longe. Ganhar terreno é pão meu de todo dia cada, resistir, desdobrar-me em evidências, caso não extraia por bem confissão que satisfaça a sede de vingança da opinião pública!”. E, de quebra, o poeta ainda foi premonitório.

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