Em novo filme de Otto Guerra, a cartunista Laerte analisa suas metamorfoses artísticas, éticas e físicas
O diretor gaúcho Otto Guerra, cineasta especializado em produções de animação não convencionais (Rocky e Hudson, os caubóis gays, de 1994, e Wood e Stock, de 2006), ganhou um edital de cinema para fazer um filme sobre os personagens Piratas do Tietê, criados pelo cartunista Laerte nos anos 1980. Acontece que, em 2019, Laerte não é mais o cartunista Laerte, mas A cartunista. Também não tem mais o mínimo interesse em Piratas do Tietê, sintoma de uma fase de sua produção. Otto Guerra não sabe o que fazer: sua produtora, Marta Machado, vendo a crise de foco do filme, se “manda” (na ficção). A equipe desaparece. As ideias são autorreferentes, como se o grande parceiro de Laerte, Angeli, carimbasse a produção com sua série Angeli em Crise.
Essa é, grosso modo, a sinopse do longa-metragem A cidade dos Piratas, que estreia neste 31 de outubro. Nada é tão verdade: Laerte, que também assina o roteiro do filme (com Otto, Rodrigo John e Thomas Créus), produz um desfile estupendo de criaturas e estados de espírito, reconectando sua produção passada com a presente.
Aproveitando-se dessa desaproximação ética, estética e física entre o passado e o futuro da Laerte, Otto faz um filme engenhoso, que coloca de fato os Piratas do Tietê e seu anarquismo homicida como sintomas de um desvio de rota da própria nação brasileira. Mas também aproveita para incluir quase todos os personagens de Laerte no filme, como se fosse uma ópera em quadrinhos. Pela via da caricatura, Laerte anteviu as armadilhas civilizacionais de São Paulo, uma cidade ancorada à beira de dois rios podres, tentando afogar seus poetas e seus artistas e seus políticos honestos.
O desfile dos quadrinhos de Laerte em movimento é deslumbrante, e a história das mudanças de Laerte (“Homem ou mulher? Popular ou erudito?”) vai sendo enriquecida como se fosse um documentário disfarçado, com uma pesquisa historiográfica sensacional. Cenas como a do apresentador Antonio Abujamra perguntado à cartunista, na lata, se a sua mudança de homem para mulher não significava, no fundo, uma baita purgação do seu antigo coté stalinista. Laerte morre de rir.
É uma animação adulta, cheia de violência e iconoclastias, não é fofinha e alguns de seus “esquetes”, como poderíamos chamar as cenas que a recheiam (como a do candidato Azevedo, um Bozo frente a um mar de eleitores-zumbis conservadores, que teme o pensamento livre de alguém que pressente na multidão) têm a criticidade precisa de Laerte. Tampouco é um filme para as multidões. Mas é um daqueles filmes que tinham de ser feitos. Jotabê Medeiros