O Santuário Nacional se moderniza para as comemorações dos 300 anos do encontro da imagem da santa no rio Paraíba do Sul e a Festa da Padroeira ganha novos ares
Eles entram na cidade a pé, dormem por um, dois ou mais dias no relento do chão frio de um posto de gasolina, caminham pelo acostamento de estradas onde carros de motoristas apressados trafegam a mais de cem quilômetros por hora. Eles também chegam de ônibus, centenas deles, de todos os recantos e rincões, e transformam a poltrona em cama por uma ou duas noites. Eles lotam hotéis de luxo ou sem estrela alguma, pousadas e quartos compartilhados com famílias pobres do município. Eles são os mais de 160 mil peregrinos que visitam o Santuário Nacional de Aparecida, o templo da fé católica, na festa da Padroeira.
A romaria anual em torno do 12 de outubro começa meses antes, porque a viagem pode ser longa e cara. Edna de Oliveira Santos, de Itaboraí (RJ), temia não vir em 2016, depois de oito anos ininterruptos. Faltava-lhe dinheiro, porque os clientes caminhoneiros sumiram da oficina mecânica de que cuida com seu marido, o soldador Manoel do Carmo Medina, de 63 anos. Mas não ir ao interior de São Paulo, em “Aparecida do Norte”, seria dolorido, triste e quase uma traição para a fé da família. Em setembro de 2007, um filho do casal, Deivid, foi atropelado na BR-101, hospitalizado e, diante da gravidade do acidente, Edna só pode rezar. Pediu proteção à Nossa Senhora Aparecida. Deivid sobreviveu, mas com uma trombose. O casal prometeu visitar o Santuário se seu filho fosse curado. No ano passado, a doença desapareceu, garante Edna. Outro de seus três filhos, Jonathan, que há quatro anos parou de falar com ela, procurou-lhe cerca de um mês atrás, fez as pazes e deu-lhe o dinheiro para a viagem anual. Uma outra bênção divina, sem dúvida. “Só de estar aqui já é um milagre”, diz a romeira, de 45 anos.
Na missa das 9 horas, a principal do 12 de outubro, celebrada por Dom Raymundo Damasceno Assis, Edna e Manoel estavam na primeira fila destinada aos fiéis, de frente para o altar – seria mais perto não fossem os cercados destinados a jornalistas, de um lado, e a autoridades como o governador Geraldo Alckmin (PSDB), de outro. O altar da Basílica é localizado no centro, e fileiras de bancos se espraiam por três longos corredores radiais. Até 30 mil devotos podem participar da celebração, mas a maioria acaba por ficar em pé. A visão do casal itaboraiense, contudo, é a mais privilegiada entre os mortais normais. Os dois conseguem “reservar” o local chegando um dia antes e se revezando a cada saída, seja para o banheiro ou para uma refeição, dormindo na beira do altar e rezando para fazer as mais de 24 horas de espera passarem mais rápido. “Hoje, só tenho a agradecer e não pedir nada”, explica Manoel, um católico fervoroso que todos os dias cantarola “O Senhor é meu pastor e nada me faltará” no caminho até o trabalho. “Ter Deus é tudo na minha vida. E Nossa Senhora é nossa mãezinha”, completa ela.
Os romeiros são a razão de ser de Aparecida, e não só no dia 12 de outubro. Por ano, mais de 10 milhões de visitantes vão até o maior centro de evangelização católica do Brasil. Em 2015, foram 11,5 milhões. É como se em cada um dos 365 dias do ano todos os 31.479 habitantes de Biritiba Mirim, também do interior paulista, visitassem a Basílica. Em vários dias, Aparecida mais que dobra o tamanho de sua população, de 36.248 habitantes. Manter a fé em alta antes, durante e depois da Festa da Padroeira é possível porque foi erguido ao longo dos últimos anos o “Complexo Turístico Religioso do Santuário Nacional”. O nome, em si, já revela o gigantismo da operação.
Aparecida é nossa Disneylândia da fé. Como um poderoso ímã, atrai romeiros, peregrinos, fiéis, católicos e, por que não, até agnósticos em torno da devoção a Nossa Senhora Aparecida. Em 2017, essa força de atração será ainda maior com a comemoração dos 300 anos do encontro da imagem da santa, no rio Paraíba do Sul. A Festa da Padroeira já começou neste ano, criando uma prévia do que ainda está por vir. O tenor Andrea Bocelli, que faz temporada de shows no Brasil, abriu sua agenda só para cantar com a Basílica ao fundo. Com entrada gratuita, a apresentação teve participação de 130 músicos da Orquestra Jovem e Coral Jovem do Estado, do Coral Juvenil do Guri e do cantor Daniel. “Dividir o palco com ele e poder conhecê-lo foi a realização de um sonho, e como devoto de Nossa Senhora Aparecida tenho certeza que ela me concedeu esse privilégio”, afirmou o cantor sertanejo.
Se a fé é o principal atrativo, não significa que os religiosos à frente do complexo turístico deixem de pensar na criação de inúmeras outras atrações para o público. É, aliás, o que mais fizeram nos últimos anos: cinema 3D sem óculos especiais (o primeiro do gênero no Brasil), dois parques de diversões, aquário, museu de cera, bondinho aéreo, palcos para espetáculos ao ar livre, centro de eventos para 8.000 pessoas, shows de hora em hora com personagens infantis, praças de alimentação e uma dezena de lojas de souvenirs espalhadas em 143 mil metros quadrados de área construída. Um desavisado, ou um homem de pouca fé, poderia imaginar que esse lugar seja um Beto Carrero World ou um Hopi Hari. Mas é mesmo o Santuário Nacional de Aparecida.
O primeiro cinema 3D da América Latina que dispensa o uso de óculos especiais foi inaugurado no dia 7 de outubro. Numa sala para 150 lugares, cuja decoração lembra o ambiente de um parque temático, o espectador vê imagens que saltam das telas. São efeitos holográficos criados por dez projetores que lançam as imagens em cinco telas especiais. O projeto do Cine Padroeira foi idealizado por Alfonso Aurin, consultor do Santuário e com longa trajetória profissional pelo SBT. Ele se inspirou em uma sala de projeção de Nazaré, em Israel. Porém, no cinema de lá as imagens são estáticas e baseadas em fotografias. Na versão brasileira, foi produzido um filme de 15 minutos, A História de Nossa Senhora Aparecida, dirigido por Del Rangel, da série global Os Maias e ex-marido de Regina Duarte, e que conta os episódios marcantes da santa.
A mesma tecnologia foi utilizada nos Jogos Olímpicos da Rio 2016. O obra em 3D é a primeira investida do Cine Padroeira, mas na mesma área já há espaço para outras três salas de cinema. No primeiro andar, funciona o Museu de Cera, inaugurado em fevereiro. Nessa atração, uma variante tupiniquim do Museu Madame Tussauds, personagens da Igreja Católica também recontam a história da santa e outros momentos da vida do Santuário, como as passagens dos papas que visitaram Aparecida. A estátua do jogador Ronaldo Fenômeno está por lá.
Essas são as duas atrações mais novas do Santuário, que vieram se somar a outras que chegaram em anos recentes. Há dois anos, foi inaugurado o passeio dos bondinhos aéreos, cujo ponto de partida é localizado no Santuário Nacional e dá acesso ao Morro do Cruzeiro. As 47 cabines suspensas fazem um trajeto de 1.170 metros, cruzando a rodovia Presidente Dutra. Antes, os fiéis tinham de cruzar a pé até chegar aos pés do morro e então iniciar o passeio da Via Sacra. O local, remodelado em 2000, possui painéis de cimento do artista Adélio Sarro, que representam as 14 estações. Na sexta-feira da Paixão, mais de 5 mil romeiros participam da cerimônia da Semana Santa no Morro do Cruzeiro.
Em 2012, o Santuário inaugurou um Centro de Eventos Culturais e Esportivos, com capacidade para 8.000 pessoas. Na beira da rodovia Dutra, o local possui dois espaços, um no ginásio e outro no subsolo, para shows musicais, teatros, esportes e celebrações religiosas. A agenda do local abriga shows (a dupla Bruno & Marrone tocou em maio), congressos e retiros espirituais, vigília da juventude, bingos, feiras natalinas e romarias.
As lojas de souvenirs são as que mais fazem sucesso nos dias de grande movimento na Basílica. No último 12 de outubro, houve uma procura acima do esperado pelas medalhas comemorativas do tricentenário. A Casa da Moeda confeccionou 10 mil unidades de bronze (que foram vendidas a R$ 120 cada), mil de prata (a R$ 490) e 300 de ouro (a R$ 968) – a venda de todas gerará R$ 1.980.400 para os cofres da igreja. Elas não serão reeditadas, já que as matrizes foram destruídas com a intenção de torná-las um item de colecionador. Na loja virtual do Santuário, só estavam disponíveis as medalhas de bronze.
Como sua versão original nos Estados Unidos, a Disneylândia da fé está criando novas atrações para manter o turismo em alta. É uma espécie de renovação, não necessariamente carismática, para que o fiel tenha a sensação de ter sempre algo mais para fazer nos dias de visita a Aparecida. Mas para muitos fiéis os espaços antigos e consagrados são, e sempre serão, imperdíveis.
Moradora de Mogi das Cruzes (SP), Lourdes dos Santos, de 48 anos, vem duas vezes por ano ao Santuário. Sempre visita a Sala de Promessas, que fica no subsolo da Basílica, local onde as pessoas depositam pertences dos mais variados tipos para agradecer uma bênção da Padroeira. Possui mais de 87 mil fotos pregadas em suas paredes. Assistente educacional na escola católica Dona Placidina, de Mogi, Lourdes finalmente conseguiu trazer o sapatinho de batizado de seu filho Douglas Francisco dos Santos, que acaba de completar 16 anos. Desfazer-se de um objeto tão estimado é um agradecimento da romeira por ter sua graça atendida. Douglas continua “um jovem que anda na linha”, segundo a mãe explica. “Quando fizer 18 anos, e ele conseguir um emprego, vou trazer uma cópia da carteira de trabalho”, antecipa, esperançosa. Ela e o filho, que vivem com a renda mensal de R$ 1.200, gastaram R$ 96 pela excursão de um dia até Aparecida.
Na Festa da Padroeira, centenas de ônibus chegaram até o município paulista do Vale do Paraíba. No estacionamento – considerado o maior da América Latina, com 6.000 vagas -, viam-se placas das mais variadas regiões do país, como Distrito Federal, Patos (PB), Apucarana (PR), Barra Mansa (RJ), Bento Gonçalves (RS) e Salvador (BA). Muitas recorrem à rede hoteleira da cidade, que conta com 37 mil leitos. Mas dois meses antes do 12 de outubro já não havia mais vagas disponíveis, e o jeito é recorrer a municípios vizinhos ou improvisar no próprio veículo de transporte.
O vigia Osvaldo José da Silva, de 58 anos, organiza há 32 anos uma excursão de ônibus partindo de Arcos e Pains, duas cidades mineiras. Na primeira vez veio como romeiro, mas logo percebeu que tinha ali um ganha-pão certeiro, todo ano. Os romeiros lhe pagam R$ 150 por uma viagem de nove horas de duração, tempo que se leva para percorrer os 432 quilômetros de estrada até Aparecida. Mas Osvaldo não faz isso só por dinheiro. Aproveita a ida anual até o Santuário para agradecer a cura de seu filho, Lípio José da Silva, que, segundo o pai, foi “desenganado pelos médicos”. Lípio tinha um problema no esôfago e os doutores disseram que nem uma cirurgia daria certo. Sua mulher, Francisca de Fátima Costa e Silva, rezou para Nossa Senhora Aparecida. Se a graça fosse realizada, ela prometia levar um pescoço de cera até a Sala de Promessas. “Ele é hoje o mais forte e o mais inteligente dos meus seis filhos”, orgulha-se o vigia. Osvaldo até banca um churrasco de costelão de boi, arroz, vinagrete e feijoada para seus clientes peregrinos. “Fico feliz de trazer o povo para a casa da mãe Aparecida.”
Nos dias em que permanecem em Aparecida, os romeiros decidem quais outros locais vão visitar no Santuário. Não faltam opções, além das já citadas: cinco capelas (do Santíssimo, São José, da Ressurreição, do Batismo e das Velas), o Museu de Nossa Senhora Aparecida, o Centro de Documentação e Memória do Santuário, a passarela (que liga a Basílica Velha e o Santuário Nacional), o Morro do Presépio, o Porto Itaguassu (marco do local onde foi encontrada a imagem de Nossa Senhora Aparecida por três pescadores, em 1717), o centro de apoio ao Romeiro, a Cidade do Romeiro, a Igreja São Benedito e o Seminário Bom Jesus (que hospedou os papas João Paulo II e Bento XVI e recebeu uma visita do atual, Francisco, em 2013). Um camelódromo, do lado de fora, é outra atração disputada.
Os peregrinos também têm várias opções para assistir às missas. São seis nos dias da semana e sete aos sábados e domingos. No feriado da Padroeira, a missa principal, das 9 horas, vem ganhando ares menos solenes, nos últimos anos. Ao som de “Eine Kleine Nachtmusik (Allegro) Movt 1”, uma das sonatas mais conhecidas de Mozart, chega o momento mais esperado pelos fiéis. A imagem de Nossa Senhora Aparecida chega em um pequeno carrinho, empurrado por quatro religiosos, emoldurado por um sol giratório com luzes LED e girassóis no tablado. O público vai ao delírio. Já no final da celebração sacra, a voz que surge é a de Gal Costa, com “Aquarela do Brasil”, clássico de Ary Barroso, quando jovens garotas desfilam com cartazes de animais da fauna brasileira.
A seleção musical pode não ser o forte dos religiosos, mas não faltam artistas que cantam em louvor à santa padroeira. Roberto Carlos (“Nossa Senhora”) e Renato Teixeira (“Romaria”) podem estar entre os mais tocados, porém a lista é muito maior e mais abrangente. Vai desde Tonico & Tinoco (“Aparecida do Norte”), Amado Batista (“Nossa Senhora Aparecida (Oh! Mãe Querida)”) e Nana Caymmi (“Minha Nossa Senhora”) até Tim Maia (“Salve Nossa Senhora”). A música sertaneja é a que mais faz reverências à mãezinha.
“O Brasil caipira incorpora nos peregrinos e romeiros”, afirmou Rick, que antes fazia dupla sertaneja com Renner e hoje segue em carreira solo. O cantor foi o mestre de cerimônias do show 300 Anos de Bênçãos, transmitido pela TV Aparecida. Anunciado com a participação de Sérgio Reis e Renato Teixeira (eles não compareceram), o show teve convidados do universo caipira contemporâneo. Gino & Geno, Gian & Giovani, Rionegro & Solimões foram alguns dos artistas que subiram ao palco. Quase todos os músicos tinham uma história relacionada à Nossa Senhora. “Há 18 anos, eu quase parei de cantar. E prometi que, se fosse cantar de novo, ela estaria em todos os palcos comigo”, disse, emocionada, a cantora Fátima Leão, também autora de hits sertanejos como “Dormi na Praça”, lançado por Bruno & Marrone.
No 12 de outubro, em Aparecida, a MPB se converte na Música da Padroeira do Brasil.
A disneylândia dos comunistas é em Cuba, quem dera se todos fossem embora e não voltassem mais.