Se inúmeros cidadãos foram empurrados à clandestinidade nos anos duros da ditadura militar de 1964, não foi diferente o destino do cinema brasileiro que era ou tentava ser combativo naqueles mesmos anos. Histórias subterrâneas que vieram à tona em pílulas ao longo das últimas décadas têm sido estudadas mais a fundo a partir da constituição da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalada pela presidente Dilma Rousseff em 2011, e agora rendem frutos vistosos em formato de filmes, vídeos e livros.
É o caso, por exemplo, do documentário Você Também Pode Dar um Presunto Legal, dirigido por Sergio Muniz (1935-2023), que ocupa parte substancial das 552 páginas do livro recém-lançado Por um Cinema de Cordel (Alameda).
Organizado por Marcius Freire, professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e por Andréa C. Scansani, professora do Departamento de Artes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o livro reconstitui a trajetória ímpar de Sergio Muniz, documentarista paulistano que esteve no centro da experiência cinematográfica conhecida como Caravana Farkas, bancada e liderada pelo húngaro radicado paulistano Thomaz Farkas (1924-2011), que deixou sua marca na cultura e no cinema brasileiro como produtor, sócio-fundador da empresa Fotoptica e professor de fotografia, fotojornalismo e jornalismo cinematográfico.
Muniz foi decisivo na coordenação das viagens aos sertões do Nordeste que originaram 19 documentários assinados pelos diretores Geraldo Sarno, Maurice Capovilla e Paulo Gil Soares e nas quais ele próprio floresceu como cineasta. Entre a Caravana Farkas e trabalhos avulsos, ele produziu uma filmografia curta composta de meros oito curtas-metragens, três médias, dois longas dois programas Globo Repórter e cinco vídeos.
Farkas surge no livro Por um Cinema de Cordel caracterizando Sergio Muniz: “teu filme Você Também Pode Dar um Presunto Legal das tuas realizações que conheço é a mais sensacional! Também a mais perturbadora e trágica”.
O título Você Também Pode Dar um Presunto Legal surgiu decalcado de uma ameaça que o famigerado delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979) dirigia a militantes de esquerda que prendia, torturava e matava – “presunto” significava cadáver, no jargão policialesco da virada dos anos 1960 para os 1970. Filmado entre 1970 e 1971 e montado em 1973, o documentário de Muniz narra, de modo original, experimental e descontínuo, o nascimento, a metodologia de ação e a evolução do Esquadrão da Morte, um nome de época para o que hoje conhecemos como “milícia”.
Produzido durante a gestão sangrenta do general Emílio Garrastazu Médici, o filme de Muniz explica não apenas o processo de conversão do paramilitar Esquadrão da Morte em aparelho “oficial” da ditadura, a partir de instituições de horror como o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que em São Paulo foi dirigido a partir de 1968 pelo até então chefe do Esquadrão da Morte, Sérgio Fleury.
Expõe também, dando nome a bois como Ultragaz, Ultrafértil, Construtora Camargo Corrêa, Banco Bradesco, Grupo Moreira Salles e “muitos outros” conglomerados industriais, a íntima conexão da burguesia civil brasileira daquele período com a ditadura supostamente militar e suas garatujas mais ou menos oficiais, como Dops, Esquadrão da Morte, Oban (Operação Bandeirante), DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) etc.
Diz a voz narradora de Sergio Muniz em Você Também Pode Dar um Presunto Legal, roteirizada por ele e por Francisco Ramalho Jr. e atualmente disponível na íntegra no YouTube (veja acima): “o sangue dos patriotas corre tal como o dos presuntos. Fleury rejubila-se. O aprendizado proporcionado pelo Esquadrão não foi em vão. Repressão e grande indústria dão-se as mãos. Dezembro, 1970. Numa cerimônia oficial, o delegado Sérgio Fleury é condecorado pela Marinha brasileira. A notícia não foi divulgada nem interna nem externamente”.
Não à toa, Presunto foi produzido clandestinamente, migrou clandestino do Brasil a Cuba, foi montado em 1973 entre Paris e Roma e permaneceu inédito no Brasil por 30 anos, até ser exibido pela primeira vez em 2003 por iniciativa da cientista social e professora Anita Simis, companheira de Muniz, na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. A partir daí, o filme que expõe as vísceras civis-militares-paramilitares da ditadura de 1964 ganhou sobrevida colateral (quase nunca na mídia dita tradicional, que mal registrou a morte de Sergio Muniz no ano passado), por exemplo em 2017, quando o cinema de Sergio Muniz foi homenageado no festival de documentários É Tudo Verdade.
O organizador Marcius Freire responde sobre a hipótese de que a exposição da participação civil no castelo de tortura da ditadura, aí incluídas a imprensa e a mídia, seja um fator de esfriamento em relação a Muniz e seu cinema de dedo na ferida: “pode ser que seja um ingrediente do descaso. Mas não é um torcer de nariz, é um descaso mesmo. Não é o único ingrediente, é um desdobramento. Nossa imprensa, infelizmente, se ocupa dos grandes filmes de shopping center”.
Sergio Muniz e o cinema novo
Freire explica que Muniz participou ativamente da construção de Por um Cinema de Cordel e chegou a ver uma das primeiras versões do livro completo no formato PDF.
Entre textos reflexivos de Muniz e uma série de depoimentos e artigos acadêmicos reunidos em Por um Cinema de Cordel, Naara Fontinele, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), narra a clandestinidade das imagens que filmaram a ditadura, refazendo o percurso de Presunto entre Brasil, França, Itália e Cuba, e acrescentando informações: “segundo [o cineasta] João Batista de Andrade, Muniz foi responsável pelo transporte clandestino de material fílmico das primeiras passeatas estudantis contra o regime militar, filmado por ele e Francisco Ramalho Jr. As imagens foram preservadas como anônimas no acervo do Icaic [Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica, de que Muniz foi um dos primeiros diretores, nos anos 1980] em Cuba”.
O próprio Muniz se encarregou de difundir a segunda encarnação de sua obra-prima a partir de 2006, quando produziu uma montagem final de 39 minutos de Você Também Pode Dar um Presunto Legal. O livro Por um Cinema de Cordel inclui 130 depoimentos sobre o documentário, muitos deles colhidos pelo diretor como retorno após ele enviar cópias digitais para cineastas, intelectuais, acadêmicos, dramaturgos, jornalistas e atores como Andrea Tonacci, Cacá Diegues, Carlos Reichenbach, Consuelo de Castro, Fernão Ramos, Frei Betto, Ismail Xavier, Ítala Nandi, Jean-Claude Bernardet, João Batista de Andrade, João Silvério Trevisan, João Pedro Stédile, José Dirceu, Marilena Chaui, Miriam Chnaiderman, Nelson Pereira dos Santos, Olgária Matos, Othon Bastos, Renata Pallottini, Silvio Tendler, Vladimir Carvalho, Walnice Nogueira Galvão etc.
Entre depoimentos constrangidos, sobressaem outros mais frontais e reveladores, verdadeiras mensagens na garrafa lançadas por Muniz ao oceano do esquecimento, como o do professor de história da Universidade Regional do Cariri (Urca) Tito Reidl, que classifica Você Também Pode Dar um Presunto Legal como “inquietante, bastante expressivo” e ”algo constrangedor”.
Há, por exemplo, quem parabenize Muniz de forma protocolar pelo filme “novo” após longo intervalo sem filmar, como há quem se limite a lamentar a ausência dos nomes dos atores de Presunto nos créditos e quem diga que havia se esquecido da participação civil-empresarial na ditadura dita militar (caso da jornalista e professora de cinema da USP Regina Festa, que se afirma “chocada” pela recordação).
De outro lado, a filósofa Marilena Chaui fala do “gangsterismo capitalista” que pariu a ditadura “militar”; o cineasta Sergio Santeiro classifica os fardados de 1964 (etc.) como “cães da burguesia”; e o político José Dirceu enumera alguns dos “cúmplices” da ditadura: empresários, juízes, políticos, policiais, publicitários…
Em reflexão exaltada, o cineasta “marginal” Andrea Tonacci lembra que a “metodologia do horror é hoje sistêmica do capitalismo e até regulamentada”, que nossa sociedade é condicionada a “uma vida escrava, inconsciente, onde aceitar tortura sem reconhecê-la como tal é o aprendizado/condição de ‘vida’”, e aproveita para lembrar que “em geral, como na propaganda, no mercado do mundo, o cinema só tem servido para fazer boi pastar e dormir. O cinema brasileiro atual tem sido em geral uma bela prova disso e teu filme a prova do contrário”.
O professor de sociologia Marcelo Ridenti classifica Presunto como “o Cabra Marcado para Morrer de Sergio Muniz”, referindo-se ao documentário de Eduardo Coutinho sobre a resistência camponesa à repressão, abortado pelo golpe de 1964 e retomado 20 anos depois, no princípio da redemocratização do país.
Anita Simis formula as perguntas que tantos querem calar, mas que ribombam apesar de tudo: “onde estão aqueles que assistiam às sessões de tortura? Aqueles que financiaram e acobertaram essas ações? Quanto tempo terá que se passar para que saibamos o que deflagrou tamanhas atrocidades, quem é responsável e como?”.
O crítico e professor de cinema Jean-Claude Bernardet, por fim, lamenta que Muniz não tenha tido participação mais central nos rumos do cinema brasileiro do Cinema Novo para cá e coloca os pingos nos is: “a relação que você estabelece entre grande capital, estrutura política e repressão hoje é tabu”. A afirmação valia para cerca de duas décadas atrás, quando Bernardet escreveu o bilhete a Muniz, como vale hoje diante das imbricações civil-militares do bolsonarismo.
“Como diz Bernardet, se o cinema de Muniz tivesse circulado à época e se ele tivesse feito mais filmes o cinema documental brasileiro teria sido diferente”, avalia Marcius Freire, ao mesmo tempo reconhecendo a inviabilidade de um filme como Você Também Pode Dar um Presunto Legal no fulcro dos anos de chumbo: “um filme como esse denunciava, e denuncia, o que estava acontecendo no Brasil. Ele revelava uma parte escondida da história, que hoje as novas gerações não conhecem”.
Logo que o filme começou a tomar forma, observa, amigos aconselharam Muniz a não exibi-lo publicamente e colocá-lo em hibernação.
A ditadura revista pelo cinema de arquivo
Outro documento novo e crucial para a compreensão da clandestinidade do cinema brasileiro engajado durante a ditadura é o livro Cinema de Arquivo: Imagens e Memória da Ditadura Militar (Sagarana Editora/Faperj), da fluminense Patricia Machado, pesquisadora e professora de comunicação e estudos de mídia na PUC do Rio de Janeiro. Seu livro investiga o papel clandestino do cinema nacional na preservação de histórias da ditadura vividas por camponeses, estudantes, trabalhadores da cultura, exilados políticos etc.
Machado, que classifica sua pesquisa como trabalho “de detetive” e “de formiguinha”, principia pela decupagem minuciosa do célebre Cabra Marcado pra Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, e de tudo que o filme fraturado em dois revela sobre a resistência no sertão nordestino e sobre sua repressão pela ditadura. A pesquisadora descobre, por exemplo, que o filme de Coutinho guarda a última imagem em vida do ex-lavrador, militante do PCB e deputado cassado João Alfredo Dias, o Nego Fuba, que foi preso e desapareceu pouco depois desse registro, em 1964, e cuja morte só foi reconhecida como responsabilidade do Estado brasileiro em 2014, quando foi publicado o relatório final da CNV.
Dali, Machado se debruça sobre o trajeto tortuoso de imagens raras registradas em manifestações públicas de 1968, como o cortejo fúnebre, enterro e missa de sétimo dia do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto (1950-1968), assassinado aos 18 anos pela Polícia Militar, e a Passeata dos Cem Mil, colhidas pelos cinegrafistas Eduardo Escorel (com 22 anos em 1969), José Carlos Avelar (então crítico de cinema no Jornal do Brasil), Luiz Alberto Sanz (também crítico de cinema e militante da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária).
A sobrevivência em circuitos clandestinos, tanto de Cabra Marcado pra Morrer como das cenas filmadas nas manifestações de 1968, passa por caminhos tortuosos que incluem o armazenamento camuflado (Cabra Marcado ficou na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, rotulado com o título Rosa do Campo) e o envio clandestino de imagens ao exílio.
Ambas as atitudes foram empreendidas pelo então diretor da Cinemateca do MAM, Cosme Alves Neto (1937-1996), que fez daquele um espaço de resistência dentro do país sob a ditadura – pela qual foi preso e torturado mais de uma vez, a primeira delas ainda em 1964-1965, depois em 1969. Guardadas por Alves Neto, imagens feitas por Escorel e Avelar, por exemplo, ficaram armazenadas sob o rótulo “Avelar”, escaparam à caçada por agentes da repressão e permaneceram arquivadas no MAM por quatro décadas.
Indagado por Escorel, Alves Neto afirmou que não se lembrava do paradeiro dos rolos de filmes e que acreditava tê-los enviado clandestinamente para Cuba. O rolo foi encontrado em 2007 por um funcionário da Cinemateca; a parte de Avelar estava deteriorada e perdida.
No relatório da Comissão Nacional da Verdade, Maria Lectícia Ligneul Cotrim, católica, de família militar com resistentes à ditadura e casada com um militar, relata ter sido torturada em 1974 quando viu fotografias de Cosme Alves Neto sob tortura. A propósito, Patricia Machado descreve a importância da CNV para tudo que aconteceu depois: “minha pesquisa só existe porque existiu a comissão. Além da possibilidade de acesso aos documentos da ditadura, a CNV disponibiliza informações, documentos e testemunhos que foram fundamentais para a pesquisa. Ela faz esses documentos e falas circularem, incita novos debates, estimula a própria imprensa e a população a rememorar e contar novos episódios sobre a ditadura”.
Um dos pontos que Cinema de Arquivo levanta é a existência de material audiovisual clandestino produzido não apenas pela resistência, mas também pela própria ditadura. “Relatos dão conta de que sessões de tortura foram fotografadas e filmadas para serem utilizadas para fins didáticos em cursos de interrogatório, mas essas imagens desapareceram e até hoje não foram localizadas. Trata-se de imagens ausentes, imagens que faltam”, escreve Machado. “[A pesquisadora] Anita Leandro sugere a existência de snuff movies, filmes que mostram a pessoa ser torturada, a partir de relatos de ex-militantes presos, mas não há ainda comprovação da existência dessas imagens.”
Coordenadora do grupo Práticas do Contra-Arquivo, da PUC-RJ, Machado estuda imagens geradas fora de acervos oficiais ou produzidos pelo Estado, o que inclui filmagens privadas, domésticas, esquecidas e assim por diante. Ela afirma que no próprio meio cinematográfico persiste o tabu em falar sobre a origem desses arquivos e relata que, sem pretender investigar questões de gênero, deparou-se com uma grande quantidade de material produzido por mulheres, em geral alijadas da concepção de movimentos como o Cinema Novo dos anos 1960 e o Cinema Marginal da virada dos 1960 para os 1970.
Figura-síntese do tema de que trata Cinema de Arquivo é a militante Maria Auxiliadora Lara Barcellos, codinome Dora, cuja imagem em movimento frequenta diversos filmes estudados por Machado, em circunstâncias diversas. O livro lança luz sobre dois filmes produzidos pelo militante Luiz Alberto Sanz durante seu exílio, primeiro no Chile, depois na Suécia. Em Não É Hora de Chorar (1971), exilados que haviam sido libertados em troca do embaixador suíço sequestrado em 1970 descrevem pela primeira vez ao mundo as torturas que sofreram nos porões da ditadura brasileira.
Entre eles está Dora, funcionária pública, estudante de medicina e militante da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares) que foi presa e torturada em 1969 e integrou o “grupo dos 70” militantes libertados em troca do embaixador suíço. “Eles falaram que iam me matar e nome do esquadrão, e que ninguém ia descobrir, e que seria em uma estrada deserta, e tentavam me enforcar com golpe de pescoço e punham a pistola no meu ouvido”, ela conta.
Também disponível no YouTube, o segundo filme, Quando Chegar o Momento (Dora) (1978) (veja acima), parte do desfecho da história de Dora, que se suicidou atirando-se nos trilhos do metrô de Berlim Ocidental, em 1976, aos 30 anos. Mostra-a alegre e altiva em trabalho de campo pela medicina, depois grave e alquebrada narrando a prisão e a tortura.
Bem recebido pela crítica internacional à época, Quando Chegar o Momento caiu no esquecimento em seguida, durante três décadas, até ser reavivada por dois novos documentários, Setenta (2013), de Emília Silveira, e Retratos de Identificação (2014), de Anita Leandro. Nesse último, Dora/Auxiliadora ressurge em fotos policiais, séria e altiva na chegada à prisão e, depois, com a mesma roupa, ataduras na testa e o rosto congestionado pela tortura.
Cinema de Arquivo menciona mais filmes perseguidos e/ou remetidos à clandestinidade (onde a ditadura do mercado os mantém até hoje), casos de A Falência (1967), do baiano Ronaldo Duarte, do curta Contestação (1969), do paulista João Silvério Trevisan, e de Manhã Cinzenta (1969), de Olney São Paulo.
A Falência foi censurado em festivais em 1967 e motivou a prisão do diretor e de seu irmão, o ideólogo tropicalista Rogério Duarte – capturados à saída da missa de sétimo dia de Edson Luís, ambos foram barbaramente torturados. Sobre Manhã Cinzenta, Patricia Machado escreve que “Olney São Paulo entrou para a história do cinema brasileiro como o único cineasta preso e torturado no país durante a ditadura por conta exclusivamente da realização de um filme considerado subversivo”. O curta-metragem incluía imagens de policiais armados de escudos e cassetetes agredindo um estudante jogado no chão durante uma manifestação no centro do Rio.
Sem exibição comercial no Brasil, Manhã Cinzenta foi exibido em festivais internacionais, inclusive o de Cannes, num processo em que o Brasil começava a enviar para o mundo imagens encapsuladas sobre o que acontecia no país e era negado publicamente pelo generalato ditador. Uma cópia do filme teria sido levada até Cuba num avião sequestrado por jovens militantes armados de esquerda, em 1969. Por conta desse episódio, Olney São Paulo foi interrogado, preso e torturado. Nunca mais retomou a carreira cinematográfica e morreu em 1978, aos 41 anos.
Apreendidas pela polícia em 1969, 18 latas de filme foram destruídas em 1982, segundo consta em relatório do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Desse imenso iceberg, brotaram há pouco as imagens clandestinas de Água, Açúcar e Sal (1979), registradas na prisão pelos militantes Noilton Nunes e Paulo Jabur, durante greve de fome de 14 prisioneiros políticos em protesto contra a não-inclusão de brasileiros condenados e presos no projeto de lei que clamava por anistia ampla, geral e irrestrita. Como descreveu Nayla Guerra no site Opera Mundi, o grupo Práticas do Contra-Arquivo, de Patricia Machado, disponibilizou as imagens no YouTube e produziu um novo vídeo a partir de depoimento inédito de abur, que, vencida a greve de fome após 32 dias, seria o primeiro brasileiro anistiado a ser libertado da prisão pela vigência da Lei de Anistia.
O grupo da PUC já mapeou mais de 150 curtas-metragens produzidos por mulheres nos anos 1970, que estão em estado de esquecimento e abandono, aguardando por resgate. “Nem a gente do cinema conhece”, diz Machado. A despeito de poucos e bons esforços em contrário, a maior parte do iceberg de horror conserva-se submersa em 2024.
(Leia mais sobre cinema brasileiro e ditadura aqui.)
(Texto publicado originalmente no site Opera Mundi, em 22 de novembro de 2024.)