Desprezado em vida por seus colegas modernos, Artacho Jurado tem desforra na Paulista

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Um dos arquitetos fundamentais na construção da paisagem urbana de São Paulo foi João Artacho Jurado (1907-1983), que, principalmente nos anos 1950, inventou uma ideia de glamour e fantasia para a emergente metrópole que irritou seus colegas do panteão modernista. Autodidata, sem formação em arquitetura e urbanismo, pontilhou de neon e cor os 12 edifícios, casas e pontos comerciais que plantou no espaço urbano paulista, mas morreu sem ter o devido reconhecimento. Em Higienópolis, encontra-se um número considerável de suas obras, assim como no centro da cidade: Edifício Planalto (Rua Maria Paula, 259), Edifício Parque das Hortênsias (Avenida Angélica, 1106), Edifício Louvre (Avenida São Luiz), Edifício Piauí (Rua Piauí, 428), Edifício Cinderela (Rua Maranhão, 163). E o mais impressionante deles, o Edifício Bretagne (Avenida Higienópolis, 938), um fetiche póstumo.

Artacho Jurado foi rejeitado por seus pares por diversas razões, uma delas por ter se prestado a bolar eventos de repercussão pública, saraus e encenações publicitárias, para divulgar suas realizações arquitetônicas. Hoje, isso é amplamente considerado uma bobagem: as soluções de Artacho são plenas de originalidade, delírio e lirismo. Filho de imigrantes espanhóis, Artacho Jurado começou sua carreira como letrista de cartazes, estandartes, feiras e exposições, na década de 1920. “Sem ter formação como arquiteto ou engenheiro, ele ergueu edifícios que perduram até hoje e se tornaram ícones de São Paulo e objetos de desejo”, aponta o texto da Ocupação Artacho Jurado, que se abre nesta quinta-feira, 20 no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, com 130 peças (fotografias, maquetes, vídeos, documentos, peças publicitárias). A curadoria desta Ocupação é do antropólogo, curador, pesquisador e roteirista documental Guilherme Giufrida, ao lado da curadora, arquiteta e pesquisadora Jéssica Varrichio e da equipe do Itaú Cultural formada pelos núcleos de Artes Visuais e de Informação e Difusão Digital, o qual abriga a Enciclopédia da instituição. A expografia é de Juliana Godoy.

O curador da exposição Artacho Jurado respondeu a algumas questões enviadas por FAROFAFÁ, e suas respostas remontam a dimensão do arquiteto na criação da imaginação urbanística de São Paulo e do Brasil, por extensão:

A QUESTÃO COM OS MODERNISTAS

O Artacho vivia uma espécie de ostracismo por parte dos arquitetos da chamada Escola Paulista, do modernismo, do brutalismo de São Paulo, no período. Primeiro, porque ele não tinha formação em arquitetura. Então ele não tinha esse respaldo, nem pertencia ao circuito, aos círculos, que eram muito restritos na época. Até hoje. Mas, enfim, na época, muito mais. Segundo, por uma questão de gosto também. Ele tinha essa questão com a cor, com a forma, os adornos, essa multiplicidade de referências, esse acúmulo. Essa estética maximalista, em um período em que estava sendo pregada uma suposta ideia de racionalismo, de pureza, de sobriedade, de você acessar diretamente as estruturas. Estrutura como sendo o próprio, vamos dizer, revestimento, a própria aparência da arquitetura. Enquanto ele revestia essa estrutura com com mármores, com pastilhas. Mas ele acabava se apropriando também do modernismo, ele não via uma oposição. Ele era superfã do (Oscar) Niemeyer. Foi ao Rio para conhecer a arquitetura moderna carioca, e colocava referências ao modernismo nos seus projetos. O (Edifício) Louvre tem uma referência direta ao (edifício) Prudência do Rino Levi, e também ao Cine Marabá. As marquises do Niemeyer, e as da Pampulha, aparecem no Parque das Hortênsias, do Artacho. Mas ele fazia à maneira dele, com pastilha cor de rosa, azul. O Artacho ia navegando, sem necessariamente reconhecer uma oposição. Enquanto o outro lado reconhecia. Acho que o ápice dessa tensão entre o Artacho e a chamada Escola Paulista, com a FAU-USP, vamos dizer, se deu com um artigo do Eduardo Corona (1921-2001). Que era um professor lá da FAU. Acho que o nome do artigo era “Que audácia!”, dizendo que aquela arquitetura do Artacho estava confundindo o público do que seria o modernismo e atrapalhando, e pedindo para as pessoas não darem atenção, não comprarem a arquitetura dele, que aquilo ali era falso, uma espécie de falseamento da própria ideia dos preceitos modernos, que estavam entrando com tanta, na visão dele, com tanta dificuldade aqui. Que era uma arquitetura marcada pela questão da decoração, das influências da arquitetura francesa, do rococó, neoclassica do final do século 19.

A FORMAÇÃO INTELECTUAL DE ARTACHO JURADO

Olha, a gente sabe muito pouco do que lia do que ouvia o Artacho, até porque ele não se reconhecia, né? Não tinha esse espécie de ethos do artista intelectualizado que mantém um caderno, que deixa anotações, deixa assim registros, nem entrevistas a gente tem acesso. Provavelmente pode ter dado para rádios, algo do gênero, mas a gente não tem arquivos disso. O que a gente sabe é que ele assinava revistas de arquitetura estadunidenses. Ele teve acesso a essa estética Califórnia-Flórida, dos cassinos, dos hotéis. Com certeza, isso era algo que o influenciava. Ele viajou para o Rio de Janeiro e conheceu a arquitetura moderna de lá, e era apaixonado, como eu disse, pelo Niemeyer, por essa geração. Não tinha nenhum problema, nenhuma aversão. Eu soube que ele gostava muito do Masp também. Enfim, ele acompanhava a arquitetura moderna com paixão, mas ao mesmo tempo devoção também, no sentido de querer fazer algo semelhante. “Quero fazer os meus monumentos, os meus clubes também”. Eu costumo dizer que em São Paulo, na época, tinha o Clube Paulistano, feito pelo Paulo Mendes da Rocha, e o Clube Pinheiros, feito pelo Rino Levi. Aí que a alta elite circulava. E aí ele vai fazer seus prédios para uma classe média da época, vai fazer o seu clube, a sua versão desses espaços de convivência. Ele queria participar, mas havia um tempo que ele não participava. Agora, é muito comentado que ele era um grande apaixonado por ópera, frequentava o (Teatro) Municipal, assinava as as temporadas. Então a gente considera que a arquitetura dele tem muito esse aspecto do cenário dramático. Como se o morador fosse viver ali como um grande ator de ópera ou como um astro de cinema, pensando nessa referência da cultura dos Estados Unidos, e a presença nas aberturas dos prédios para celebridades, ou subcelebridades, hollywoodianas, atores de Hollywood que estavam vindo para cá e ele usava essas para ajudar a fazer a divulgação. Apesar de o prédio já estar vendido, não era uma divulgação para venda, mas de estilo de vida, de modos de morar, de arquitetura. Apesar de não ter reconhecimento nenhuma durante a vida dele, só foi ter depois. Eu acho que essa arquitetura é uma arquitetura Hollywood, um grande cenário para você viver com uma estrela ali, né? Então, eu acho que o universo de referências dele, que se você for pensar lá atrás, nos primórdios, vem do neon, que é no que começa a trabalhar, fazendo um curso técnico de projeção de neon ali para a região da Rua Augusta. Isso aí nos anos 1930. E então, esse aspecto dos luminosos, dos prédios iluminados, dos prédios brilhantes, cintilantes, com esse vidrotil que ele vai conseguindo usar, entra a cor mesmo, o pigmento com vidro e esse brilho mesmo dos prédios, essa questão da publicidade, do outdoor. Outdoor que até ele acaba usando em alguns prédios, até para baratear o condomínio e tudo mais. Acho que, de certa maneira, essa questão da ópera e do neon e depois das feiras, que vão ser as primeiros projetos que ele vai desenvolver, as feiras temporárias, essa cenografia ali para apresentar as novidades da indústria – eu acho que isso forma o caldo em que ele se forma ali nos anos 1930, somado a essas revistas estadunidenses e a arquitetura modernista, especialmente do Niemeyer.

O MARKETING EM ARTACHO JURADO

Já foi muito considerado que a arquitetura do Artacho era uma arquitetura para chamar atenção, né? Que era como se fosse uma grande arquitetura outdoor, uma grande arquitetura do impacto, para que aquilo de alguma maneira vendesse. Eu discordo um pouco disso, porque os prédios eram vendidos praticamente todos já na planta, né? Ele tinha, sim, uma atenção à promoção publicitária, é um dos inventores da ideia de o condomínio ter um slogan. Ele trazia assim uma proposta, uma espécie de promessa, de vida, do que aquela decoração, aquela arquitetura, significasse. Eu acho que ele de fato tinha um partido, tinha uma proposta, tinha um desejo para a paisagem urbana, algo que não era exatamente sóbrio, não era exatamente minimalista. Através do uso de cor, que eu acho que ele fazia muito bem, e das formas. A verdade é que o uso da cor, em Artacho, vem dos materiais. Se você olhar, ele não é uma uma pessoa que vai colorindo o prédio com pintura, é parte da estrutura – seja um cobogó (tijolo perfurado ou elemento vazado feito de cimento, utilizado na construção de paredes ou fachadas), seja uma parede solta no ambiente; seja um intercalamento entre os andares. Ele vai usar um tipo de material que pode ser um um vidrodil, um tijolinho, uma estrutura de gesso, materiais que, a princípio, não combinam: e cada um tem uma espécie de natureza dada pelo material, e cor, também dada pelo material, que vai conformando essa espécie de sobreposição de cores e formas e ângulos e texturas. Algo muito difícil, porque a chance de, vamos dizer, dar errado, de ficar algo um pouco excessivo, era grande. Era considerado excessivo naquele período, mas acho que é uma arquitetura, uma estética, que envelheceu bem. Ela traz esse imaginário do modernismo, mas ele tem, adicionado a isso, uma dimensão muito autoral, de elementos de cor, elementos de canteiro para planta. Então, tem uma espécie de equilíbrio ali entre um modernismo da pureza, da simetria, das linhas retas, com esses elementos decorativos. Tem referências indígenas, referências afrancesadas, e tudo isso um pouco faz sentido ali naquela estética maximalista. É por colagem, por acúmulo, e de alguma maneira é um barroco, né? Alguém que vai acrescentando e não vai negando essa possibilidade de junção. É quase um arquiteto pop, um arquiteto pós-moderno em pleno anos 40 e 50.

O CINEMA AMERICANO

A gente não sabe muito da relação, mas o cinema americano estava muito presente. O cinema ocupava um lugar muito central na época, a população brasileira tinha cinema em todo lugar, tudo quanto era cidadezinha, tudo quanto é bairro. E essas novidades de Hollywood, os atores, as roupas, a arquitetura, sem dúvida vinham com muita força. Então, esse american way, que ele traz já no primeiro conjunto de casas, que já vinha com carro, com telefone, isso era um clichê, era um zeitgeist dos anos 1940 e sobretudo dos anos 1950. Que o Artacho de fato não negava. A gente tem mais informação dessas revistas da Califórnia e da Flórida, que ele comprava, do que de fato de uma devoção ao cinema. Pelo que a gente soube, a relação dele mais forte em termos de gosto artístico era com a ópera tanto na frequência das próprias óperas encenadas no Municipal quanto escutando essas óperas, à noite sobretudo, nos seus escritórios. A gente vê os armários com a coleção de disco dele, sobretudo de ópera, e é assim que ele desenhava: fumando charuto, olhando a cidade pela janela, vendo essa paisagem, que o deixava maravilhado. Imagina o componente do drama: ele olhando essa paisagem da cidade, fumando charuto, com aquela ópera ali tocando alto e ele com o seu material de desenho e tal, compondo, desenhando. Então, acho que o objetivo da exposição assim, em síntese, é olhar para esse criador, esse artista, esse pensador, esse construtor que foi o Artacho, menos do que categorizá-lo como um arquiteto, um publicitário, um vendedor, um comerciante, tudo que já foi dito para ele sobre ele, mas que raramente as pessoas se preocupam em entender. Qual é a obra desse sujeito que construiu 12 obras-primas entre São Paulo e Santos em uma década só, uma obra que tem faz muito sentido um prédio com outro, que se cita internamente, que tem cores, paletas, formas que dialogam, que se desenvolvem com uma atenção extrema ao detalhe. Então, quem é esse artista? É como se a gente fosse fazer uma pesquisa, uma exposição individual desse sujeito, desse desenhista, desse colorista. De onde vem essa estética, quais são os seus efeitos a com o que ela estava dialogando, se contrapondo? E o que que ela representa hoje, 60, 70 anos depois dessas obras serem construídas? Que outro caminho para o modernismo ele apresentava? Então, tudo isso são questões da exposição.

SERVIÇO:
Ocupação Artacho Jurado. Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, próximo à estação Brigadeiro do metrô). Desta quinta-feira, 20 de junho, até 15 de setembro. Sala Multiuso – 2º piso. Grátis. Terça-feira a sábado, das 11h às 20h; domingos e feriados, das 11h às 19h.
Estacionamento: entrada pela Rua Leôncio de Carvalho, 108.Com manobrista e seguro, gratuito para bicicletas.
Mais informações: Tel. (11) 2168.1777

Edifício de Artacho Jurado em Santos, litoral de São Paulo

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