João do Vale: a voz do povo revoou

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“Poeta do povo”, o compositor maranhense vira tema de musical que circulará o Brasil no segundo semestre de 2019

A roda da história gira em torno do próprio eixo. No aniversário de 55 anos do histórico show Opinião, João do Vale (1933-1996) está vivo outra vez. Iniciado no Maranhão, em 2017, o musical João do Vale, o Gênio Improvável deve passar no segundo semestre de 2019 por dez capitais brasileiras (Salvador, Fortaleza, Brasília, Belo Horizonte, Belém, João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo), trazendo de volta o espírito dos dias pós-golpe civil-militar de 1964, quando o ex-pedreiro maranhense se transformou em referência nacional, ao lado do sambista do morro Zé Keti e da garota bossa nova Nara Leão.

Será uma inversão em relação ao costume de artistas do eixo Rio-São Paulo interpretarem quaisquer personagens. N’O Gênio Improvável, atores maranhenses interpretam não só o maranhense de Pedreiras João, como também Zé Keti, Nara Leão, Chico Buarque, Maria Bethânia e outros personagens célebres da cultura brasileira da segunda metade do século XX. “Eu bati o pé e disse que o elenco ia ser 100% maranhense”, afirma Celso Brandão, diretor do Teatro Arthur Azevedo e idealizador do musical, que comemorou 200 anos em 2017, com João do Vale, o Gênio Improvável. “Quantos espetáculos desse porte existem no Rio e em São Paulo? Deixa o nosso povo aqui fazer as coisas, para nós é muito mais interessante.” O único não maranhense na equipe principal é o carioca Vinícius Carneiro, de Cassia Eller – O Musical, recrutado como diretor do espetáculo.

No processo de seleção por edital, o escolhido para viver João do Vale foi o maranhense de São Luís Vicente Melo, que guarda várias semelhanças com o personagem. Assim como João, Vicente era compositor e tinha vergonha de cantar, até se incorporar a O Gênio Improvável (no caso de João do Vale, ao Opinião). “Quando surgiu essa oportunidade, de primeira mão até fiquei meio arredio. Teatro que eu fazia era teatro de rua, amador mesmo, nada de profissionalismo, não”, conta Vicente. “Ali é só cara fera, rapaziada que está com sangue nos olhos, que vem da universidade. Me inscrevi no edital, passei da primeira, aí foram selecionados 30 e teve a grande final. Quando o pessoal me ligou eu estava trabalhando. Trabalhava de pedreiro.” Como João do Vale.

Capa do segundo LP de João do Vale, de 1981

O Opinião, escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes e dirigido por Augusto Boal em 1964, é o esteio de O Gênio Improvável. Celso Brandão se diz ciente das semelhanças entre aquele momento histórico e o pós-impeachment de Dilma Rousseff, e confirma a intenção de traçar paralelos entre lá e cá. “Tem a intenção, porque naturalmente a gente tem uma posição política muito clara”, afirma o diretor-geral. “É muito natural, na hora que você começa a pesquisar a história, vai dar naquilo ali, a não ser que eu não queira falar a verdade.”

Em 1964-1965, o Opinião aglutinou indignações, protestos e forças antiditadura, o que explica em parte a permanência até os dias atuais do círculo de influência de um musical que, entre outros feitos, revelou Maria Bethânia (quando Nara precisou se ausentar da temporada), lançou a canção de protesto e ajudou a cunhar a sigla MPB para a geração musical que estava nascendo entre os palcos dos teatros e dos festivais televisivos da canção.

Zé Keti, Nara Leão e João do Vale protagonizaram o LP Show Opinião

Muita gente desconhece

Compacto duplo lançado por João do Vale em 1967

No Maranhão, menino, João do Vale não teve oportunidade de estudar e foi ser vendedor de frutas. Migrante pelo Nordeste, trabalhou como ajudante de caminhoneiro. Em Salvador aprendeu a ser pedreiro, em Minas Gerais foi garimpeiro. Chegou ao Rio de Janeiro em 1950 e o primeiro emprego foi como ajudante de pedreiro. À noite, ia às emissoras de rádio tentar mostrar as composições que criava. A primeira que viu gravada foi “Madalena”, na voz de Zé Gonzaga, irmão menos famoso de Luiz Gonzaga. Em 1952 aconteceu o primeiro sucesso, “Estrela Miúda”, na voz de uma das rainhas do rádio, Marlene.

“Estrela Miúda” (1952), com Marlene

Ivon Curi foi o primeiro grande difusor das canções de João do Vale. O cantor apurado de “O Menino de Braçanã” (composto em 1953 por um dos primeiros parceiros de João, Luiz Vieira) ganhou do autor temas de malícia sexual como “Forró do Beliscão” (1959), “Pisa na Fulô” (1958) e “Peba na Pimenta” (1957). Esse último forró, malicioso que só ele, viraria sucesso popular na voz da pernambucana Marinês, à frente do ato Marinês e Sua Gente.

“Forró do Beliscão” (1959), com Ivon Curi
“Peba na Pimenta” (1957), com Marinês e Sua Gente

Os duplos sentidos sexuais e os trava-línguas dos repentes nordestinos foram a porta de entrada de João do Vale para o mercado musical, mas eram apenas uma vertente de sua criação. “Na Asa do Vento” (1956, com Luiz Vieira) e “No Pé do Lajeiro” (1956) deram vez à veia mais lírica. A primeira foi lançada por Dolores Duran (e revivida, em 1975, por Caetano Veloso); a segunda, gravada pelo Trio Marayá, seria retrabalhada em 1981 por Tom Jobim, no mesmo espírito que nutriu “Águas de Março” (1972) e “Boto” (1976).

https://www.youtube.com/watch?v=T8aJd64yF40
“Na Asa do Vento” (1956), com Dolores Duran
“No Pé do Lajeiro” (1956), com o Trio Marayá
“No Pé do Lajeiro” (1981), com João do Vale e Tom Jobim

Enquanto tentava se firmar como compositor, João atuava como assistente de direção na indústria de cinema e via a bossa nova sobrepujar a geração do baião do pernambucano Luiz Gonzaga e do coco do paraibano Jackson do Pandeiro. Esse, em 1959, gravou de João “O Canto da Ema”, aquele canto que trazia em seu bojo um bocado de azar. O balanço “O Cheiro da Carolina” (1956), interpretada por Gonzagão e creditada a Zé Gonzaga e Amorim Roxo, era na verdade de João do Vale. O forró moderno “Matuto Transviado” (1959), gravado pelo baiano Luiz Wanderley, seria conhecido por gerações mais novas como “Coroné Antônio Bento”, pela versão soul-rock de Tim Maia em 1970.

“O Canto da Ema” (1959), com Jackson do Pandeiro
“O Cheiro da Carolina” (1956), com Luiz Gonzaga

Luiz Gonzaga teria registrado duas parcerias com João – “De Teresina a São Luís” (1960) e “Fogo no Paraná” (1964) -, não fossem ambas assinadas em nome da esposa de Gonzagão, Helena Gonzaga. Consta que João do Vale foi pródigo em vender composições suas para outros autores, à moda do que faziam vários dos bambas da aurora do samba.

“Tenho 230 músicas gravadas, fora as que vendi. De 500 mil-réis pra cima já vendi muita música”, recita João em meio ao Opinião. Quais composições ele vendeu e quem comprou foram segredos que levou para o túmulo, segundo o biógrafo Marcio Paschoal, autor de Pisa na Fulo mas Não Maltrata o Carcará – Vida e Obra do Compositor João do Vale, o Poeta do Povo (ed. Lumiar, 2000).

As canções migratórias gravadas por Gonzagão revelavam uma face mais dramática de João, que apareceria também na autobiográfica “Minha História”. A canção remete ao tempo em que o futuro artista foi retirado da escola para ceder vaga a um novo aluno mais posicionado na escala social.

“Fogo no Paraná” (1964), com Luiz Gonzaga
“Minha História”, gravada por João do Vale no solitário álbum “O Poeta do Povo” (1965)

O exílio para dentro

“Pisa na Fulô” e “Peba na Pimenta” integrariam o repertório principal do maranhense no Opinião, logo na abertura do espetáculo. O público era fisgado pelos duplos sentidos sexuais e pelos trava-línguas bem nordestinos (“quem a paca cara compra/ caro a paca pagará”), mas o conteúdo político ia sendo desenrolado aos poucos, a partir das piadas de Zé Keti com a letra K (designando a popularidade persistente e a desgraça política do ex-presidente Juscelino Kubitschek), das referências ao “fora de moda” de ser “vermelho” no Brasil de 1964-5 e de canções também dramáticas como as inéditas “Carcará” e “Sina de Caboclo” (um hino informal pela reforma agrária).

“Sina de Caboclo”, gravada por Nara Leão no disco Opinião de Nara (1964)
“Carcará”, registado em O Canto Livre de Nara (1965)
“Carcará” marcou a estreia de Maria Bethânia nos palcos do Sudeste

Gente como Luiz Gonzaga e a cantora de fossa Nora Ney teria se recusado a gravar “Carcará”, o que evidencia o corte que João do Vale, sem querer, promoveu na MPB: recusado por Gonzagão, iluminou e foi iluminado pelas jovens Nara e Bethânia, e viu o caminho se abrir para a gravação de O Poeta do Povo (1965). Esse seria álbum único de uma trajetória que não se consolidou em disco, até que Chico Buarque, Fagner e o produtor Fernando Faro se unissem, em 1981, para gravar o estrelado João do Vale, de duetos vocais com os dois co-produtores e com Alceu Valença, Amelinha, Clara Nunes, Gonzaguinha, Jackson do Pandeiro, Nara, Tom Jobim e Zé Ramalho.

“Oricuri (Segredo do Sertanejo)”, com João e Clara Nunes

Se antes do Opinião João do Vale compunha em paz, o espetáculo o colocou, como a toda a geração dos 1960, na rota da Censura. “Antes de 64, ninguém via a minha música como protesto. Eu cantava a verdade sobre o Nordeste: a seca, a fome, o homem de lá, não como protesto”, afirmou ao jornal paraense O Liberal, segundo o biógrafo Marcio Paschoal.

Em 1968, João chegou a ser preso no Docs, e foi salvo pelo então governador do Maranhão, José Sarney – acabou em prisão domiciliar na cidade natal. “Quando baixaram o AI-5, Chico foi para a Itália, Gil e Caetano, para a Inglaterra, e eu, para Pedreiras”, afirmou, ainda segundo o biógrafo. Na volta para o “sul maravilha”, foi morar em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde viveria até morrer.

O exílio para dentro, no caso de João do Vale, foi perene. As tentativas de resgatá-lo foram bissextas e restritas, por exemplo na festa carioca dos anos 1980 Forró Forrado, conduzido por ele, ou quando Chico e Fagner voltaram a se reunir em 1994 para um novo disco em tributo, com João já doente, e canções emblemáticas reinterpretadas pelos produtores e por Alceu Valença, Alcione, Ednardo, Edu Lobo (numa sensacional releitura de “Carcará”), Geraldo Azevedo, Ivon Curi, João Bosco, Luiz Vieira, Maria Bethânia, Miúcha, Quinteto Violado e Zé Ramalho.

Nesse derradeiro tributo em vida, Paulinho da Viola realizou uma versão comovente do samba “A Voz do Povo”, que o não-sambista João compôs inspirado no Opinião e no espírito do bar Zicartola. “Meu samba é a voz do povo/ se alguém gostou eu posso cantar de novo”, cantaram – num intervalo de 29 anos e uma ditadura inteira – João do Vale na abertura de O Poeta do Povo e Paulinho da Viola no tributo João Batista do Vale.

“A Voz do Povo” (1994), com Paulinho da Viola
“A Voz do Povo”(1965), com João do Vale

A homenagem maranhense a João, em O Gênio Improvável, acerta contas com o passado e com o presente. Nas primeiras temporadas, apenas o próprio Maranhão teve acesso às incômodas semelhanças entre o que aconteceu no Brasil nos anos 1960 e o que está acontecendo e ainda pode vir a acontecer nos anos 2010 e além. Quando o musical estiver navegando pelas diversas capitais brasileiras, saberemos o que a saga dolorida de João de Vale tinha a ver com o futuro a que chegamos agora, em outra rodada de regime de exceção. Nesses momentos, vozes como a do “poeta do povo” costumam gritar o que muita gente não tem coragem de sequer balbuciar.

O elenco de “João do Vale, o Gênio Improvável”, no Teatro Arthur Azevedo, em São Luís (MA)

Abaixo, uma seleção do melhor de João do Vale, nas mais diversas vozes da MPB.

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