Arrancados da Terra, de Lira Neto, narra a saga de 23 judeus que, expulsos do Brasil, fundaram Manhattan

 

 

O escritor, biógrafo e historiador cearense Lira Neto tem uma peculiaridade: em seus livros, ele nunca se torna um refém dos fatos, mas sim, atua como um regente da orquestra dos acontecimentos. Em Arrancados da Terra – Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, Refugiaram-se na Holanda, Ocuparam o Brasil e Fizeram Nova York, o autor se detém em um aparente istmo histórico, a saga de 23 judeus que foram expulsos de Pernambuco em 1654, cujo navio perdeu o rumo e acabou indo parar por acaso no local onde hoje é Manhattan, núcleo da maior metrópole norte-americana, povoado que ajudaram a fundar.

Essa história, que pode parecer hoje extemporânea para algum tipo de leitor pragmático, ganha no livro de Lira Neto quase que a conformação de um romance de formação, com a busca das relações culturais, sociais, políticas e de causa e efeito contidas nessa migração forçada. Imprensados entre as disputas coloniais entre portugueses e holandeses, entre a religião e a ciência, entre o comércio e a rapinagem, os 23 cidadãos têm sua vida anterior (a forma como chegaram ao Brasil) e posterior (a influência na vida norte-americana) aos fatos investigada pelo autor.

Lira começa sua narrativa em pleno Distrito Financeiro de Manhattan, num velho cemitério estropiado, como um paleontólogo em meio a uma névoa, e vai finalmente mergulhando nos documentos e narrativas do século XVI, extraindo dali detalhes de moral, ética, estratégias, obsessões e conceitos que emolduram seus “personagens”, por assim dizer. Assim, figuras aparentemente incidentais, como o filósofo, matemático, médico e astrônomo judeu Joseph Salomon Delmedigo, surgem para nos informar que o horror à ciência e ao desenvolvimento intelectual aproxima o Brasil de 2021 do Brasil ancestral. Parece se tratar de algo escrito para o dia de hoje: “O obscurantismo invade tudo, a ignorância é terrível”, diz Delmedigo. “Não têm qualquer laivo de conhecimento científico. Detestam qualquer sabedoria. ‘Deus’, dizem, ‘não necessita de gramática, retórica, matemática, astronomia ou filosofia’.”

As práticas e o comportamento dos invasores do Brasil, portugueses e holandeses, são analisados em suas reverberantes consequências e de maneira muito fluida e natural na narrativa do autor. O reflexo da crueldade dos contendores, os europeus, pelo território, com seus esquartejamentos e torturas, respinga na forma como os nativos passaram a tratar o mundo. Holandeses se aliaram aos indígenas tapuias, rivais dos tupis, ensinando-lhes a arte da guerra. “O tempo o ensinava [o inimigo] a imitar o nosso modo de fazer-lhe a guerra até então, aprendendo tanto à sua custa, que se tornaram mui bons mestres”, constatou o preocupado oficial Albuquerque Coelho, em suas memórias de guerra.

O cerne do livro é, evidentemente, a pesquisa para demonstrar a ainda hoje controversa tese de que foram judeus oriundos do Brasil (onde fundaram a primeira sinagoga das Américas, no Recife) estão na base de criação da moderna Nova York, nos Estados Unidos. Todos os documentos e as teses garimpados desde o século XVII subsidiam o livro de Lira Neto, mas é o cotejamento pertinente e racional das fontes que faz a história assumir uma nova legitimidade e dramaticidade histórica a partir desse volume. 

 

Arrancados da Terra – Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, Refugiaram-se na Holanda, Ocuparam o Brasil e Fizeram Nova York. Lira Neto. Companhia das Letras, 424 págs., 85 reais

 

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