Nas curvas do BR135

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Festivas BR135 na Praça Maria Aragão, em São Luís
Público assiste ao show da artista queer Enme Paixão, no festival BR135

A primeira vez no BR135 a gente não esquece. Especialmente se o festival tiver começado com um passeio pela baía de são Marcos, em São Luís do Maranhão.

Bem ali adiante, naquela igreja da qual se veem as torres, o padre Antonio Vieira (1608-1697) leu o famoso Sermão de Santo Antônio aos Peixes, no qual ele contestava a escravidão indígena.

Naquele casarão de janelas azuis, que se debruça aristocraticamente sobre as margens, ali viveu o poeta romântico Souzândrade (1833-1902), que saiu da Ilha do Sol, sempre florida, para narrar o destino de Wall Street, sempre cruel.

Subindo esse rio audacioso, o rio Anil, passa-se sob a ponte batizada com o nome do poeta pioneiro modernista Bandeira Tribuzi (1927-1977), e do outro lado fica a prainha na qual o poeta Ferreira Gullar (1939-2016) se banhava quando criança, e que foi inspiração para o famoso Poema Sujo.

Anjos da guarda das almas do Maranhão, como escreveu o padre Antonio Vieira, Alê Muniz e Luciana Simões, idealizadores, curadores e gestores do festival BR135, conduzem os convidados de fora por esse cruzeiro iniciático de reggae & cultura pela Baía de São Marcos. Mesmo para um batismo cultural, nem todos têm a sorte de estar ao lado do poeta Celso Borges, que manuseia uma visão dionisíaca da paisagem e oferece uma concêntrica iniciação aos pontos cardeais da voragem poética da capital maranhense.

Luciana Simões, também vocalista do duo Criolina, de vez em quando comanda o microfone da aparelhagem no barco de passeio e, ao avistar o Palácio dos Leões, sede do governo, improvisa, criando o eco do dub com a própria voz: “Ali está o Palácio dos Leões de JAH! JAH! JAH!”. No Maranhão, a utopia reversiva da URSAL é rastafári, feita de irreverência e pedras do ritmo, mas também de muita conectividade, muito rigor, muito desejo de estabelecer pontes (além de passar sob elas).  Além dos shows, da ocupação pública dos espaços do centro histórico de São Luis, o festival promove a circulação de ideias com um notável senso profissional. Essa é uma das chaves do negócio: da cantora Céu ao estrategista de massas Pablo Capilé, todos repartem experiências.

Este ano, uma das sedes da reflexão do BR135, o Conecta, ficou abrigado numa sala de um gigantesco sobrado na Rua da Estrela, no coração do Centro Histórico de São Luís (um dos mais de 3 mil prédios tombados pelo IPHAN e reconhecidos como Patrimônio da Humanidade pela Unesco ali naquele conjunto urbano fabuloso).

Ali, no sábado, 30, os jornalistas Pedro Antunes (da Rolling Stone Brasil e do programa nos stories do instagram Tem um Gato na minha Vitrola) e Tony Aiex (do portal de música Tenho Mais Discos Que Amigos), ao lado da youtuber Fabiane Pereira (Papo de Música ) e Steffi de Castro (Sobre o Tatame), sob mediação de Zema Ribeiro, deste Farofafá, analisaram a angústia (e a delícia) de exercerem papeis múltiplos na nova ordem da difusão musical: apresentadores, redatores, editores, CEOs, gestores e, de certa forma, advogados de sua própria atuação. Nessa nova circunstância, inevitável num cenário de mudanças tecnológicas, os convidados debateram e chegaram a algumas dicas básicas de como melhorar a atuação num mercado que já não vive mais das grandes quantias investidas pelas corporações – coisas muito básicas mesmo, como a organização do SEO (Search Engine Optimization) das postagens no WordPress para um melhor desempenho na grande pescaria da internet.

Pedro Antunes coordena o trabalho de 14 pessoas como editor chefe da Rolling Stone. Mas o grande desafio da nova configuração, disse, consiste em fazer a informação fluir com algum dinamismo e longe das velhas regras do jornalismo impresso. “Poesia não funciona na internet”, ponderou Pedro Antunes. Tony cuidou de repelir algumas certezas enganosas do fluxo de seguidores na internet, os mitos da fidelidade e da eficiência. Por exemplo: é falso que o Facebook tenha perdido sua importância. Por exemplo: os haters são os seguidores mais fieis dos seus detratores, brigar com eles é um sonho de consumo dessa galera. Todos os participantes do painel concordaram que a defesa da autoria em seu trabalho é uma condição fundamental da saúde e da permanência de um certo senso orgânico nas redes sociais. “Não economiza likes, gente! Um coraçãozinho, um polegar pra cima, qualquer coisa!”, conclamou a youtuber Fabiane.

“Eu ouvi o disco da Josyara uns dois dias a fio, só daí eu fiz a resenha. Pra mim só funciona assim, com emoção. Escrevo sobre o que eu gosto”, disse a psicóloga Steffi, cuja atuação não se submete aos velhos cânones do profissional de jornalismo.

Os painéis do Conecta do BR135 abrangeram de tudo, da cultura popular ao mundo das redes sociais. Foram abertos com um portentoso encontro entre as mulheres que estão rompendo a barreira do machismo na festa do boi maranhense. Foi o chamado  Guarnicê das Mestras – As Mulheres no Comando dos Batalhões de Ouro, reunindo Maria José (do Boi de Maracanã), Regina (do boi da Liberdade), Rosa Reis (do Laborarte), Nadir Cruz (do boi da Floresta), tudo sob mediação de Marla Silveira.

No Maranhão, na ilha dentro da ilha que é o BR135, a pasmaceira geral brasileira não parece fazer eco no espírito dos musiqueiros do Brasil todo que baixam por ali. Por conta disso, o Conecta, esse núcleo de painéis e debates, virou evento regular premiado pela Natura Musical para ser patrocinado pela plataforma em 2020 (entre 40 outros artistas e projetos) e ter uma regularidade e constância.

Na gigantesca praça Maria Aragão, o braço musical propriamente dito do festival explodia com as atrações musicais, de Xenia França a Céu, do grupo sergipano The Baggios à banda Attooxxa. Da cultura popular do Boi do Maranhão a fenômenos prata da casa, como a artista queer Enme Paixão (que pilotou uma sarrada gigantesca com o público do festival), a ocupação do centro histórico se configurava como uma ação política, de democratização das coisas da cultura.

E, quando tudo terminava, lá estava a cerveja estourando de gelada (literalmente) no alto do casarão que abriga o Centro Cultural da Terra Maria Firmina dos Reis. Maria Firmina (1822-1917), filha de escrava, foi a primeira mulher escritora brasileira, concordam alguns especialistas. O local que a homenageia com seu nome é uma lojinha de produtos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (além de livraria e bar), com as maravilhas orgânicas e a vista dos telhados mágicos de São Luís. Sob o som da voz do reggaeman maranhense Santacruz, cantor de Timbiras, era hora de embarcar, era hora de emborcar.

O repórter Jotabê Medeiros esteve no Maranhão como convidado pela produção do festival BR135, no qual lançou seu livro Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (Todavia Livros), ao lado de Riba e Marli, do já lendário sebo Feira da Tralha.
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