A tradição ensina que os poetas mineiros são delgados e ternos e, mesmo quando contundentes, são suaves. Cesar Gilcevi vem contrariar a regra – não apenas essas, mas também todas as outras. Ex-jornaleiro, office-boy, vendedor de produtos de limpeza, digitador e auxiliar de biblioteca, atual vocalista da banda Cadelas Magnéticas, Gilcevi estrutura sua poesia nos escombros da condição humana, entre tatuagens da cadeia, personagens parricidas, jagunços, Lei do Talião, pastores maníacos sexuais, fantasmas com hálito de diesel, avós entrevadas de fraldas na cama esperando a morte.
Gilcevi, de 43 anos, não é “educado”, no sentido polido da palavra, e não raro usa a tradição literária (Rimbaud, Dostoiévski, Balzac) como escarradeira. Conhece e aprecia João Antônio, Lima Barreto, Paulo Leminski, Lou Reed e Iggy Pop, mas, basicamente, o que interessa mais à sua poesia é a reverência à ancestralidade (negra, indígena) e o espírito de resistência secular do povo pobre nas periferias e favelas, cuja eventual capitulação deixa marcas. Toda essa articulação está no centro de seu livro Retrato do Poeta Quando Devedor do Aluguel (Editora Letramento, 2019).
“Esse livro é diferente do que tenho visto. Sombrio e sarcástico. E, desgraçadamente, profético”, disse o tradutor e poeta Cláudio Willer. Não apenas premonitório e reativo em relação à desgraça da política que se abateu sobre o Brasil, mas também ativo antifa, Gilcevi não oferece a outra face. “Toda noite a mesma coisa/ ouço os passos bêbados/ ouço o som da garrafa quebrando/ a criança correndo chorando pro quintal/ os cães enlouquecendo/ os pratos os copos se espatifando/ a mulher implorando pra ele parar/ o som surdo seco dos punhos contra a carne/ cansei/ hoje vou pular o muro/ vou resolver isso”.
Furioso com a cumplicidade dos neopentescostais com os opressores, mantém a fé num Deus brasileiro “botokudo kaboclo yorubanto” que virá lhe dar a mão e tirar os cativos da eucaristia do crack e do abuso. Há grande influência de Roberto Piva e Wander Piroli na poesia de Gilcevi, mas agora com uma cadência de pichação de gangue, uma intenção de interferir na compreensão do seu tempo, à maneira de Banksy e outros artistas da intervenção. “Tudo aconteceu muito rápido/ numa semana/ os fascistas tomaram o poder/ na outra ana foi embora/ perdi o emprego/ tive que pegar minhas coisas/ meu semblante orgulhoso/ e guardar no porão da casa de minha mãe/ beijar a mão morta do meu pai.”
Retrato do Poeta Quando Devedor do Aluguel. Cesar Gilcevi. Editora Letramento, 168 páginas, 35 reais.
UM POEMA DE GILCEVI QUE NÃO PODERIA PASSAR BATIDO
nego d’angola
encontrou na cachoeira
a india guerrera
ele tava com cara
de bicho assassino
depois de correr
3 dias sem parar
nem pra beber
água fugado
do capitão do mato
ela tava com cara
de bicho acuado
bugra montada currada
aldeia queimada
marcada de esporas
ela falava borun
ele kimbundu
de algum jeito
se entenderam
e fugiram dos brancos
pro fundo bem escuro
da mata escura
ela pediu para marét-khamaknian
confundir o caminho
do inimigo
ele pediu pra oxóssi
lhe mostrar
as trilhas escondidas
da floresta
e da fartura
um nacuro
uma nhorá
duas flechas
os marét
os orixás
assim começa o mundo
(gênesis, cap.I)