Acompanhe abaixo um roteiro musical da obra de Lupicinio Rodrigues em voz própria e nas vozes dos intérpretes que têm regravado seus sambas-canções desde os anos 1930 até os dias atuais. Leia mais em “A obra de Lupicinio Rodrigues ganha novos contornos em Confissões de um Sofredor“.
1 Cyro Monteiro, “Se Acaso Você Chegasse” (Lupicinio Rodrigues-Felisberto Martins), 1938 – Primeiro sucesso popular tanto do compositor como do intérprete, “Se Acaso Você Chegasse” antecede a dor de cotovelo na história de um narrador que adverte um amigo de que conquistou sua namorada: “Eu falo porque essa dona já mora no meu barraco à beira de um regato e um bosque em flor/ de dia me lava a roupa, de noite me beija a boca/ e assim nós vamos vivendo de amor”. O parceiro nesta e em várias criações de Lupicinio, Felisberto Martins, era diretor artístico da gravadora Odeon e, segundo consta, não participava efetivamente das composições, num tempo em que vender músicas era moeda de sobrevivência para autores negros de origem pobre. Nesse primeiro período, com menor êxito, Cyro gravou outros dois sambas de Lupicinio: “Enquanto a Cidade Dormia” (1939) e “Briga de Amor” (1940).
2 Elza Soares, “Se Acaso Você Chegasse”, 1959 – Vinte e um anos depois do primeiro lançamento, “Se Acaso Você Chegasse” dobrou seu papel histórico e revelou Elza Soares, que remeteu o samba sincopado ao jazz, entre scats vocais: nascia o samba-jazz, apelidado, nesse primeiro momento pós-eclosão da bossa nova, de “bossa negra”. Criada na favela carioca com lata d’água na cabeça, Elza encara com bravura, mas sem chance de autodefesa, os laivos de desprezo e desdém à figura feminina (“essa dona” que “de dia me lava a roupa”), um traço frequente na música e do tempo de Lupicinio.
3 Alcides Gonçalves, “Triste História” (Lupicinio Rodrigues-Alcides Gonçalves), 1936 – Antes do sucesso, o primeiro registro fonográfico de Lupicinio foi um compacto do conterrâneo porto-alegrense Alcides Gonçalves, contendo duas parcerias da dupla, “Pergunte aos Meus Tamancos” e “Triste História”. O lado B é a primeira incursão lupiciniana na dor de cotovelo, quando o sofrimento acontecia ainda em terceira pessoa: “Encontrei com um malandro/ tão triste, o coitado/ seu amor lhe abandonou/ um homem não chora, é verdade/ mas esse malandro chorou”.
4 Newton Teixeira, “Quando Eu For Bem Velhinho” (Lupicinio Rodrigues-Felisberto Martins), 1940 – Testado pelo “parceiro” Felisberto Martins como autor de marchinha carnavalesca, Lupicinio compôs para o carioca Newton Teixeira, aos 26 anos, uma preocupação precoce com o final da vida: “Mas quando eu for bem velhinho/ bem velhinho que usar um bastão/ eu hei de ter um netinho, ai/ pra me levar pela mão”.
5 Caco Velho, “Briga de Gato” (Lupicinio Rodrigues-Caco Velho), 1945 – Negro, sambista e gaúcho, Caco Velho teve uma história parecida com a de Lupicinio como intérprete e não conquistou grande reverberação apesar de algumas obras-primas autorais (caso do libelo racial “Mãe Preta“, 1943, gravado com letra e título modificados pela portuguesa Amália Rodrigues e por Ney Matogrosso). Em seus primeiros anos como compositor profissional, Lupicinio não repetiu a repercussão de “Se Acaso Você Chegasse”, mas teve sambas gravados por vozes de respeito como Odete Amaral, então casada com Cyro Monteiro (“Carteiro“, 1942), Moreira da Silva (“Cigano“, 1940, “Meu Pecado“, 1944) e o congênere mineiro Ataulfo Alves (“Trabalho!” e “Malvado“, 1945).
6 Orlando Silva, “Zé Ponte” (Lupicinio Rodrigues-Felisberto Martins), 1947 – Em tempos de comércio clandestino de sambas, o jogo começou a virar para o compositor Lupicinio quando o carioca Orlando Silva, um dos intérpretes mais bem-sucedidos da era de ouro da canção nacional, passou a fazer sucesso com alguns de seus sambas, “Basta!” (1944), “Brasa” (1945) e, principalmente, “Zé Ponte” (1947). A letra dessa última, assinada em dupla com o diretor artístico da gravadora de Orlando, já era puro suco do melhor dos estratagemas e do dramalhão lupiciniano: “E cada vez que ela carrega um balde d’água/ leva junto a minha mágoa/ pendurada em sua mão”.
7 Francisco Alves, “Nervos de Aço” (Lupicinio Rodrigues), 1947 – Enciumado com a associação Lupicinio-Orlando Silva, Francisco Alves, o “rei da voz” dos anos 1930, 1940 e 1950, adotou o anônimo gaúcho como compositor a partir de 1947, e o primeiro petardo foi logo um dos futuros clássicos indeléveis da dor de cotovelo e da música popular brasileira, “Nervos de Aço” (também gravado, no primeiro momento, pelo carioca Déo), assinado por Lupicinio sem parceiros: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/ ter loucura por uma mulher/ e depois encontrar esse amor, meu senhor/ nos braços de outro qualquer?”.
8 Paulinho da Viola, “Nervos de Aço”, 1973 – Segundo êxito popular de Lupicinio, “Nervos de Aço” foi reinventada 26 anos mais tarde pelo sambista moderno Paulinho da Viola, que suavizou o dó de peito de Francisco Alves e elaborou uma releitura de dor plácida, essencialmente pós-bossa-novista apesar da letra bolerona do samba-canção. “Há pessoas com nervos de aço/ sem sangue nas veias e sem coração/ mas não sei se passando o que eu passo talvez não lhes venha qualquer reação”, canta Paulinho, os nervos à flor da pele sensibilíssima, antes de sintetizar o turbilhão sentimental lupiciniano: “Eu não sei se o que eu trago no peito é ciúme, amizade, despeito ou horror/ eu só sei que quando eu a vejo/ me dá um desejo de morte e de dor”.
9 Os Gaudérios, “Felicidade” (Lupicinio Rodrigues), 1959 – 1947 devia ser o ano de Lupicinio Rodrigues: além de “Nervos de Aço”, revelou-se nas vozes gaúchas do Quarteto Quitandinha uma modinha que o autor tinha composto aos 18 anos, a bucólica “Felicidade”, na verdade uma canção de fossa que de feliz não guarda muito mais que o título: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora/ e é por isso que eu gosto lá de fora/ porque eu sei que a falsidade não vigora”. Tornou-se um prato cheio para os artistas gaúchos ditos nativistas, como Os Gaudérios, que a gravaram em 1959.
10 Caetano Veloso, “Felicidade (Felicidade Foi Embora)”, 1974 – Em 1974, seguindo a pista aberta no ano anterior por Paulinho da Viola e por Gal Costa, o baiano Caetano Veloso refundou “Felicidade”, numa versão épica de mais de seis minutos que explicita e esmiúça a tristeza de que a canção aparentemente feliz era feita.
11 Pena Branca e Xavantinho, “Felicidade”, 1990 – Com o passar dos anos e das décadas, “Felicidade” tornou-se uma predileta das duplas e artistas interioranos rotulados de caipiras, sertanejos e assemelhados, a exemplo da releitura dos mineiros Pena Branca e Xavantinho em 1990. Entre os que se renderam à sua simplicidade, elencam-se Zico e Zeca (em 1975), Vanusa (1986), Tonico e Tinoco (1991), Renato Borghetti e Almir Sater (1992), Inezita Barroso e Roberto Corrêa (1996), os ex-Almôndegas Kleiton & Kledir (1999), Célia e Celma (2000), Renato Teixeira e Zé Geraldo (2000), Leonardo (2002), Sérgio Reis (2003)…
12 Gilberto Gil, “Esses Moços (Pobres Moços)” (Lupicinio Rodrigues), 1974 – Francisco Alves voltou à carga em 1948, com mais dois temas lupicinianos imortais. Na investida emepetbista-tropicalista de 1973, coube ao baiano Gilberto Gil o samba-canção “Esses Moços (Pobres Moços)”, mais uma reflexão dramática sobre o envelhecimento, apresentada quanto o autor tinha 34 anos e o intérprete original, 50: “Se eles julgam que há um lindo futuro/ só o amor nesta vida conduz/ saibam que deixam o céu por ser escuro/ e vão ao inferno à procura de luz/ eu também tive nos meus belos dias/ esta mania e muito me custou/ pois só as mágoas que trago hoje em dia/ e essas rugas o amor me deixou”.
13 Fábio Jr., “Esses Moços (Pobres Moços)”, 1980 – “Esses Moços” virou música pop dos anos 1980 quando o paulista Fábio Jr., então galã de primeira linha da Rede Globo (mas também cantor sensível), regravou-a para constar na trilha de uma novela das seis da tarde, Olhai os Lírios do Campo, baseada na obra do gaúcho Érico Veríssimo.
14 Nelson Gonçalves, “Quem Há de Dizer” (Lupicinio Rodrigues-Alcides Gonçalves), 1975 – Parceria com Alcides Gonçalves, o terceiro clássico lupiciniano revelado por Francisco Alves em 1948, “Quem Há de Dizer”, seduziria discípulos do “rei da voz” e/ou do príncipe da dor de cotovelo ao longo das décadas, casos de Francisco Egydio (em 1962), Altemar Dutra (1965), Miltinho (1970), Jamelão (1972), Silvio Caldas (1973), Elza Soares (1974), o conterrâneo Nelson Gonçalves (175), Wilson Simonal (1979)…
Mas “Quem Há de Dizer” seduziu também o oposto simétrico de Francisco Alves: João Gilberto cantou esse samba-canção na TV Tupi, em 1971, invertendo o dramalhão abolerado em bossa nova. “Ela nasceu/ com o destino da lua/ pra todos que andam na rua/ não vai viver só pra mim”, sussurrou João, documentando em registro dúbio e amoroso a desventura de um homem que assiste, mais ou menos resignado, ao trabalho da mulher amada num cabaré. Com Francisco, João, Nelson ou Elza, os versos simbolistas de Lupicinio carregam grande inspiração: “Repare bem que toda vez que ela fala/ ilumina mais a sala/ do que a luz do refletor/ o cabaré se inflama quando ela dança/ e com a mesma esperança/ todos lhe põem o olhar/ e eu, dono, aqui no meu abandono/ espero louco de sono/ o cabaré terminar”.
15 Francisco Alves, “Maria Rosa” (Lupicinio Rodrigues-Alcides Nogueira), 1950 – Dois derradeiros clássicos lupicinianos saíram da garganta de Francisco Alves em 1950. O primeiro deles, “Maria Rosa”, ostenta a mesma hostilidade polvilhada de fascínio pela figura feminina que já estava presente em “Quem Há de Dizer”. Desta vez, retrata com rancor e culpa cristã a velhice da ex-amada: “Vocês estão vendo aquela mulher de cabelos brancos/ vestindo farrapos, calçando tamancos/ pedindo nas portas pedaços de pão/ a conheci quando moça/ era um anjo de formosa/ seu nome é Maria Rosa/ seu sobrenome Paixão”.
16 Elis Regina, “Maria Rosa”, 1974 – A gaúcha Elis Regina triplicou a dramaticidade ao regravar “Maria Rosa”, acondicionando misoginia e espírito de libertação feminina num mesmo e tormentoso caldeirão. “Vocês, marias de agora/ amem somente uma vez/ para que mais tarde essa capa não sirva em vocês”, canta Elis, vestindo, não sem relutância, a capa cruel da (sempre falsa) moralidade puritana.
17 Elis Regina, “Maria, Maria” (Milton Nascimento-Fernando Brant), 1980 – Vista pela luneta da história, “Maria, Maria” (de Milton Nascimento e Fernando Brant), lançada por Elis em 1980, soa como um revide eloquente ao penar das marias lupicinianas – e uma resposta de Elis Regina a Elis Regina, “uma mulher que merece viver e amar/ como outra qualquer do planeta”.
18 Francisco Alves, “Cadeira Vazia” (Lupicinio Rodrigues-Alcides Gonçalves), 1950 – O último produto avassalador da associação Francisco Alves-Lupicinio Rodrigues foi “Cadeira Vazia”, sobre a volta arrependida de mais uma maria e a rejeição que o narrador afirma dispensar a ela. “Entra, meu amor, fica à vontade/ e diz com sinceridade/ o que desejas de mim/ entra, podes entrar, a casa é tua/ já que cansaste de viver na rua/ e teus sonhos chegaram ao fim”, começa o eu-lírico, despistando o rancor que explodirá logo a seguir: “Voltastes, estás bem, estou contente/ só me encontraste muito diferente/ vou te falar de todo o coração/ não te darei carinho nem afeto/ mas pra te abrigar podes ocupar meu teto/ pra te alimentar podes comer meu pão”. Chico Alves gravaria um último melodrama de Lupicinio, “Pra São João Decidir” (1952), de menor poder de fogo que os antecessores, antes de morrer precocemente, aos 54 anos, num acidente automobilístico.
19 Elis Regina, “Cadeira Vazia”, 1974 – Um compacto duplo marcou a rendição da nova MPB a Lupicinio no ano de sua morte, com Caetano cantando “Felicidade”, Gil em “Esses Moços” e Gal Costa relendo “Volta”. A Elis Regina coube a parte mais difícil, de assimilar com nervos de aço a humilhação que o eu-lírico lupiciniano pretendia impor à “filha pródiga” que o abandonara e voltava pedindo refúgio.
20 Adriana Calcanhotto, “Cadeira Vazia”, 2015 – A gaúcha Adriana Calcanhotto retomou “Cadeira Vazia” em tempos menos favoráveis para o imaginário lupiciniano, 41 anos depois de Elis, dotando sua (per)versão do grau transgressor inerente ao show e álbum Loucura, nas muitas camadas envolvidas na reinterpretação dos versos muitas vezes carregados de misoginia por uma intérprete feminina, lésbica e vestida de terno e gravata.
21 Linda Baptista, “Vingança” (Lupicinio Rodrigues), 1951 – Pouco antes da morte de Francisco Alves (em 1952), a arte de Lupicinio Rodrigues encontrava outra voz tradutora, agora feminina. A paulista Linda Baptista lançou “Migalhas” (1950), tomando o eu-lírico da “filha pródiga” (“mas a chorar/ vejo na minha tristeza/ que não mereço as migalhas/ que caem da tua mesa”) e, de um golpe só, os clássicos “Vingança” e “Dona Divergência” (1951). A primeira é possivelmente o tratado máximo do rancor e da (auto-)humilhação lupicinianos, desde o título, mas indo muito além: “Eu gostei tanto, tanto quando me contaram/ que lhe encontraram bebendo, chorando na mesa de um bar/ e que quando os amigos do peito por mim perguntaram/ um soluço cortou sua voz/ não lhe deixou falar”. Não se trata de uma canção para bons moços ou para boas moças: “O remorso talvez seja a causa do seu desespero/ você deve estar bem consciente do que praticou/ (…) mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada/ só vingança, vingança, vingança aos santos clamar”. Como já havia feito com a “Mãe Preta” de Caco Velho, a portuguesa Amália Rodrigues fez “Vingança” atravessar o Oceano Atlântico e se transformar em fado, em 1952.
22 Maria Bethânia, “Vingança” (1989) – O eu-lírico feminino vingativo inaugurado por Linda Baptista foi a plataforma para inúmeras releituras, desde Angela Maria (1955) até Maria Bethânia (1989), passando por Elza Soares (1965), Doris Monteiro (1974), Maria Creuza (1974), Isaura Garcia (1976), Simone (1980), Edith Veiga (1982), Núbia Lafayette (1992), Irmãs Galvão (1992), Alcione (2003), Adriana Calcanhotto (2015)…
23 Linda Baptista, “Dona Divergência” (Lupicinio Rodrigues-Felisberto Martins), 1951 – Numa letra atípica, Lupicinio coloca em patamar equivalente as guerras de fato, por exemplo a recém-terminada Segunda Guerra Mundial (“ó, Deus, que tens poderes sobre a Terra/ deves dar fim nesta guerra/ e nos desgostos que ela traz”, “ponha tudo em seus lugares/ com o bálsamo da paz”), e as guerras conjugais, em versos plenos de simbolismo e verve poética: “A dona divergência com o seu archote/ espalha os raios da morte/ a destruir os casais/ e eu, combatente atingido,/ sou qual um país vencido/ que não se organiza mais”.
24 Jards Macalé, “Dona Divergência”, 1987 – Uma das desconstruções mais poderosas de “Dona Divergência” pertence ao iconoclasta Jards Macalé, no álbum de releituras 4 Batutas & 1 Coringa, dedicado às obras negras de Lupicinio, Nelson Cavaquinho, Geraldo Pereira e Paulinho da Viola. Outras versões rebeldes ficaram por conta de Jamelão (1980), Cida Moreira (1985), Tom Zé (2003) e Ayrton Montarroyos (2019).
25 Dircinha Baptista, “Nunca” (Lupicinio Rodrigues), 1952 – Para a paulista Dircinha Baptista, irmã mais nova de Linda Baptista, Lupicinio reservou a fossa profunda de outra pepita de ouro, “Nunca”, provável fonte de inspiração para Maysa compor “Meu Mundo Caiu” (1958): “Nunca/ nem que o mundo caia sobre mim/ nem se Deus mandar, nem mesmo assim/ as pazes contigo eu farei/ mas nunca/ quando a gente perde a ilusão/ deve sepultar o coração/ como eu sepultei/ saudade/ diga a esse moço por favor/ como foi sincero meu amor/ quanto eu o adorei tempos atrás/ saudade/ não esqueça também de dizer/ que você me faz adormecer/ pra que eu viva em paz”. Outra paulistana, Isaura Garcia, disputou com Dircinha a primazia por “Nunca“, no mesmo ano de 1952.
26 Zizi Possi, “Nunca”, 1979 – A modernização de “Nunca” coube a mais uma paulistana, Zizi Possi, que em voz de veludo revalidou 27 anos mais tarde a empatia entre Lupicinio e as intérpretes femininas, em especial as paulistas. Outra paulista, a santista Leny Eversong, apoderou-se da canção em 1957, dessa vez com voz e interpretação de trovão. A carioca Beth Carvalho rendeu-se a “Nunca” em seu LP de estreia, de 1969, quando ainda não optara pelo samba-raiz como veio principal de expressão musical e cantava com voz impostada estilo pré-bossa nova.
27 Gilberto Milfont, “As Aparências Enganam” (Lupicinio Rodrigues), 1952 – O cearense Gilberto Milfont ganhou uma inédita de menor envergadura, mas de letra tipicamente lupiciniana, do grupo dos lamentos de desacerto e guerra conjugal: “Vejam como as aparências enganam/ como difere a vida dos casais/ não são aqueles que mesmo se amam/ que às vezes moram em lugares iguais/ há uns que casam porque se querem/ outros somente por comprazer/ sem se lembrar que por mais que diferem/ nunca mais hão de deixar de sofrer”. O desfecho é contumaz: “Ela casou-se com outro vivente/ e eu tenho outra mulher para mim”. Quem gravou “As Aparências Enganam” além de Gilberto em 1952 foi nada menos que o próprio autor, que pela primeira vez conseguia então lançar alguns compactos e um LP de dez polegadas batizado Roteiro de um Bohêmio, com versões autorais para “Vingança”, “Nunca“, “Felicidade” (com versos diferentes) e quatro composições menos conhecidas.
28 Linda Baptista, “Foi Assim” (Lupicinio Rodrigues), 1952 – A incompatibilidade de gênios, a troca de casais e a inabilidade para o amor são os motes de mais um grande sucesso de Lupicinio na voz de Linda Baptista, a rocambolesca “Foi Assim”: “Será que é meu destino?/ será que é meu azar?/ mas tenho que viver brigando/ todos no mundo encontram seu par/ por que só eu vivo trocando?”. As idas e vindas de “Foi Assim” foram retomadas em 1975 por Maria Bethânia, em show e disco divididos com o ani-lupiciniano Chico Buarque.
29 Luiz Gonzaga, “Jardim da Saudade” (Lupicinio Rodrigues), 1952 – Uma até então improvável síntese Sul-Nordeste se dá quando o pernambucano Luiz Gonzaga, em fase de ascensão rumo ao posto de “rei do baião”, lança duas canções de Lupicinio em dois compactos de 1952. Enquanto “Juca” tenta substituir fossa por positividade (“deixa, Juca, deixa/ deixa de queixa e vamos cantar”), em “Jardim da Saudade” a sanfona de Gonzagão visita o nativismo gaúcho e o tango argentino, num tema estradeiro sulista: “Ver campos verdes cobertos de azul/ isto só indo ao Rio Grande do Sul/ ver gauchinha seu pingo montar/ e amar com sinceridade/ ah, o Rio Grande do Sul é pra mim o jardim da saudade”.
30 Conjunto Farroupilha, “Amargo” (Lupicinio Rodrigues-Piratini), 1953 – A mais gaúcha de todas as criações de Lupicinio, inclusive no sentido nativista, foi uma ode ao chimarrão, interpretada originalmente pelo conterrâneio Conjunto Farroupilha. De título essencialmente lupiciniano e assinada em parceria com o seresteiro porto-alegrense Piratini, “Amargo” é um prato cheio para o rei da dor de cotovelo fundir o gosto amargo do chimarrão e os amargores da vida: “Amigo, boleia a perna/ puxe o banco e vá sentando/ descansa a palha na orelha/ e o crioulo vai picando/ enquanto a chaleira chia/ o amargo vou cevando/ (…) chinoca fugiu de casa/ com meu amigo João/ bem diz que mulher tem asa/ na ponta do coração”.
31 Almôndegas, “Amargo”, 1975 – Por vezes chamada “Cevando o Amargo”, a ode ao chimarrão e à amargura atravessa as décadas numa profusão de regravações, sobretudo por artistas gaúchos, como o Conjunto Melódico Norberto Baldauf (1957), o grupo nativista Os Gaudérios (1959), o grupo de MPB/rock rural Almôndegas (1975), as cantoras Berê (1975) e Berenice Azambuja (1981), o trio formado para homenagear Lupicinio por Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro e Pery Souza (1989), o flautista Plauto Cruz (1998), o maestro Tasso Bangel com a Camerata Campeana (2014) e Adriana Calcanhotto (2015), além de não gaúchos como a forrozeira carioca Carmélia Alves (1956), o patrimônio caipira paulista Rolando Boldrin (1984) e o violeiro também paulista Isaac Brasil (2003).
32 Elizeth Cardoso, “Castigo” (Lupicinio Rodrigues-Alcides Gonçalves), 1978 – Lançado por Gilberto Milfont em 1953, este samba-canção de rancor encorpou-se nos anos 1970 em versões de Lupicinio (em seu terceiro e último LP, Dor de Cotovelo), Jamelão (1974), Nelson Gonçalves (1976) e, encenando a mulher envelhecida de que fala a canção, Elizeth Cardoso (1978): “A mulher quando é moça e bonita nunca acredita poder tropeçar/ quando os espelhos lhe dão conselhos/ é que procuram em quem se agarrar”. Entre tangos e tragédias, o desfecho é lancinante: “Agora que não mais encanta procura imitar a planta/ as plantas que morrem em pé/ e eu lhe agradeço por de mim ter se lembrado/ entre tanto desgraçado que em sua vida passou/ homem que é homem faz qual o cedro que perfuma o machado que o derrubou”.
33 Nora Ney (Lupicinio Rodrigues), 1954 – As canções de fossa de Lupicinio cabiam como luva nas novas vozes que emergiram no samba-canção dos anos 1950, caso da carioca Nora Ney, célebre por canções de cortar os pulsos como “Ninguém Me Ama” (1952). “Aves Daninhas” investe contra os alcoviteiros do romance alheio: “Eu não quero falar com ninguém/ eu prefiro ir pra casa dormir/ quando eu estou em paz com meu bem/ ninguém por ele vem perguntar/ mas sabendo que andamos brigados/ esses malvados querem me torturar/ (…) já não chegam essas mágoas tão minhas/ a chorar nossa separação/ ainda vêm essas aves daninhas/ beliscando o meu coração”. Nora Ney ainda ganhou uma segunda pérola lupiciniana, “Dois Tristonhos” (1955): “Somos dois apaixonados/ dois cigarros apagados/ dizimados da ilusão/ (…) já que somos dois tristonhos/ vamos juntar nossos sonhos/ talvez nasça um novo amor”. E as metáforas passarinheiras de Lupicinio renderam outro momento único, em “Namorados”, lançado por Léo Romano em 1954 e pelo autor no ano seguinte: “Como foi que um casal de pombinhos/ transformou-se em dois gaviões?”.
34 Marlene, “Se É Verdade” (Lupicinio Rodrigues), 1954 – Mais uma paulista embalada pela música de Lupicinio, Marlene lança a gostosa “Se É Verdade”, cuja melodia saltitante não é suficiente para despistar mais um tema de pura desgraceira: “No desespero de perder o meu amor/ naquela ânsia sem saber o que fazer/ a todos santos que encontrei me ajoelhei e implorei que ele voltasse pra eu não morrer/ a precipitação neste momento de amargor/ só pode trazer coisas como a que me aconteceu/ naquele desespero de perder o meu amor/ ofereci até um coração que não é meu”. Lupicinio registrou uma versão desacelerada de “Se É Verdade” em 1973.
35 João Donato, “Se Acaso Você Chegasse”, 1954 – Em 1954, quando “Se Acaso Você Chegasse” caía nas graças das gafieiras e de instrumentistas os mais variados, um jovem acreano pediu a bênção musical a Lupicinio em seu terceiro compacto e, em seguida, em seu LP de estreia, Chá Dançante (1956): era João Donato, quatro anos antes da eclosão da bossa nova, movimento musical anti-fossa do qual ele seria uma das asas mais livres e soltas.
36 Nelson Gonçalves, “Nossa Senhora das Graças” (Lupicinio Rodrigues), 1956 – Lançada antes no segundo LP de Lupicinio (denominado com o mesmo título do primeiro, Roteiro de um Boêmio, 1955), “Nossa Senhora das Graças” inaugura uma nova vertente de fossa e culpa católica no cancioneiro do autor, que por essa época passa a colocar Deus de modo mais frequente em seus versos. “Nossa Senhora das Graças/ eu estou desesperado/ sabes que eu sou casado/ tenho um filho que me adora/ e uma esposa que me quer”, titubeia o narrador, antes descobrir o manto do falso moralista: “Nossa/ estou sendo castigado/ fui brincar com o pecado/ hoje estou apaixonado/ por uma outra mulher”.
37 Dalva de Oliveira, “Há um Deus” (Lupicinio Rodrigues), 1958 – A carioca veterana Dalva de Oliveira chegou atrasada ao repertório lupiciniano, mas ganhou logo um clássico da fase aparentemente religiosa do autor, que aqui mais uma vez encarna o lado enganado do triângulo amoroso: “Há um Deus, sim/ há um Deus/ e este Deus lá do céu há de ouvir minha voz/ se eles estão me traindo/ e andam fingindo que é só amizade/ hão de pagar-me bem caro/ se eu algum dia souber a verdade”. O eu-lírico transposto para a voz de Dalva acrescenta ao vitimismo o mito da rivalidade feminina: “O que fazem comigo/ vejam que não é normal/ justamente falsa amiga/ há de ser minha rival”. Apaixonada pelo repertório de Dalva, Maria Bethânia voltou a “Há um Deus” em 1977, classificando a canção de desgraça de Lupicinio como “muito romântica, muito apaixonada”.
38 Linda Baptista, “Volta” (Lupicinio Rodrigues), 1957 – A associação-furacão Linda-Lupicinio se despede com uma súplica arrasa-quarteirão, “Volta”: “Quantas noites não durmo/ a rolar-me na cama/ a sentir tantas coisas/ que a gente não pode explicar quando ama/ o calor das cobertas/ não me aquece direito/ não há nada no mundo/ que possa afastar este frio em meu peito/ volta/ vem viver outra vez ao meu lado/ eu não posso dormir sem teus braços/ pois meu corpo está acostumado”. Linda ainda lançaria duas inéditas de Lupicinio, “Conselho” e “Calúnia” (com um novo parceiro, Rubens Santos), em 1958, mas a repercussão foi limitada.
39 Gal Costa, “Volta”, 1973 – No álbum Índia (1973), Gal Costa é a primeira das grandes cantoras da geração 1960/1970 a embalar Lupicinio no regaço da herança bossa-novista, iluminando com o calor baiano da voz a mensagem a meio caminho entre a fossa e a bossa: “Volta/ vem viver outra vez a meu lado/ não consigo dormir sem teu braço/ pois meu corpo está acostumado”.
40 Vicente Celestino, “Vingança”, 1958 – Numa prova eloquente da elasticidade da história, o mais expressionista e exagerado de todos os cantores da velha guarda, o carioca Vicente Celestino, releu “Vingança” em altos brados, em 1958, no mesmo momento em que João Gilberto virava a história de cabeça para baixo lançando “Chega de Saudade”, o marco zero da bossa nova.
41 Jamelão, “Ela Disse-Me Assim” (Lupicinio Rodrigues), 1959 – Nesse mesmo tempo histórico surge mais uma obra-prima lupiciniana, “Ela Disse-Me Assim”, que eleva os teores de ousadia dos desencontros amorosos-sexuais em seu cancioneiro. Variável inabitual, aqui o pivô da traição é o eu-lírico masculino, personalizado com vozeirão e brilho por Jamelão: “Ela disse-me assim/ tenha pena de mim/ vá embora/ vais me prejudicar/ ele pode chegar/ está na hora/ e eu não tinha motivos nenhum (sic) para me recusar/ mas aos beijos caí em seus braços/ e pedi pra ficar/ sabe o que se passou?/ ele nos encontrou/ e agora?”.
42 Jamelão, “Exemplo” (Lupicinio Rodrigues), 1960 – Novo e definitivo intérprete favorito de Lupicinio, o cantor carioca de samba e samba-canção Jamelão enfileirou obras-primas do samba-canção gaúcho entre o final dos anos 1950 e os 1970. “Exemplo” é puro deleite e dramalhão – e naturalização do romantismo mórbido: “Deixa o sereno da noite/ molhar teus cabelos/ que eu quero enxugar, amor/ vou buscar água na fonte/ lavar os teus pés/ perfumar e beijar, amor/ é assim que começam os romances/ e assim começamos nós dois/ pouca gente repete estas frases/ um ano depois/ dez anos estás a meu lado/ dez anos vivemos brigando/ mas quando eu chego cansado/ teus braços estão me esperando/ este é o exemplo que damos/ aos jovens recém-namorados/ que é melhor se brigar juntos/ do que chorar separados”.
43 Angela Maria e Cauby Peixoto, “Exemplo”, 1982 – Prova de força da fertilidade de “Exemplo” é a diversidade de suas gravações, servindo a intérpretes (e propósitos) tão distintos quanto a tonitruante Leny Eversong (1960), a derramada dupla Angela Maria-Cauby Peixoto (1982) e o sarcástico Jards Macalé (1987).
44 Jamelão, “Sozinha” (Lupicinio Rodrigues), 1963 – Uma das mais inacreditáveis letras lupicinianas, “Sozinha” vai ao extremo na saga humilhante de uma mulher recolhida da pobreza por um “matuto” supostamente benfeitor: “E só por dinheiro/ sabem o que fez esta ingrata mulher?/ fugiu com o doutor que eu mesmo chamei/ e paguei pra curar os seus bichos de pé”. Além de “Sozinha” (por vezes apelidada de “Bicho de Pé”), Jamelão lançou, no LP Sambas para Todo Gosto (1963), a eloquente “Torre de Babel“, regravada décadas depois por Jards Macalé (1987). Em 1973, no último auge de revalorização de Lupicinio em vida, “Sozinha” foi regravada pelo jovem sambista Roberto Ribeiro, no mais puro estilo samba-canção. Dois anos depois foi a vez de outro discípulo da dor de cotovelo do mestre gaúcho, o anjo negro caído em desgraça Wilson Simonal, tornar ainda mais soturnos os brios de “Sozinha”.
45 Tião Carreiro e Pardinho, “Margarida” (Lupicinio Rodrigues), 1965 – A dupla mineira-paulista Tião Carreiro e Pardinho casou-se perfeitamente com a singeleza inter-racial de “Margarida” (lançada seis anos antes pela atriz e cantora carioca Sônia Dutra): “Ai, Margarida/ Margarida, meu amor/ se os anjos do céu são loiros/ ela é um anjo, sim, senhor/ eu vou contar pra vocês/ o jeito da Margarida/ é uma espiguinha de milho no ponto de ser colhida”.
46 Jamelão, “Caixa de Ódio” (Lupicinio Rodrigues), 1969 – Já então companheira do ídolo pop-nativista gaúcho Teixeirinha, a cantora também gaúcha Mary Terezinha estreou em LP em 1966, aos 18 anos, com três inéditas de Lupicinio: “Chamas”, “Só Pedia a Deus” e a faixa-título do álbum, “Valsa das Rosas”. No mesmo ano, lançou o LP Pregador de Bolinha, cujo título era também o de uma obscura canção do autor, gravada por ele próprio num compacto de 1953. Sete das 12 faixas de Valsa das Rosas são canções menos conhecidas de Lupicinio, inclusive algumas inéditas, entre elas uma que se tornaria um clássico na voz de Jamelão, que a gravou três anos depois: “Caixa de Ódio”. “Você, por exemplo, jamais pensaria/ que uma fantasia em um carnaval,/ um simples prazer de uma noite de orgia,/ pudesse algum dia causar tanto mal/ matar um amor que já tem tantos anos/ criar um inferno dentro do seu lar/ fazer do meu peito uma caixa de ódio/ com um coração que não quer perdoar”, diz a letra à beira da tragédia.
47 Lupicinio Rodrigues, “Caixa de Ódio” (Lupicinio Rodrigues), 1973 – O ódio preso dentro do peito se intensifica pela contenção da voz do autor, em seu LP de despedida, lado a lado com “Loucura”, “Castigo” e “Judiaria”, entre outras. Em 2011, “Caixa de Ódio” deu nome ao show e DVD de homenagem furiosa do paranaense Arrigo Barnabé a Lupicinio.
48 Nonô e Naná, “Judiaria” (Lupicinio Rodrigues), 1971 – A gravação da dupla Nonô e Naná aproximou da música caipira a queixosa “Judiaria”, que o futuro mostraria ter potencial amplo e diversificado: “Agora você vai ouvir aquilo que merece/ as coisas ficam muito boas quando a gente esquece/ mas acontece que não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão/ a judiaria que você um dia/ fez ao coitadinho do meu coração/ essas palavras que estou lhe falando/ têm uma verdade pura, nua e crua/ estou lhe mostrando a porta da rua/ pra que você saia sem nada dizer/ aquele tempo que eu fiquei chorando/ que eu fiquei sofrendo, que eu fiquei penando/ e agora que estou melhorando/ você me aparece pra me aborrecer”. Em 1977, a mineira Nalva Aguiar sublinhou a vocação caipira/sertaneja de “Judiaria”.
49 Lupicinio Rodrigues, “Judiaria”, 1973 – A versão autoral desacelerada indica que Nonô e Naná não quiseram cantar aquele que seria a única sugestão (prontamente negada) de violência física contra uma mulher no cancioneiro de Lupicinio. Ao gravá-la, Lupicinio bancou o verso controverso: “Eu estou lhe mostrando a porta da rua/ pra que você saia sem eu lhe bater”. Assim também o fez, no mesmo ano, o gaúcho Teixeirinha, na versão acompanhada por Mary Terezinha.
50 Arnaldo Antunes, “Judiaria”, 1996 – Apesar do título politicamente incorreto e do potencial misógino, “Judiaria” sobreviveu aos tempos e recebeu regravações de peso, como a da dupla pós-caipira encenada por Tetê Espíndola e Arrigo Barnabé em 1994, a desconstrução raivosa de Arnaldo Antunes em 1996 e a inversão sexual de Adriana Calcanhotto em 2015. As três incorporam a ameaça de violência física.
51 Jamelão, “Um Favor” (Lupicinio Rodrigues), 1972 – Uma das derradeiras obras-primas de Lupicinio surgiu dois anos antes de sua morte, no histórico álbum Jamelão Interpreta Lupicinio Rodrigues, arranjado por Severino Araújo e acompanhado por sua Orquestra Tabajara. O desespero de “Um Favor” fala por si: “Eu hoje acordei pensando/ por que eu vivo chorando/ podendo lhe procurar/ se a lágrima é tão maldita/ e a pessoa mais bonita/ cobre o rosto pra chorar/ e refletindo um segundo/ resolvi pedir ao mundo/ que me fizesse um favor/ para que eu não mais chorasse/ que alguém me ajudasse/ a encontrar teu amor/ maestros/ músicos/ cantores/ gente de todas as cores/ faça esse favor pra mim/ quem souber cantar que cante/ quem souber tocar que toque/ flauta, trombone ou clarim/ quem puder gritar que grite/ quem tiver apito apite/ faça este mundo acordar/ para que onde ela esteja/ saiba que alguém rasteja/ pedindo pra ela voltar”.
52 Gal Costa, “Um Favor”, 1977 – A última releitura do grupo tropicalista, já posterior à morte de Lupicinio (e à releitura em registro de ultra-fossa por Marisa Gata Mansa, em 1976), coube a uma Gal Costa em estado de graça, numa das mais sublimes gravações da música popular brasileira. O verso “gente de todas as cores” constitui uma solitária e quase inaudível menção racial no cancioneiro lupiciniano. O compositor chegou a resvalar no tema em sambas pouco difundidos sobre pobreza e desigualdade social, como “O Morro Está de Luto” (1953), lançado por ele próprio, “Bairro de Pobre (Lavadeira)” (1962), gravado pelo cantor negro paulista Francisco Egydio, ou “Meu Barraco” (1973), apresentada por Jamelão – mas sem nunca fazer referência explícita à questão racial.
53 Paulo Diniz, “Felicidade”, 1970 – Três anos da onda tropicalista de reabilitação, o pernambucano Paulo Diniz aproximou Lupicinio tênue e indiretamente do levante black power que se ensaiava no início dos anos 1970, numa versão suingada da prosaica “Felicidade”.
54 Maria Bethânia, “Loucura” (Lupicinio Rodrigues), 1979 – Último clássico inédito lançado por Jamelão, em 1973, “Loucura” foi gravada por Maria Bethânia seis anos depois, fazendo dela (ao lado de Elis Regina) a grande voz pós-bossa nova da fossa e da dor de cotovelo. “E aí eu comecei a cometer loucura/ era um verdadeiro inferno, uma tortura/ o que eu sofria por aquele amor/ milhões de diabinhos martelando meu pobre coração/ que agonizando/ já não podia mais de tanta dor”, lamuria-se a letra, que para lá das queixas habituais expressa um possível descontentamento do compositor em relação à percepção e à recepção de sua poesia ultra-romântica: “Como é que pode alguém ainda ter coragem/ de dizer que os seus versos não contêm mensagem,/ são palavras frias sem nenhum valor?/ (…) quando se tem alguém que ama de verdade/ serve de riso pra humanidade/ é um covarde, um fraco, um sonhador”.
55 Miriam Batucada, “Felicidade”, 1974 – À morte de Lupicinio Rodrigues, sucederam-se regravações a granel de “Felicidade”, por sambistas de diversas estirpes, de Chocolate da Bahia, de Salvador, a Miriam Batucada, de São Paulo.
56 Baby Consuelo (do Brasil), “Se Acaso Você Chegasse”, 1980 – Tributária direta da voz de Elza Soares, Baby do Brasil (então ainda Baby Consuelo) levou o primeiro sucesso de Lupicinio ao Festival de Montreux, na Suíça – o show virou LP lançado em 1980.
57 Waldick Soriano, “Vingança”, 1981 – A geração de música popular rotulada pejorativamente como “cafona” a partir dos anos 1970 se atirou tanto quanto a MPB no repertório de Lupicinio, de total afinidade com interpretações rasgadas como as do baiano Waldick Soriano (1981), da paulista Edith Veiga (1982), dos mineiros Nilton César e Carlos Alberto (1986), da potiguar Núbia Lafayette (1992) – todos elegeram regravar “Vingança”.
58 Rita Lee, “Felicidade”, 1993 – A paulistana Rita Lee rendeu-se a Lupicinio em 1993, gravando uma releitura pop de “Felicidade” para um comercial de TV.
59 Ayrton Montarroyos, “Dona Divergência”, 2019 – Lupicinio Rodrigues tem sido alvo de tributos ao longo das décadas posteriores a sua morte, a maioria deles indisponível nas plataformas de streaming. Gravaram álbuns inteiros com sua obra artistas como Alcides Gonçalves (1977), Rubens Santos (1980 e 1984), Jamelão (1987), Berê (1992), Joanna (1994), Noite Ilustrada (2003), Thedy Corrêa (o pop e eletrônico Loopcinio, 2005), Edith Veiga (2011), Adriana Calcanhotto (2015) e, enfim, Elza Soares (em Elza Canta e Chora Lupi, 2016). Um abismo parece separar o romantismo mórbido de Lupicinio das gerações atuais, e o pernambucano Ayrton Montarroyos é o único artista na faixa dos 20 anos a não apenas gravar Lupicinio (“Dona Divergência”, 2019), mas dedicar um álbum inteiro a sua obra (em 2021).
Não sabia que a versão de Rita Lee para ”Felicidade” fosse para comercial de TV,é,disparado,minha interpretação favorita.
Concordo contigo,Vicente Celestino é o cantor mais operístico da velha-guarda.