Caminhando a favor do vento

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Sem partido! Sem bandeira! Sem política! É hoje o dia da alegria!
Sem partido! Sem bandeira! Sem política! É hoje o dia da alegria! Sou Adão e você será minha pequena Eva!

Setores majoritários da campanha e a mídia inteira preferem que o movimento seja apartidário, mas o Dom Quixote anônimo está de pé no largo da Batata, determinado a confrontar os moinhos movidos pelo vento que venta em efeito manada. O militante veterano vende a R$ 20 exemplares de um livro elucidativo sobre o golpe de Estado que em 1973 demoveu Salvador Allende da presidência do Chile e o assassinou. Tentando convencer os interlocutores a comprar o volume, critica os governos de Luiz Inácio Lula da Silva Dilma Rousseff (sem declinar o nome da segunda) por não terem enfrentado os preceitos do Partido da Imprensa Golpista, o PIG, governado com mão de ferro pela Rede Globo. Nosso modesto Dom Quixote receita, para o futuro que inevitavelmente virá, uma medida simples: a criação do Ministério do Combate ao Golpismo. Para ele, só uma instituição que trabalhasse exclusivamente nisso daria conta de estancar a longa sangria de golpes golpes golpes a nos acometer historicamente, sem cessar, década atrás de século.

O PIG dos Panteras Negras, cinco décadas atrás.
O PIG dos Panteras Negras, cinco décadas atrás.

O assunto parece etéreo, mas o Dom Quixote anônimo está 100% antenado ao que se passa no largo da Batata durante a estreia do Diretas Já Reloaded em São Paulo, no domingo 4 de junho de 2017. A multidão reunida, sejam os anônimos do calçadão, sejam os artistas do alto do trio elétrico, parece imunizada contra a palavra GOLPE. A tibieza das palavras de ordem (“fora Temer!” e “diretas já!” e nada mais) reflete a dura realidade de que nenhum de nós sabe atualmente que rumo tomar – mas, mais que isso, evidencia que (quase) ninguém aqui quer combater institucionalmente o GOLPE (ou os golpes, no plural). O comportamento-manada de não assumir que o Brasil estamos sob golpe de Estado traga & traduz as boas intenções subjacentes e se espelha na desesperança desconcertada de todos nós que aqui estamos.

O pato morto da Fiesp é o líder que não quer dizer seu nome?
O pato morto da Fiesp é o líder que não quer dizer seu nome?

Tal qual aconteceu uma semana antes no Rio de Janeiro, o repertório centrado no aviltante “apartidarismo” desnuda o encaçapamento dos golpes todos e o ato de se manifestar assoviando para o alto como se alguém (uma moça chamada Brasil) não estivesse sendo estuprada na esquina ao lado. Mesmo com toda uma MPB dita heróica na retaguarda, os esquerdistas que ninávamos ao som de Chico Buarque em 1974 hoje relutamos (ou não) em nanar embalados pelo pop “apartidário” psolista, marineiro, caetânico, subtucano, tucanistanês. E a trilha sonora vai de mal a pior.

Com Wilson Simoninha, filho do trágico Wilson Simonal, como porta-voz, o Bloco Baixo Augusta desrespeita o público com uma seleção de celebrações descolocadas do tipo “é hoje o dia da alegria”, “isso não impede que eu repita que (a vida) é bonita, é bonita e é bonita” e, para pasmo de um manifestante vestido numa camiseta cor-de-rosa estampada com mestre Cartola (e de todos nós), “sou Adão e você será minha pequena Eva, o nosso amor na última astronave”.

No momento mais “consciente”, Simoninha canta “Zé do Caroço”, da brava Leci Brandão. Mas quem poderá ser o “novo líder” que está nascendo no morro do Pau(-Brasil) da Bandeira, se a liderança e o partidarismo estão interditados pelo medo a todos nós que somos patos pós-Fiesp? Zé do Caroço será o mesmo Lula de sempre? Será uma fantasmagórica Evita Perón, nossa pequena Eva peronista? Será Marina Silva, protegida atrás dos políticos de modinha que frequentam e dão aulas de (a)política na casa apartidária de Paula Lavigne? Será uma não-pessoa fora-do-eixo tipo Mídia Ninja? Quem?

Ao lado de EmicidaCoruja BC1 ensaia chegar ao essencial, citando “a democracia desrespeitada”, mas a resposta musical é niilista no estilo “fora todos eles”: “Fodam-se vocês/ fodam-se suas leis”. Fodam-se todos!, pode ser este o slogan-líder, mas o que colocaremos no lugar das leis imaginadas para ser descumpridas por quem pode mais?

Péricles vem vestido de vermelhão, mas a paródia derrapa no vilão único (quando a global Mônica Iozzi pergunta quem aqui votou em Aécio Neves, as mãos uníssonas que não ousam dizer seu nome permanecem baixadas na multidão): “No céu de Brasília estrelas vão cair”. Criolo comove a massa (não-)eleitora de João Doria Jr. com o hino “Não Existe Amor em SP”.

O Arrastão dos Blocos vem vestido com camisetas de Dilma e/ou do MST, o Movimento Sem Terra (também encampado por um corajoso Edgard Scandurra), mas as dilmas mais populares de plantão, Maria GadúTulipa Ruiz Pitty, dão primazia às canções amorosas e à Política do Umbigo, um “você me chama pra dançar” aqui, um “diga que você me adora, que me acha foda” ali. Cabe à manifestante anônima empunhar e agitar bandeira solitária de Dilma Rousseff, aquela que golpistassubgolpistas antigolpistas são unânimes em varrer para baixo de um sujíssimo tapete voador.

O desconforto paira no ar, e ele tem a ver com o fato de que todo mundo que aqui afirma querer Diretas Já está assinando embaixo do golpe de estado já dado e assimilado: não existe superação do golpe sem redenção da golpeada (até o intelectual uspiano Fernando Haddad deve saber disso), chame-se a golpeada de Dilma Rousseff ou de Menina Brasil. Haja Ministério da Educação e do Antigolpe para combater nosso vício letal em nos mantermos caladas e submissas diante dos golpes que nos humilham há (no mínimo) 517 anos. Como sabe o militante saudoso de Allende, nossa história jamais será diferente enquanto teimarmos em agir hereditariamente do mesmo modo, sempre e sempre e sempre.

Diretas já? Mas e o golpe?
Diretas já? Mas e o golpe?

 

 

 

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