Num tempo de reagudização da pandemia de covid-19, em 15 dias o Brasil perdeu de um golpe só dois gênios revelados pela canção brasileira nos anos 1960. Fomos dormir com Gal Costa (1945-2022) e Erasmo Carlos (1941-2022) e de repente, na manhã seguinte, não havia mais Erasmo, nem Gal. Ao longo de quase seis décadas, o Brasil soube de “Minha Fama de Mau” (1964), “Vem Quente Que Eu Estou Fervendo” (1967), “Baby”, “Divino, Maravilhoso” !968), “Não Identificado” (1969), “London, London” (1970), “Índia” (1973), “Sou uma Criança, Não Entendo Nada” (1974), “Modinha para Gabriela” (1975), “Só Louco” (1976), “Tigresa” (1977), “Balancê” (1979). “Festa do Interior” (1981), “Mesmo Que Seja Eu” (1982) etc. Essas compuseram a superfície radiofônica de um panelão suculento, transbordante de nutrientes, que, se remexido, traz à tona uma infinidade de espantos e maravilhas. Ontem, hoje e sempre, eu, você e nós precisamos saber de “Eu Vim da Bahia’, “Não Quero Nem Saber”, “Tuareg”, “A Semana Inteira”, “Três da Madrugada”, “Vida Blue”, “De Amor Eu Morrerei”, “Me Recuso”, “Beira d’Água (Festa)” etc. etc. etc. Façamos uma pequena viagem, em dois capítulos, sobre pedras preciosas imortais daquela montanha submersa que Erasmo um dia chamou de “meus lados B”. Agradecemos por tudo e mais um pouco, dona Gal, seu Erasmo.
Renato e Seus Blue Caps, “Boogie do Bebê (Baby Sitter Twist)” (Johnny Parker-versão Fred Jorge), 1963 – Em sua pré-história, Erasmo Esteves foi crooner do conjunto Renato e Seus Blue Caps e solou em momentos como “Boogie do Bebê”, um twist obscuro com a letra em português gravada em 1961 por uma cantora chamada Cinderela e, a seguir, pelo pioneiro do rock’n’roll nacional Tony Campello. No segundo Renato e Seus Blue Caps, baby Erasmo cantou até “What’d I Say” (1959), do rei do vozeirão negro Ray Charles, em inglês. O terceiro Renato e Seus Blue Caps, de 1965, já não traz o cantor na foto da capa, mas a voz de Erasmo sola em “Gatinha Manhosa”, relançada por ele em 1966 e tornada um de seus primeiros hits individuais.
Gal Costa, “Eu Vim da Bahia” (Gilberto Gil), 1965 – Três anos antes de começar a ser reconhecida pelo Brasil por causa do abre-alas tropicalista “Baby”, Maria da Graça lançou um compacto isolado, em que tateava, com voz impostada, as obras nascentes dos também anônimos Caetano Veloso, com “Sim, Foi Você”, e Gilberto Gil, no hino de amor e orgulho nordestino “Eu Vim da Bahia”. Essa pequena obra-prima de Gil só ganharia notoriedade em 1973, com a gravação em bossa nova hipnótica pelo conterrâneo João Gilberto. Ainda em 1965, a pré-histórica Maria da Graça apareceu num dueto feminino na estreia de Maria Bethânia, a primeira do quarteto fabuloso baiano a gravar um LP próprio, no grave lamento interiorano “Sol Negro” (de Caetano). Em 1967, em Domingo, o disco dividido que marca as estreias de Gal e de Caetano no formato LP, Gal começou a assumir o vocal bossa-novista que levaria para os anos 1970, por exemplo em “Avarandado“, outra relíquia interiorana da nova geração baiana que João Gilberto reformularia no álbum antológico de 1973.
Elza Soares, “Toque Balanço, Moço!” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 1966 – Muito antes de Jorge Ben (Jor) começar a inventar o samba-rock, com colaboração íntima de Erasmo Carlos (a bordo das ideias mirabolantes do agitador Carlos Imperial em forjar uma “jovem samba” para aplacar a fúria da nascente MPB contra a guitarra elétrica), o jovem roqueiro já se aventurava pelo sambalanço na parceria que já se tornava definitiva com Roberto Carlos, nesse suingue de baile lançado em 1965 pelos Golden Boys e por Lafayette, mas que teve na versão de Elza Soares sua tradução mais envenenada. Ninguém sabia, mas o futuro estava contido nesses dois minutos e meio de gafieira black music. “Quando a rodada de iê-iê terminar/ eu vou pedir para a orquestra mudar”, desconfiava a letra, ensaiando mudar de barco antes mesmo da explosão total do iê-iê-iê com o programa Jovem Guarda, da TV Record.
Erasmo Carlos, “O Carango” (Carlos Imperial-Nonato Buzar), 1966 – A pilantragem (mais uma concatenação regida por Carlos Imperial) demorou para ser batizada, mas desde cedo Erasmo testou os fundamentos do futuro estilo levado ao alto das paradas por Wilson Simonal, como uma vertente festiva de soul music inspirada na sonoridade latinizada ultrapop do estadunidense branquelas Chris Montez. Em seu LP de estreia, em 1965, “A Pescaria” e “Tra-La-La” (ambas com Roberto) já seguiam esses moldes, mas o melhor exemplar do nascimento do estilo injustamente engavetado pela história oficial da MPB é este “O Carango”, de Imperial com um futuro ás da pilantragem, o maranhense Nonato Buzar, mais conhecido pela versão pilantríssima de Simonal. Erasmo gravaria uma série de pré-pilantragens nos dois álbuns que lançou em 1967 e no Erasmo de 1968: “O Tremendão”, “Faz Só Um Mês”, “Cara Feia para Mim É Fome”, “O Caderninho”, “Larguem Meu Pé” (com cantadas canastronas para as estrelinhas iê-iê-iê Wanderléa, Waldirene, Martinha, Nalva Aguiar, Rosemary, Cidinha Santos, Sylvinha), “Saidinha e Assanhada” (1967), “Baby, Baby”, “Mil Biquínis” (1968).
Jorge Ben, “Menina Gata Augusta” (Jorge Ben-Erasmo Carlos), 1967 – O álbum O Bidu – Silêncio no Brooklin, de Jorge Ben, foi o balão de ensaio onde se tentou lançar a jovem samba, mal-sucedida comercialmente por enfrentar a ira santa contra a guitarra elétrica e por ter saído por um selo pernambucano de resistência, Rozenblit. O Bidu contém a única parceria conhecida entre Erasmo e Jorge, “Menina Augusta Gata”, que não fez sucesso, mas originou o samba-rock e o jovem samba de massa, que ficaria conhecido pelo nome pilantragem, ou melhor, tropicália.
Erasmo Carlos, “Nunca Mais Vou Fazer Você Sofrer” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos) e “Não Quero Nem Saber” (Tim Maia), 1968 – No álbum de transição Erasmo, dois baladões abrasivos lançam a soul music que o amigo da turma da Tijuca Tim Maia, ainda incógnito, não tem condições de emplacar. Se “Nunca Mais Vou Fazer Você Sofrer” marca a conversão de Roberto & Erasmo à black music (cujo par, no álbum do parceiro no mesmo ano, é o hit “Se Você Pensa”), o gospel “Não Quero Nem Saber” lança o nome de Tim Maia como compositor, mas também como cantor, nos vocais de apoio. A gravação de Erasmo, primeira que um artista conhecido faz de Tim Maia, antecede portanto a adesão de Roberto (com “Não Vou Ficar”, 1969) e de Elis Regina (“These Are the Songs”, 1970) ao cancioneiro de Tim, que só engrenaria sua própria carreira a bordo dessas chancelas, a partir de 1970. No mais, um compacto semi-soul de entrar para a história do pop brasileiro e do desconsolo mundial, “Sentado à Beira do Caminho“, abre alas em 1969 para o disco de despedida da gravadora RGE que abrigou o garotão do iê-iê-iê desde o início, Erasmo Carlos & Os Tremendões (1970), salada musical de samba-rock (o pioneiro e antológico “Coqueiro Verde“), toada moderna (“Teletema”, um sucesso popular, mas na versão da doce Evinha), samba-exaltação (o hino informal “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso), uma autogozação com o tombo do bonde da jovem guarda (“Estou Dez Anos Atrasado“) e manifesto de desejo por libertação (“Vou Ficar Nu para Chamar Sua Atenção“).
Gal Costa, “Vou Recomeçar” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1969 – A tropicália se materializou quando os baianos Caetano, Gal e Gil colidiram com os cariocas Jorge Ben e Erasmo Carlos (também com Wilson Simonal, mas nesse caso em desarmonia), e Gal foi quem mais explicitou a coalizão, gravando em registro pós-iê-iê-iê o petardo soul “Se Você Pensa” e, feito sob encomenda para ela por Roberto e Erasmo, o futuro hino “Meu Nome É Gal” (leia aqui uma reflexão de Cynara Menezes sobre os significados dessa canção simples e profunda). Mas o LP solo de estreia, Gal Costa, incluiu ainda uma parceria Roberto-Erasmo que não foi às paradas de sucesso, “Vou Recomeçar”, que ganhava conotações políticas involuntárias por conta do exílio de Caetano e Gil: “Não sei porque razão eu sofro tanto em minha vida/ a minha alegria é uma coisa tão fingida/ a felicidade já é coisa esquecida/ mas agora eu vou recomeçar”.
Gal Costa, “Deus É Amor” e “Tuareg” (Jorge Ben), 1969 – No primeiro álbum tropicalista de Gal Costa, autobatizado, o encontro com Jorge Ben se consuma no samba-soul “Deus É o Amor”, supostamente religioso, mas muito brejeiro. No segundo álbum tropicalista, o psicodélico Gal, do mesmo ano, o ponto de confluência entre todas as vertentes musicais do momento é um genial samba-soul beduíno de Jorge Ben, em sintonia com o imaginário árabe, mas sem perder de vista a africanidade candomblecista: “Pois ele é guerreiro/ ele é bandoleiro/ ele é justiceiro/ ele é mandingueiro/ ele é um tuareg”. Nesse primeiro momento da tropicália, Gal alçou voo em canções brilhantes que não chegaram a se tornar sucessos comerciais ou cavalos de batalha da tropicália, como “Namorinho de Portão”, do baiano Tom Zé, e o trop-forró “Sebastiana”, sucesso na voz do paraibano Jackson do Pandeiro em 1953.
Erasmo Carlos, “A Semana Inteira” e “Gente Aberta” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 1970 – Erasmo estreia na gravadora Philips, a mesma de Caetano, Gal, Gil, Bethânia, Chico, Elis, Raul Seixas, Rita Lee, Tim Maia, Jorge Ben etc., e tudo parece mudado. “A Semana Inteira” e “Gente Aberta” somam voz bossanovista, balada soul, bossa praiana e rock rural, resultando numa delicadeza adulta, de interpretações joãogilbertianas, que o Erasmo iê-iê-iê ainda não sabia oferecer. “A Semana Inteira” ficou só no compacto, e “Gente Aberta” foi a primeira demonstração de uma das obras-primas máximas do artista, o álbum Carlos, Erasmo…, que a Philips lançaria em 1971, inicialmente para a obscuridade, mas se transformando décadas mais tarde em peça de culto da pororoca entre jovem guarda, soul music, samba-rock, tropicália, rock, tudo ensopado em muito caldo contracultural.
Os Originais do Samba, “Eu Queria Era Ficar Sambando” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1970 – “Eu não posso mais ficar chorando/ eu devia era viver sambando”, sonham Os Originais de Samba de Mussum, no sambão joia chamado “Eu Queria Era Ficar Sambando”, assinado pelos Carlos em dupla, mas muito mais próximo do imaginário de jovem samba de Erasmo que do iê-iê-iê e do romantismo ortodoxos de Roberto.
Gal Costa, “Love, Try and Die” (Jards Macalé-Gal Costa-Lanny Gordin), 1970 – O ecumenismo tropicalista se expressa nessa traquinagem em inglês, pelos componentes do coro: Erasmo Carlos, Tim Maia, Naná Vasconcelos e os co-autores da cançoneta com Gal (numa de suas pouquíssimas assinaturas como compositora), Jards Macalé e Lanny Gordin.
Erasmo Carlos e Caribe Steel Band, “Maria Joana” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 1971 – Sob arranjo e regência do maestro vanguardista-tropicalista Rogério Duprat, vocais que evocam coaxos de sapo e acompanhamento da Caribe Steel Band, “Maria Joana” coloca a assinatura do bem-comportado Roberto Carlos numa ode viajandona inequívoca à marijuana: “Só ela me traz beleza nesse mundo de incerteza/ quero fugir, mas não posso, esse mundo inteirinho é só nosso/ eu quero Maria Joana/ eu vejo a imagem da Lua refletida na poça da rua/ e penso da minha janela/ eu estou bem mais alto que ela”. Entre as muitas preciosidades de Carlos, Erasmo…, há samba-rock de Jorge Ben (“Agora Ninguém Chora Mais”) e de Caetano Veloso (“De Noite na Cama”, feito do exílio especialmente para Erasmo), gospel profano de Roberto & Erasmo (“Sodoma e Gomorra”, “Mundo Deserto”, esse gravado também por Elis Regina, em versão explosiva ), balada soul sexy de Taiguara (“Dois Animais na Selva Suja da Rua”), soul loiro geracional dos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle (“26 Anos de Vida Normal”), arranjo de Arthur Verocai (“Ciça, Cecília”), um guitarrista tropicalista endiabrado (Lanny Gordin) e três Mutantes na banda (Sérgio Dias na guitarra, Liminha na guitarra e no baixo, Ronaldo Leme na bateria), e mais, e mais, e mais…
Gal Costa, “Vapor Barato” (Jards Macalé-Waly Salomão), 1971 – A monumental gravação ao vivo do clássico “Vapor Barato”, que ocupa quase nove minutos do álbum-show duplo Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, obscureceu a versão de estúdio da canção de Macalé e Waly Salomão, um rock raivoso curto e mais inclinado ao canto blues de Janis Joplin que à bossa lancinante da versão amplamente conhecida. O compacto duplo com “Vapor Barato” inclui ainda a versão de estúdio, também obscura, de “Sua Estupidez“, de Roberto e Erasmo, outro clássico ao vivo de Fa-Tal, e duas faixas lançadas apenas neste compacto, o sucesso em samba-soul “Você Não Entende Nada”, de Caetano, e o raro rock distorcido “Zoilógico“, de Gil e Capinan, que cita o iê-iê-iê robertocarlista “Um Leão Está nas Ruas” (1964).
Erasmo Carlos, “Chica da Silva” (Anescar do Salgueiro–Noel Rosa de Oliveira), 1971 – Cinco anos antes de Jorge Ben eternizar em música a figura mítica afromineira de Xica da Silva, Erasmo foi incumbido de dar nova leitura ao samba-enredo vencedor do carnaval carioca de 1963, num disco coletivo de sambas-enredo do Salgueiro, reforçando assim sua transição da jovem guarda à MPB, de um rapagão roqueiro apaixonado por pranchas de surfe e carrões envenenados para um homem adulto capaz de cantar samba, samba-enredo, samba-rock, soul, bossa nova, pop, blues, afoxé, foxtrote etc. etc. etc. Perdida nos vãos da história, “Chica da Silva” é a madrinha do mote das amplidões.
Erasmo Carlos, “Grilos” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1972 – Após uma obra-prima, outra obra-prima: Sonhos e Memórias – 1941-1972 comete a façanha de colar e recombinar valores tão diversos quanto a bossa nova misturada com soul music, o rock’n’roll cinquentista, o samba-soul do trio Azymuth, as canções praieiras de Dorival Caymmi e o rock rural dos anos 1970 à maneira de Sá, Rodrix & Guarabyra ou do Marcos Valle do álbum contemporâneo Vento Sul (1972). Hippie, suave e bordada por guitarra havaiana, “Grilos” representa bem o conjunto, mas há muito mais. A originalíssima fusão de rock rural com bossa praiana, alegorizada na capa interna que exibe Erasmo tocando violão ao lado de uma barraca de acampamento, de sua esposa Narinha e do filho pequeno ao pé de uma fogueira montada na areia da praia e na beira-mata, se esparrama por baladas climáticas de voz mansíssima como “Meu Mar” (“lá no lugar onde eu for morar/ vai ter que ser bem juntinho ao mar/ meu mar”), a grave “Sábado Morto” (“quero me enforcar nos teus cabelos”), “Mundo Cão“, “Sorriso Dela“, “Vida Antiga“, a memorial “Largo da Segunda-Feira“… Noutro registro, a sensacional “Mané João” é pedra consolidadora da fundação do samba-rock conforme burilado por Jorge Ben, sob discurso trágico de inspiração tropicalista do Gilberto Gil de “Domingo no Parque” (1968).
Gal Costa, “Milho Verde” (folclore português-adaptação Gilberto Gil), 1973 – Do folclore português, mas com delicioso sotaque africano, “Milho Verde” marca a presença de Gilberto Gil não só como adaptador da canção, mas também como diretor musical de um dos maiores álbuns de Gal, Índia, da antológica capa de seminudez explícita à monumental versão recriada pelo maestro e co-inventor tropicalista Rogério Duprat da guarânia paraguaia “Índia” (1928), com a letra em português gravada em 1952 pela dupla caipira Cascatinha e Inhana.
Gal Costa, “Três da Madrugada” (Carlos Pinto-Torquato Neto), 1973 – O poeta tropicalista piauiense Torquato Neto suicidou-se em 10 de novembro de 1972, aos 28 anos, e a homenagem de Gal foi gravar a balada suicida “Três da Madrugada” (musicada pelo pernambucano Carlos Pinto), num raro compacto dividido com Gil e encartado no livro póstumo de poemas Os Últimos Dias de Paupéria. “Meu pobre coração não vale nada/ pelas três da madrugada/ toda palavra calada/ dessa rua da cidade/ que não tem mais fim”, diz o poema, comunicando-se com “Mamãe Coragem”, texto de Torquato que Gal cantou no disco-manifesto coletivo Tropicália ou Panis et Circencis, de 1968.
Erasmo Carlos, “A Festa do Corpo Lindo” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1974 – O ecológico 1990 – Projeto Salva Terra! era o álbum mais roqueiro de Erasmo Carlos até o momento, mas abria caminho também para a vertente de letras sensuais da dupla (que Roberto exploraria às últimas consequências em hits como “Seu Corpo”, de 1975, “Os Seus Botões”, 1976, “Cavalgada”, 1977, “Café da Manhã”, 1978), no baladão corporal “A Festa do Corpo Lindo”: “Quero a minha vida inteira afagar seu corpo lindo/ dia últi, dia santo, feriado ou domingo/ me lembrar dos seus gemidos, dos seus risos e cansaços/ pelo céu da minha boca que eu não saio dos seus braços/ o seu hálito parece uma brisa gigante”. Projeto Salva Terra! era o álbum mais roqueiro, mas terminava com o sambão “Cachaça Mecânica”, inspirado na estrutura de “Construção” (1971), de Chico Buarque.
Erasmo Carlos, “Vida Blue” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1974 – Censurada pela ditadura, a primeira versão da novela global Roque Santeiro levou consigo para o espaço duas gravações inspiradas de Erasmo, da sensual “Noite Cheia” (recuperada mais tarde, em 1982, num arranjo pop oitentista) e da épica “Vida Blue”, prima sudestina do “Pavão Mysteriozo” de Ednardo, que tocava num tema grave, as milícias dos anos 1970: “Ele não sabia/ que era levado/ pela mão de fogo/ do próprio diabo/ arrependimento/ não foi salvação/ foi executado/ pelo esquadrão”. “Vida Blue” foi censurada, assim como, na mesma leva, “Patu” (“baby, só por hoje esqueça o feminismo/ as passeatas e as greves democratas/ que você jurou fazer na convenção”), considerada feminista demais (ou democrática demais?) pela patrulha militar. Reapresentada por Erasmo no ano seguinte com o nome de “Baby”, foi liberada, saiu num compacto com “Negro Gato” (do negro gato Getúlio Côrtes, lançada por Renato e Seus Blue Caps em 1965) e, afinal, integrou o álbum Banda dos Contentes (1976).
Marlene, “Samba do Sapatão” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1974 – Composto para um álbum carnavalesco coletivo, o “Samba do Sapatão” foi interpretado pela estrela da era do rádio Marlene e tem letra bem camuflada, mas é mais uma daquelas parcerias que têm muito mais cara de Erasmo que de Roberto.
Gal Costa, “Acontece” (Cartola), 1974 – A reverência de Gal Costa às gerações anteriores da música brasileira surgiu como traço marcante no início da década de 1970, quando ela gravou versões repletas de ira e doçura de dois clássicos do mestre pernambucano Luiz Gonzaga, “Acauã” (1952), em 1970, e “Assum Preto” (1950), em 1971, essa última talvez a mais bela interpretação da história da cantora. “Acontece” (1972) é rendição lírica de Gal ao samba carioca de Cartola, gravado no LP Temporada de Verão ao Vivo na Bahia, dividido com Caetano e Gil. A lista de sambas e sambas-canções antigos reinterpretadas com paixão por Gal seria longa: “Falsa Baiana” (1944), do mineiro Geraldo Pereira, em 1970 (três anos antes da recriação de João Gilberto); “Antonico” (1950), do fluminense Ismael Silva, em 1971; “Volta” (1957), do gaúcho Lupicinio Rodrigues; “Oração de Mãe Menininha” (1972), do baiano Dorival Caymmi (em novo dueto com Bethânia) e “Trem das 11” (1964), do paulista Adoniran Barbosa, todas em 1973; a fossa “Saia do Caminho” (1946), lançada por Aracy de Almeida, em 1974; “Um Favor” (1972), de Lupicinio, em 1977; o vivaz “Olhos Verdes” (1951), revelado por Dalva de Oliveira; os exuberantes “Samba Rasgado” (1938) e “Balancê” (1937), lançados originalmente por Carmen Miranda, em 1979; “Noites Cariocas” (1957), choro de Jacob do Bandolim com o subtítulo “Minhas Noites sem Sono” e letra inédita de Hermínio Bello de Carvalho, em 1979; “Canta Brasil” (1941), sucesso na voz de Francisco Alves, em 1981; “Cabeça Feita” (1981), de Jackson Pandeiro, regravada em dueto com mestre Luiz Gonzaga; “Coisas Nossas” (1932), de Noel Rosa, e “Cordas de Aço” (1976), de Cartola, em 1992…, além de álbuns inteiros dedicados aos cancioneiros de Dorival Caymmi (o apaixonante Gal Canta Caymmi, de 1976) e Ary Barroso (Aquarela do Brasil, de 1980),
Gal Costa, “De Amor Eu Morrerei” (Dominguinhos-Anastácia), 1974 – Da parceria com o sanfoneiro pernambucano Dominguinhos no álbum e show Índia (1971), resta essa composição lírica da caudalosa parceria de Dominguinhos com a também pernambucana Anastácia, lançada apenas em compacto e ornamentada com os vocalises viscerais que Gal espalhou pelo Brasil nos anos 1970: “Nos acordes da sanfona/ vou tentando esquecer/ quem eu amo está tão longe/ e eu não sei quando vou ver”. “Os meus olhos sempre choram/ ao lembrar dos olhos teus”, arremata, em íntima conexão com outra obra-prima de 1974, do excepcional álbum Cantar (produzido por Caetano Veloso), o blues tropicalista “Lágrimas Negras” (“são poços de petróleo/ a luz negra dos seus olhos/ lágrimas negras caem, saem, doem/… são como pedras de moinho que moem, roem, moem”), de Jorge Manter e Nelson Jacobina.
Erasmo Carlos, “Paralelas” (Belchior), 1976 – A paulista interiorana Vanusa notabilizou “Paralelas” em 1975, e a repercussão discreta do extraordinário álbum Banda dos Contentes (1976) jogou no fundo da gaveta a versão espetacular de Erasmo Carlos para a clássica balada anticapitalista do cearense Belchior. “Paralelas” é apenas uma das várias preciosidades do descontente Banda dos Contentes, cuja única faixa popular foi o rock carente, mas delicioso “Filho Único” (Erasmo-Roberto). Gilberto Gil oferece ao colega a 100% gilgilbertiana e lírica “Queremos Saber” (que viria à tona 25 anos depois, pela versão rascante de Cássia Eller em seu canto de cisne, o Acústico MTV). Ampliando mais ainda o arco libertário de estilos, Erasmo adere à utopia de unidade latino-americana dos anos 1970 gravando a inca, maia e asteca “Continente Perdido (Terra de Montezuma)“, do roqueiro rural e candomblecista fluminense Ruy Maurity, meio-irmão do pianista, arranjador, bossa-novista e co-inventor da pilantragem e da toada moderna Antonio Adolfo, a essa altura trabalhando com Erasmo e com Gal Costa.
Erasmo Carlos “Banda dos Contentes” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 1976 – Em consonância com a protofeminista “Baby”, a faixa-título de Banda dos Contentes é outra peça de têmpera geniosa e genial, inaugurando a fase psicanalítica de Erasmo Carlos, com um alter-ego que é um anjo torto drummondiano/torquatiano: “Todos dançam tristes na banda dos contentes/ ritmos todos bem diferentes/ às vezes olho no espelho, não vejo minha cara e com que cara eu vou me mostrar/ dentro de mim?/ (…) eu preciso urgentemente de um psicanalista/ vou pagar pra ver meus pontos de vista/ ou então eu mesmo me trato/ com a viola e vou pro mato/ senão minha cabeça explode”. O momento de confusão pré-explosiva é eternizado na capa interna do LP, uma ilustração de Benício que flagra uma briga generalizada entre 28 homens, todos eles com o rosto de Erasmo Carlos.
Doces Bárbaros, “Quando” (Gal Costa-Caetano Veloso-Gilberto Gil), 1976 – Em outra das raríssimas ocasiões em que o nome de Gal Costa apareceu como co-autora de uma canção, tratava-se de uma homenagem prestada por ela, Caetano, Gil e Bethânia à caçula tropicalista paulista Rita Lee, “Quando” (com solo vocal de Gil), do álbum duplo em quarteto Doces Bárbaros: “Rita Lee/ com todo prazer/ quando a governanta der o bode/ pode crer que eu quero estar com você/ superstar com você/ há muito tempo uma mulher sentou-se e leu na bola de cristal/ que uma menina loira ia vir de uma cidade industrial/ de bicicleta, de bermuda, mutante, bonita, solta, decidida, cheia de vida etc. e tal/ cantando o iê-iê-iê”.
Gal Costa, “Me Recuso” (Rita Lee-Luís Sérgio Carlini-Lee Marcucci), 1977 – Talvez em retribuição a “Quando”, para o LP Caras & Bocas Gal ganhou “Me Recuso” de Rita Lee & Tutti Frutti, uma balada ao mesmo tempo carente e sarcasticamente anti-romântica: “Me recuso a ficar só/ antes mal acompanhada/ pelo menos eu tenho com quem brigar/ ou talvez alguém pra amar/ afinal/ tudo é relativo aos bons costumes do lugar”. Célebre pelo petardo pós-hippie “Tigresa” (de Caetano), Caras & Bocas inaugurou uma nova Gal, entre o blues, o cabaré e o jazz, com clímax interpretativo em “Negro Amor“, versão de Caetano e Péricles Cavalcanti para “It’s All Over Now, Baby Blue” (1965), de Bob Dylan, numa encruzilhada inusitada entre o folk e o samba-soul de Jorge Ben (“os alquimistas já estão no corredor”). Um detalhe precioso que mais tarde Gal veio a renegar, infelizmente: Caras & Bocas contém a primeira gravação de uma composição da jovem Marina Lima, o áspero blues-rock “Meu Doce Amor“.
Nara Leão e Erasmo Carlos, “Meu Ego” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1977 – A revolucionária Nara Leão convida Erasmo para o disco de duetos Os Meus Amigos São um Barato, e ele lhe entrega nova canção inédita da fase psicanalítica-perturbada-doidona, “Meu Ego”: “Fale pelos cotobelos/ e pelos joelhos/ me critique sem razão/ se omitir não vale a pena/ mas não polua minha cultura/ não venha dividir comigo sua autocensura/ me desencontre, não me prostitua/ senão seremos mais uma carcaça em desgraça por aí”. Sutileza à parte, Erasmo (ou Roberto?) subverte o senso comum machista sedimentado na figura da Nara musa de joelhos bonitos, colocando-a a falar pelos… joelhos.
Erasmo Carlos, “Nasci numa Manhã de Carnaval” (Erasmo Carlos-Liminha), 1978 – “Nasci numa manhã de carnaval/ e o meu primeiro choro/ por coincidência foi no breque da cadência/ de uma escola que passava/ marcando com seu canto/ minha vida de sambista”, exclamam versos inimagináveis na voz pop-romântica-internacional de Roberto Carlos – mas ele ajudou a compô-los (inicialmente para um compacto lançado em 1971 pela cantora Célia), e o parceiro Erasmo gravou no carioquíssimo LP Pelas Esquinas de Ipanema, o mesmo em recorre mais uma vez ao imaginário de Chico Buarque, transformando “Passaredo” (1975) em “Panorama Ecológico“.
Gal Costa, “Mãe” (Caetano Veloso), 1978 – A linda capa de Água Viva guarda maravilhas renovadoras e amplificadora de repertório: o primeiro encontro de Gal com o cancioneiro de Chico Buarque, em “Folhetim”; os primeiros encontros com a obra de Milton Nascimento, na pansexual “Paula e Bebeto” (parceria com Caetano) e “Cadê”, agora com a letra do cineasta Ruy Guerra que não constou do censuradíssimo LP Milagre dos Peixes (1973); o primeiro encontro com Gonzaguinha, como autor cantor do forró inédito “O Gosto do Amor”; e o encontro feminino com a compositora carioca Sueli Costa, em “Vida de Artista”. À parte as novidades, a peça de força de Água Viva é “Mãe”, de Caetano, lancinante sobretudo pelos vocalises sobrenaturais que são uma das marcas identitárias da Gal dos anos 1970, e que que culminarão no duelo entre a voz da intérprete e a guitarra de Robertinho de Recife na regravação de “Meu Nome É Gal“, no álbum Tropical, de 1979. Nesse LP, acontecem mais uma inauguração, Gal gravando a compositora carioca Dolores Duran pela primeira vez (e Tom Jobim pela segunda), em versão luminosa de “Estrada do Sol” (1957), e mais um espanto, uma versão noir-sobrenatural para a baianíssima “A Preta do Acarajé“, de Dorival Caymmi, lançada em 1939, em dueto dele com Carmen Miranda, influência maior em Tropical.
Wanderléa, “Antes Que o Mundo Acabe” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1978 – Em fase experimental-adulta-emepebista comparável à de Erasmo, a parceira original Wanderléa ganha a inédita e séria “Antes Que o Mundo Acabe“, para reavivar o vínculo que na fase da jovem guarda rendeu guloseimas pop como a versão “Não (Juventude Twist)” (1964), “Um Quilo de Doce” (1965, parceria com Roberto) e o hino iê-iê-iê “Prova de Fogo” (1967), entre outras.
Marku Ribas e Erasmo Carlos, “Beira d’Água (Festa)” (Marku Ribas-Erasmo Carlos), 1979 – O samba-rock mineiro de Marku Ribas traz Erasmo como co-autor e co-cantor da faixa de abertura de Cavaleiro das Alegrias, “Beira d’Água (Festa)”, uma atualização da juvenil “Festa de Arromba” (1965), em que Erasmo e Roberto imaginavam uma festa apinhada de ídolos do iê-iê-iê. Desta vez, a celebração é da MPB, e comparecem, nesta ordem, Caetano Veloso, Chico Buarque, Roberto Carlos, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Jorge Ben, Fafá de Belém, Maria Bethânia, Gal Costa e Alcione.
Erasmo Carlos, “Os 7 Gatinhos” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1979 – Depois de Pelas Esquinas de Ipanema, Erasmo visita o universo também carioquíssimo, e freudiano, do dramaturgo Nelson Rodrigues, com “Os 7 Gatinhos”, mais uma canção da fase psicanalítica, composta para o filme homônimo de Neville d’Almeida, inspirado na tragédia carioca teatral homônima de Nelson, de 1958. O compacto tem no lado A “Quero Voltar“, um tema carnavalesco (como sempre, de Roberto e Erasmo) com tons de trio elétrico baiano e letra psicanalítica capaz de surpreender quem acredite que política e Erasmo Carlos são assuntos inconciliáveis: “Numa briga caseira eu caí na asneira de fazer minha crítica/ mas você, meu bem, nem se interessou pela minha política/ você bem podia acordar um dia e me anistiar/ pois o meu amor é bem maior do que você possa imaginar, quero voltar“. À época, a bordo da Lei da Anistia, políticos e militantes exilados pela ditadura começavam a voltar ao Brasil, caso do gaúcho Leonel Brizola, que chegou em agosto de 1979.
(Continua…)
Adorei.