I love my black job

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“I love my black job” (“Eu adoro meu trabalho de preto”), disse Simone Biles no dia 2 de agosto. Sua frase era uma resposta contundente ao lastimável candidato presidencial norte-americano Donald Trump, que, durante um debate, em junho, afirmou que os imigrantes representam uma grave ameaça aos Estados Unidos porque estariam tomando os “empregos de preto” em seu País.

Trump, notório racista, sexista e supremacista, materializava daquela forma seu preconceito contra a população negra norte-americana, estigmatizando sua ação cotidiana no sistema produtivo do País, um preconceito que persiste nos atos cotidianos de Trump, que agora (não por acaso) levanta dúvidas sobre a ascendência afro americana de sua adversária, Kamala Harris (cujo pai, por sinal, um cidadão de notável consciência racial, manteve um “black job” de excelência intelectual na Universidade de Brasília nos anos 1990 e amava Chico Buarque, que votou em Lula, que criou o Bolsa Atleta, programa que gestou Rebeca Andrade e Bia Souza, que fez o L quando derrubou sua adversária israelense para ganhar a medalha de ouro no judô).

O mundo monolítico dos racistas pode parecer imutável, mas a Olimpíada de Paris veio mostrar que a reação à barbárie definitivamente não é mais um ato solitário de alguns cidadãos indignados. Cinquenta e seis anos após a famosa cerimônia de entrega de medalhas das Olimpíadas da Cidade do México, em 1968, na qual dois atletas negros dos 200 metros rasos (Tommie Smith e John Carlos, cada um com uma luva preta em uma das mãos), levantaram os punhos durante a execução do hino norte-americano, prestando tributo à luta (àquela altura, armada) contra o racismo no seu País, a consciência racial tornou-se uma pulsão global, aberta e multicultural. Ela sobrepujou largamente a vontade de encurralar, de jogar no gueto, de categorizar e restringir pelo preconceito.

Há 56 anos, a luta era a ferro e fogo. Não havia outra alternativa. Essa semana, a imagem da reverência das estadunidenses Simone Biles e Jordan Chiles a Rebeca Andrade, atleta de País distinto e de outra origem, mostra que o combate entrou em outra esfera, a do reconhecimento do outro, da amplificação do sentimento humanista (“Nenhuma pátria me pariu”), da sororidade, da ternura. “Era um pódio de mulheres pretas, eu senti que o momento pedia”, explicou Jordan Chiles, sobre a reverência coordenada, um ato que iria incomodar, era evidente, a esfera do macho. 

O compatriota de Biles e Chiles, o jogador de futebol americano Marlon Humphrey, cornerback do Baltimore Ravens, classificou a reverência das colegas à brasileira como “nojenta”. Embora preto, Humphrey falou com as bolas, não com o cérebro; falou em defesa da manutenção de um status quo de poder, de opressão, e não de harmonia, de composição. Mas as vozes dos Humphreys agora só ecoam dentro de suas câmaras de eco – mais ou menos como o efeito do duelo de gênero da canção D.I.S.C.O., do duo preto francês Ottawan, de 1979, tocado na cerimônia de abertura dessas Olímpiadas de Paris – hoje convertido em um símbolo da vitória do povo da noite e da comunidade LGTBQIAPN+.

Do punho cerrado dos Panteras Negras à suave relação entre Simone e Rebeca (que não domina o idioma da colega, mas se expressa na mesma sintonia), a luta de afirmação atinge, nas Olimpíadas de Paris, um momento de poderosa transmutação. “A gente está aqui para crescer, não só como atleta, mas como ser humano e para mostrar que a gente pode tudo, e que a cor não define nada, não define medalha, não define nada”, disse a judoca Bia Souza, após ser questionada sobre o significado de uma mulher negra ganhar a primeira medalha de ouro do Brasil em Paris.

O enfrentamento do racismo se abriu como um guarda-chuvas para abrigar em seu bojo o enfrentamento das outras formas de discriminação tornadas corriqueiras – contra lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, todas as minorias segregadas, todos os direitos historicamente violentados, os etarismos, gordofobia, deficiências. Em Paris, a seleção argentina masculina de futebol (sobre a qual paira a suspeição do racismo, transfobia e homofobia, após vídeo de celebração na Copa América), foi confrontada com as consequências de seu silêncio. Vaiados durante o jogo contra a França, os atletas daquele esporte precisam ser acareados por sua convivência histórica com o racismo e o preconceito. A nova ordem mostra que é preciso trazer à luz a ofensa e a segregação, condição crucial para combatê-las. 

A postura dos atletas de destaque, como Simone Biles e Bia Souza, evidencia que ninguém mais está sozinho no mundo. Em meio à partida entre Brasil e Angola no handebol, uma cena marcou a competição para sempre: a brasileira Tamires foi até a atleta angolana Albertina Kassoma, adversária que estava tendo dificuldade para caminhar, apanhou-a nos braços e a levou até o banco para receber atendimento. A boxeadora argelina Imane Khelf, que deixou o ringue em lágrimas após uma vitória (em um desabafo relativo aos comentários de ódio que vinha recebendo como resultado do questionamento de gênero que sofre), recebeu o apoio maciço dos outros competidores, o que a ajudou a dar a volta por cima. “É porque ela é africana, é porque ela é argelina”, denunciou um indignado fã da lutadora.

Da cerimônia de abertura aos seus clímaxes, essa está sendo uma Olimpíada de abrigamento. Que, não por acaso, alistou a primeira atleta paralímpica, a mesatenista brasileira Bruna Alexandre, que teve um braço amputado na infância. “Todo mundo um dia viu a marcha atlética e falou: ‘O que é isso, cara!? Que estranho’. Eu não, porque era a profissão da minha mãe. Cresci com aquilo. ‘É normal, por que as pessoas estão xingando e fazendo brincadeira!?’. Essa prova aí, nós não estamos brincando de rebolar. Nós somos uma potência. Nós somos medalhistas olímpicos”, desabafou Caio Bonfim após ganhar a medalha de prata na Marcha Atlética.

As vitórias esportivas nos Jogos não estão distinguindo somente a notável performance atlética do povo preto (que a História já consagrou há séculos), mas agora também sua tenacidade social, sua persistência, a disposição de quebrar as contingências classistas. O Brasil, cuja consagração tradicional dos recordes olímpicos provinha de homens brancos escandinavos, sobrenomes como Scheidt e Grael, agora vê assomarem no cenário os bolsistas Souza, Andrade, Leal, Barbosa e Bonfim. 

Mas a história clássica de superação não surge como algo a ser normalizado infinitamente, como se fosse condição sine qua non da saga da negritude, mas um obstáculo a ser superado com atos de Estado. O notável pugilista David de Pina fez história por Cabo Verde ao conquistar a primeira medalha daquele País, de bronze, em condições impensáveis para um atleta olímpico: trabalhando na construção civil e interrompendo treinos cotidianamente para sustentar a família. É heroico, mas precisava ser assim?

As Olimpíadas de Paris vieram ampliar o debate da condição planetária, do entrelaçamento de  destinos e das responsabilidades coletivas. Um argelino, Redouane Messaoud Dris, do judô, recusou-se a  enfrentar um adversário israelense, Tohar Butbul, por considerar que Israel não deveria estar competindo nos jogos ao mesmo tempo em que promove um massacre sem precedentes na Faixa de Gaza. Paris 2024 traz uma novidade que não mais aparenta ter possibilidade de recuo: as antigas fronteiras geográficas estão definitivamente esgarçadas pela maior de todas as unidades: a dimensão humana. Que é, também, uma dimensão política.

Legendas: Tamires carrega Kamoussa durante o handeball; Bia Souza comemora o ouro no judô; e David de Pina ganha a primeira medalha de ouro de seu País, Cabo Verde

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