A selva de pedra volta a ser floresta por alguns dias, de 7 a 12 de outubro, quando desembarcam em São Paulo 53 produções indígenas realizadas com o olho mecânico a que chamamos câmera cinematográfica. Orquestrada pelas mãos de música do líder krenak Ailton Krenak, a Aldeia SP – Bienal de Cinema Indígena aporta na “maior cidade” da América Latina, ameríndia do sul, num momento crítico de “avanço” e “aceleração” bandeirante por sobre a floresta que parece querer ser apenas de pedra.
A coincidência histórica (existem coincidências históricas?) não passa despercebida por Alfredo Manevy, o presidente da Spcine, empresa pública municipal que patrocina o rito com ouvidos de quem testemunhou e ajudou a construir uma visão mais-que-eurocêntrica da política cultural brasileira (ameríndia, afrobrasileira etc.), sob os olfatos baianos-e-universais dos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira. “Boto muita esperança de que esse evento seja um momento para pensar o Brasil a partir do olhar dos indígenas”, afirma Manevy, de braços abertos para o futuro, seja ele qual for.
O gestor público acredita, por exemplo, que os indígenas que estarão reunidos a partir da sexta-feira 7 no Centro Cultural São Paulo (CCSP) têm toques importantes a acrescentar à nossa atmosfera altamente poluída por golpes de estado e estados de exceção. “Eles sabem mais desse assunto do que nós. Eles vão tirar a gente da deprê”, diz. De fato, é particular a compreensão de Ailton Krenak em relação ao golpe de 2016:
Ailton Krenak: Não é a primeira vez que o povo indígena vive uma situação de exceção, de suspensão de direitos. A gente já viveu isso muito antes. Viveu no tempo da colônia. Há muito tempo os jesuítas tinham uma constelação de aldeias espalhadas pelo país e o Marquês de Pombal chegou aqui com poderes de vice-rei e detonou com aquelas missões todas, abriu pros fazendeiros caçarem índios dentro das missões e fazer escravos. Nós sobrevivemos. Depois teve Dom Pedro II, com as reformas dele. Nós sobrevivemos. Depois teve a lei das terras de 1850. Nós sobrevivemos. Finalmente teve a tal da proclamação da República. A gente não tem nada a ver com ela, saímos de uma colônia pra entrar numa República. Entramos pelos canos da República em finais do século XIX e atravessamos o século XX levando tudo quanto é tipo de rasteira. E estamos vivos. Os índios são à prova de golpe. Pode vir, nós não estamos aqui de bobeira. A gente tem genealogia.
Pedro Alexandre Sanches: Você está dizendo que para o índio o estado de exceção é perpétuo?
AK: O estado de exceção é a nossa praia, desde que os portugueses chegaram aqui com aqueles botes podres deles.
PAS: Ditadura é quando a classe burguesa começa a perder direitos que os outros já não têm?
AK: Exatamente, que os outros já não têm. Isso é que é uma ditadura. Eu abri uma fala num colóquio internacional de povos e comunidades tradicionais em Montes Claros, no sertão de Minas Gerais, no meio de um monte de gente sertaneja, crianças. E pensei: eu preciso calibrar o que vou falar aqui, porque senão vou falar só pros brancos. Quero falar pros índios também, pros quilombolas, pras crianças. Aí comecei falando: vocês ouviram uma saudação, quando nós abrimos este encontro, dizendo “fora Temer“, “abaixo o golpe”. O povo gritou: “É!”. Eu falei: mas não se iludam, porque o golpe, o nosso, começou há 500 anos. Tem 500 anos que nós só estamos levando golpe. E aí consegui abrir uma conversa com os quilombolas, com os xacriabá, com as comunidades indígenas do Alto São Francisco que estão flageladas. Não vou fazer piadinha sobre o evento, mas tem criança atravessando o São Francisco com água pela canela. E eu chorei de ver a miséria deles. E tem 500 anos que eles estão sendo sugados, sacaneados. Eu queria alertar eles pra não embarcar nessa de gaiato, de gritar agora porque a classe média está perdendo um pouquinho dos seus latifúndios.
PAS: Isso também valia pra quando estavam gritando “fora Dilma“?
AK: Não tem dúvida. Por que não foram gritar “fora Dilma” lá em Belo Monte, quando ela estava comendo os índios feito uma leoa no cio?
PAS: Mas há o perigo de perder direitos que já estavam conquistados? Vocês são, digamos, um público preferencial do Temer.
AK: Eles não vão acrescentar mais sofrimento à nossa vida do que nós já conhecemos. Quem vive comendo jiló não acha nada amargo. Se o povo indígena sempre foi assaltado e sacaneado, a diferença é ser assaltado subliminarmente o tempo inteiro ou ser assaltado e sacaneado publicamente, com campanhas públicas de arregimentar golpistas. Era para a demarcação das terras indígenas ter sido concluída em 1995. De 1995 pra cá o relógio só está contando, o taxímetro está tec, tec, tec, e os caras roubando. Roubaram a gente no governo do Collor, no governo do Fernando Henrique, no governo do Lula, no governo da Dilma e agora parece que vão assaltar no governo do Temer, porque é um roubo monumental. Mas nós estamos aqui pra resistir, uai. Eles passarão, como dizia o poeta, nós passarinho.
PAS: Tomaram posse dizendo que vão vender terras brasileiras pros gringos. Que terras serão essas?
AK: Eles passarão. Eles passarão. Os nossos netos vão jogar uma pá de cal na sepultura desses caras. Vão cuspir na sepultura deles. E eu não sei nem se eles vão ter netos. Nós temos que pelo menos ter a coragem de difamar esses caras.
Num dos atos que poderão emoldurar simbolicamente a despedida dos quatro anos de governo Fernando Haddad na capital paulista, a Aldeia SP se inicia às 15h desta sexta-feira, com exibição do documentário Martírio, do franco-brasileiro Vincent Carelli, recém-premiado (mais) pelo público e (menos) pela crítica do Festival de Brasília de 2016. Carelli é um pioneiro na construção daquilo que hoje podemos chamar de cinema de índio (com o projeto Vídeo nas Aldeias, homenageado na marcadamente indígena edição 2016 da Bienal de São Paulo), e estará no centro de uma roda de conversas às 18h, junto a 12 realizadores indígenas de diversas partes do Brasil.
Sentado num escritório de concreto escondido numa das inúmeras janelas do vale do Anhangabaú, Alfredo Manevy fala sobre a profusão indígena na São Paulo de 2016 e sobre a dificuldade que a cidade tem de reconhecer sua porção indígena. Aborda o impacto que a Aldeia SP pode legar à selva bandeirante e fala poeticamente sobre o olho indígena que inventou o cinema séculos antes de o cinema ter sido inventado e transformado em indústria & comércio.
PAS: Por que a Spcine está investindo num festival chamado Aldeia SP?
Alfredo Manevy: Esse projeto já existia antes, quando a Spcine estava sendo criada na Secretaria Municipal de Cultura. Juca Ferreira era secretário e já vinha de uma visão do Ministério da Cultura (MinC) dos anos Lula, absolutamente favorável a reconhecer a contribuição dos indígenas para a cultura brasileira, para as culturas dos próprios indígenas, dos não-indígenas, e a entender essa contribuição como algo essencial para o Brasil. Juca praticou essa visão no MinC entre 2003 e 2008, com vários editais para as culturas indígenas. Até então o ministério não se relacionava com os povos indígenas. Quando Juca assumiu a Secretaria de Cultura, propôs um olhar para as culturas indígenas aqui de São Paulo e do Brasil. São Paulo tem povos indígenas que não reconhece. Não tem sequer um museu de cultura indígena aqui, o que é um absurdo. Tinha ações muito pontuais de apoio, mas nada significativo em relação às quatro aldeias urbanas que a gente tem. Trazer essa discussão para cá é também reverberar uma possibilidade política e cultural de ela se tornar uma pauta na ampliação de direitos, de direitos culturais, de direitos de terra. É estratégico para os indígenas disputar São Paulo, porque aqui é onde muita coisa acontece do ponto de vista político. E é interessante para nós, não-indígenas, ter acesso a essas culturas, porque elas lidam com questões contemporâneas, com questões do futuro da humanidade, de maneira muito mais apropriada que a nossa. Sob o ponto de vista das relações coletivas, com a terra, com a natureza, com alimento, entre pais e filhos, apontam para pelo menos uma relativização do modo de vida ocidental tal como ele está posto, esgotado há pelo menos um século. Eles têm um olhar fundamental para que a gente saia desses impasses.
PAS: Nós que estamos trabalhando na Aldeia SP temos testemunhado uma surpresa de jornalistas e de outras pessoas com a seguinte questão: mas existe cinema de índio? Grande parte das pessoas estranha até mesmo esse ponto de partida. Existe cinema de índio?
AM: Existe e é um cinema de muita qualidade estética e cultural. Claro que existe um interesse antropológico de olhar o diferente, de olhar um outro modo de vida, mas são filmes de grandes artistas, grandes intelectuais e grandes pensadores. E como o próprio Ailton Krenak não se cansa de dizer e repetir, a gente não pode tratar esses povos sob a generalidade de indígenas, como se eles não tivessem individualidades, subjetividades. São muito diferentes entre eles, coletivamente e individualmente falando. Eu diria até mais, que não só existe o cinema indígena como eles têm muita familiaridade com a linguagem audiovisual. Essa linguagem já está muito presente na cultura visual indígena, nos grafismos, com a ideia da virtualidade, do xamanismo, das conexões num plano wi-fi. O olhar dos indígenas é muito desenvolvido, antes mesmo do aparato cinematográfico. Sem falar em todas as mirações indígenas. Eles brincam que o cinema 4D já está lá há muito tempo, e que nos rituais que fazem não precisa nem de tela nem de projetor. Está tudo ali já, é o cinema indígena.
PAS: Na verdade, o cinema imita os índios, e não o contrário?
AM: Do mesmo jeito que estava já na caverna de Platão a ideia do sonho, da escuridão, de projetar as coisas, para eles, que são culturas altamente sofisticadas e desenvolvidas culturalmente, o cinema é um absoluto e natural instrumento. O bacana desse evento é tentar respeitar a estratégia deles, para que possam usá-lo dentro da sua própria estratégia política, cultural, estética, e que isso possa ser uma plataforma para eles. A gente dá suporte como parceiros.
PAS: Qual é a importância, para uma empresa como a Spcine, de patrocinar um festival dessa natureza?
AM: Incomensurável, incomensurável. São Paulo é uma grande metrópole cultural, política, cidadã, estética da América Latina e do mundo. Todo mundo sabe que a programação cultural aqui é top, não deixa nada a desejar a Paris, Nova York. É uma lacuna muito séria a cidade não ter essa antena, não estar antenada numa das discussões mais contemporâneas do mundo. O mundo inteiro está olhando para isso, e a gente aqui parece ter ainda um resquício colonial que fica envergonhado embaixo da mesa e tem que tratar esse tema como de terceira ou quinta categoria, quando na verdade é hoje uma das questões essenciais. Então a Spcine dá uma contribuição, ao patrocinar esse evento que é iniciativa de uma liderança indígena fundamental do Brasil, o Ailton Krenak, que por sua vez se articula com outras tantas lideranças e artistas indígenas, em parceria com não-indígenas como Alice Fortes, que também está junto no projeto. Ao apoiar esse projeto nós estamos propondo ajudar São Paulo a se repensar como um centro cultural. A cidade tem essa lacuna, e ela nunca vai realizar todo o seu potencial se não admitir para ela mesma que tem indígenas, que está conectada com o Brasil indígena e que a discussão estética que está ali proposta nos filmes é fundamental para o cinema e para a cidade.
PAS: Veículos com matriz estrangeira como BBC, El País e Huffington Post se mostram interessadíssimos por essa ideia, que a própria São Paulo não vê.
AM: Isso está sufocado, numa certa visão que talvez tenha algum resquício de um Brasil colonial, colonizado culturalmente, uma visão recalcada mesmo, de não entender essa relação. Como é que São Paulo não tem um centro cultural indígena contemporâneo? Não temos museus. Nos orgulhamos de ter uma Bienal, o Masp, a Pinacoteca e tal, que ótimo. Mas não ter um centro de referência das culturas indígenas na grande metrópole de um país que tem ainda 200 povos indígenas vivos, vivíssimos, que tem 180 línguas, que chama atenção no mundo pela sua diversidade cultural fortíssima? Não digo nem museu, porque museu seria falar do passado, mas falar da cultura viva dos indígenas. A gente não conseguiu nesses quatro anos, é uma lacuna da nossa gestão. Tentamos, tinha propostas, projetos, mas não conseguimos articular. Mas essa lacuna está muito clara. São Paulo não se assume com essa conexão com o Brasil, com a Amazônia, com os Guarani aqui da própria cidade. Ela deveria ser a primeira a dizer de si mesma: poxa, a gente é uma grande metrópole do mundo que tem indígenas. Que grande metrópole tem isso? Nova York e Toronto gostariam de ter essa conexão.
PAS: Você está falando isso dentro do vale do Anhangabaú, que é onde fica a Spcine.
AM: Exatamente. Estamos aqui numa terra indígena, no epicentro dela, onde passava um rio que foi soterrado. Os indígenas jamais permitiriam, se fosse um projeto urbano deles. Uma vez ouvi (o jornalista) Washington Novaes falar de quão interessante é a constituição dos aglomerados das aldeias, das populações indígenas, que nunca permitem uma tal cumulação de gente a ponto de gerar um impacto ambiental destrutivo. Isso explica os deslocamentos, as separações. Quando chega num patamar que vai se fazer cidade no sentido tradicional ocidental, eles se reorganizam, de maneira a não deixar. A gente tem que destampar essa panela e permitir que a cidade se conecte com uma parte da sua identidade, que está muito presente, como você lembrou, nas ruas, nos logradouros, na memória, que São Paulo às vezes sonega de si mesma. Isso custa, sacrifica a cidade.
PAS: Qual a importância e o impacto de levar o cinema de índio para os CEUs (Centros Educacionais Unificados) das periferias da cidade?
AM: Essa é talvez a grande sacada do projeto: não só trazer essa discussão e a exibição dos filmes no centro expandido, mas permitir que essa discussão chegue à periferia. Com o Circuito Spcine agora é possível que tudo isso chegue exatamente no mesmo padrão técnico que chegaria para um cinéfilo antenado nesse tema, um antropólogo, um indigenista. Da experiência anterior, a Aldeia SP 1, o próprio Ailton me contou que as periferias se relacionam às vezes de maneira muito melhor e mais bem resolvida. Se identificam com a marginalização que a sociedade promoveu desses povos. Se identificam com a exclusão, com perceber artistas que não têm a oportunidade de ter uma janela de exibição. Da primeira vez que os cineastas indígenas foram à periferia, aos CEUs, tinha fila de autógrafo depois das sessões. As crianças e adolescentes podiam ter um contato direto com os indígenas, e é preciso entender que essa é uma conexão de hoje, não do passado. Às vezes os livros de história colocam de uma maneira que parece que isso tudo está num passado remoto. As pessoas não têm nenhum acesso a indígenas e comunidades. Às vezes passam a vida toda sem ter um contato. Esse contato é transformador e vai permitir que todas as pessoas que tiverem essa experiência pensem de maneira diferente o Brasil, entendam o Brasil de uma outra forma, não a partir do modo de vida único sedimentado numa grande cidade como São Paulo, com um único padrão de consumo, de mobilidade, de expectativa de vida, de relação com a natureza. Tudo isso entra em choque, em cheque, porque a maneira como eles colocam as questões já é uma provocação filosófica, que a criança até entende mais às vezes que um adulto. São as perguntas muito elementares da vida que estão ali colocadas: por que estamos aqui, para quê, qual o significado da minha vida?
PAS: Muito provavelmente muitas dessas crianças são descendentes de indígenas, sem saber. Pode ser um reencontro.
AM: Com certeza absoluta, um reencontro com seu DNA, que está ali sendo pasteurizado por uma cultura que se coloca como única durante um século. E de repente a pessoa se percebe indígena. É o que está acontecendo nos últimos anos, que é chamado de etnogênese, as pessoas se declarando indígenas no IBGE. Não é que nasceu. Teve, sim, um aumento de nascimentos, por melhoria das condições de vida, diminuição de algumas barbáries – embora muitas continuem, barbáries terríveis do agronegócio no Mato Grosso, de fazendeiros, violência urbana, alcoolismo. Mas a gente teve de fato uma melhoria das condições de vida nos últimos 15 anos. Ficou mais vantajoso ser índio, ou se declarar índio, sem ser tão agredido, violentado. Essa autodeclaração está acontecendo nos grandes centros, e isso é um privilégio para o país, de estar no Ocidente e poder ter essa perninha que de certa maneira é o Oriente do Oriente. O que é essa relação, por que ela se dá dessa maneira? A gente fala do Tibet, das grandes matrizes espirituais do planeta, e a gente tem aqui dentro uma sabedoria absurda, não-reconhecida, que as universidades inclusive ignoram com seus modelos de bacharelado. Está mudando, o Ailton ganhou lá seu honoris causa, algumas universidades estão reconhecendo esse saber que não é formal, não está dentro do escaninho do mundo civilizado ocidental do Renascimento para cá, aquela coisa totalmente segmentada do conhecimento organizado. Mas está aqui, o mundo inteiro olha para nós. Por que eles olham e ficam de cara? Porque lá está numa crise tão grande há tanto tempo que olham para esses grandes saberes, essas grandes alternativas de conhecimento que não foram intoxicadas ou colonizadas pelo saber central, como uma alternativa de respiro para o futuro da vida humana. Enquanto aqui a gente despreza e trata como se fosse um conhecimento de quinta categoria e persegue a ponto de matar, aniquilar, os centros de conhecimento do mundo olham para cá de olho na biodiversidade, nas medicinas, na cultura, na espiritualidade. E vão pinçando, e às vezes patenteando, com usos indevidos e às vezes com usos bacanas, louváveis. Mas que paradoxo é esse?, a gente com uma certa vergonha de uma presença decisiva do Brasil no mundo, e o mundo inteiro olhando para cá e vendo que é um ativo fundamental que devia ser cuidado com o maior carinho do mundo pela democracia brasileira. A gente não faz isso, não tem feito.
PAS: Quando Lula criou a Seppir, Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, se pensou inicialmente nos negros, mas começaram a aparecer lá ciganos e outras minorias. Ao criar uma secretaria de igualdade e identidade racial, se chamou também quem não estava nem sendo lembrado. Com os indígenas aconteceu o mesmo?
AM: Eles começam a se autoafirmar na relação com o Estado. O fio da meada importante é a relação do Gilberto Gil como ministro. Ele prega, firma claramente que o Ministério da Cultura do Brasil é a casa de todas as culturas que formam o Brasil, não apenas de uma cultura bacharelesca, de belas artes, que está consagrada em instituições mais tradicionais: os índios têm cultura, os quilombolas têm cultura, os grupos urbanos têm cultura. Quando fala isso, Gil abre o MinC, e isso é um ponto de ruptura muito grande com o que se tinha de percepção até então. Índio era só questão de terra e de justiça, da Funai e do Ministério da Justiça. Obviamente essa é uma questão central, sem terra não tem cultura, no caso dos indígenas uma coisa está ligada à outra. Mas, de lá para cá, o trabalho da política cultural foi de reconhecer os índios não como demandantes, mas como potência de contribuição cultural. Eles têm as demandas deles, lembro quando soltamos um edital lá atrás, em 2004, e muita gente dizia “não vai aparecer nada”. Tinha tanto preconceito que muitos dentro do ministério achavam que nem iam aparecer projetos, porque não iam conseguir redigir projetos na língua portuguesa, ou porque não tinham preparo para apresentar um projeto para lei de incentivo. Apareceram mais de 800 projetos na primeira leva. Os projetos foram tudo que você podia imaginar, menos o figurino tradicional do que é ser índio. Tinha projeto de rock’n’roll indígena, de hip-hop da floresta, de wi-fi digital.
PAS: Todos em português, ou tinha algum na língua natal?
AM: Vários na língua natal. O edital permitia a inscrição oral. Foi uma briga com o Tribunal de Contas, que achava absurdo, e ganhamos a briga. Podiam escrever oralmente, uma coisa que repetimos agora aqui na Spcine com curta-metragem. As pessoas inscreviam sua ideia numa autogravação, e funcionou muito. É uma estratégia de quebrar o bloqueio que leva a dizer “o Estado não é para mim”, “eu não tenho direito a isso”, “isso é só para quem ganha”, aquele papo que todo mundo já pensou, e às vezes com razão, “esse dinheiro está carimbado lá para quem faz cinema”. A gente quebrou isso. Faz um vídeo, se a ideia é boa ela vai ser avaliada. E eram pouquíssimos projetos de museu, de memória. Tinha também, mas tinha muita coisa contemporânea, propondo mixagem, trabalho musical com relações mestiças, de índios com não-índios. Quebrou totalmente um paradigma, um preconceito que o Estado tinha. E abriu uma demanda absurda, e os indígenas até hoje se veem no Ministério da Cultura e querem que o MinC tenha uma política de cultura.
De certa maneira, quando Juca vem para cá, chamado pelo Haddad, e traz esse olhar de que as questões indígenas culturais têm que estar dentro do escopo da política, uma série de iniciativas passa a ser tomada. E a Aldeia SP vem com muita força para ser um espaço de relação com os indígenas, a partir de uma linguagem de ponta, que é o cinema. Muitos deles já falaram para a gente: a gente gosta da cultura de vocês, da cultura não-indígena brasileira, só que índio gosta de algumas coisas, outras a gente não quer. A gente não quer esse modelo de vida enlouquecido de vocês, essas máquinas todas. Agora, a gente gosta de computador, de câmera. Toda a parte legal eles querem. Ou seja, eles sabem o que é bom, o que não é sai fora, não interessa. O cinema é muito legal, está entre as coisas boas da nossa civilização, eles puxam para eles.
PAS: Uma dúvida: antes desse período todo, começando pelo Gil, já existia cinema de índio? Ou começou junto?
AM: Perfeito você perguntar isso, porque senão eu estaria sendo absolutamente omisso, ao não falar do trabalho muito interessante do Vídeo nas Aldeias, que inclusive está sendo comemorado agora na Bienal de São Paulo. É o trabalho que o Vincent Carelli fez nos últimos 30 anos, com várias etnias. Desenvolveu uma metodologia de aprendizagem do audiovisual, de trabalhar junto com os povos. Ele tem um trabalho desde os anos 1980 que é seminal no Brasil, respeitado por todos os povos. Ele era a nossa inspiração para transformar isso numa política. Não fomos nós, gestores, nem o Gil sozinho. Isso vem de uma história dos indígenas e de pessoas como Vincent Carelli, que desenvolveram um trabalho de baixo para cima, não de cima para baixo. O que o ministério fez naquela época foi reconhecer essas metodologias e tentar transformar em uma política pública para chegar a mais lugares, pontos de cultura. Então esse cinema existe há muito tempo, da época do videocassete, do VHS, e com a era digital ficou mais democratizado, com as câmeras digitais. Agora, com o celular, internet, Facebook, vira praticamente uma extensão da fala do indígena. Tenho alguns amigos no Facebook que moram em aldeia, você vê que eles postam toda hora depoimento, vídeo, são muito da linguagem audiovisual. Têm muita facilidade, para eles é mais fácil dominar o audiovisual que dominar o português. Eles já estão no digital, não precisam passar pela era analógica. Já vão direto para o que interessa. Tenho certeza que quando a realidade virtual virar uma coisa comum, no celular, eles vão nadar de braçada. Tudo que é virtual para eles é muito antigo. Estão pensando nisso muito antes que nós, que passamos pelo analógico e olhamos para o virtual com uma coisa futurista. Para eles, é o passado deles.
PAS: De todo modo, a Aldeia SP reflete um boom, um avanço na produção de cinema por parte dos indígenas, não?
AM: Tem um boom dessa produção, pelas políticas públicas que rolaram, pela democratização do acesso, pelas novas formas de luta desses povos. Ao mesmo tempo, tem um diagnóstico preocupante em função da não-renovação de certas políticas ou da não-continuidade de processos que começaram. Por exemplo, equipamento quebra na floresta, lá na fronteira com Roraima, onde só se chega de bimotor ou voadeira depois de tantos dias de viagem. Como isso é reposto? Quem repõe? Como esses realizadores audiovisuais vão continuar seu trabalho? Tem muita crítica, vai aparecer isso nos debates do evento. Como esses projetos podem continuar de forma que eles possam permanecer produzindo, e não produzir pontualmente? Ailton diz que muitos viraram cineastas, mas muitos produziram uma ou duas vezes e pararam, porque é muito difícil manter esses equipamentos, os fluxos de troca. Isso é um desafio. A gente espera que a bienal não só contribua para pensar e exibir os filmes, mas para ajudar a constituir políticas públicas, não só estaduais e municipais, mas nacionais. São pessoas que têm representação, vem gente da Amazônia, de vários lugares do Brasil, que têm lugar de fala nos conselhos nacionais e estão pleiteando políticas públicas que mantenham esse acesso.
PAS: Na Aldeia 1 não existia Spcine ainda?
AM: Só existia em forma de lei, mas não de estrutura.
PAS: Então foram para os CEUs com outra estrutura que não a que vai ser agora?
AM: Foram com DVD e projetor, e assim foi muito legal. É aquela história, a gente não tinha o equipamentão que tem hoje, mas quem queria fazia. Para a segunda edição, com a Spcine existindo e funcionando com 18 salas em operação, a gente tem uma Ferrari na mão. É um equipamento de ponta. Encontro cinéfilos, gente que saca mais de qualidade que eu, que dizem: “Vocês estão com um equipamento que outras salas que têm fama boa não têm”. Os filmes indígenas vão poder ser vistos na sua pureza, com a sua força de imagem e de som. Acho que vão impactar bastante, porque é uma janela mesmo para uma outra vida. Estamos felizes que isso circule, que não fique restrito a uma elite cultural da cidade que de certa maneira já tem acesso – neste momento estamos tendo a Bienal de São Paulo, com uma homenagem ao Vídeo nas Aldeias, e uma mostra no Sesc.
PAS: Eu ia perguntar isso, por que tanto índio de repente na cidade de São Paulo?
AM: Acho que não é por acaso. Os pajés vão ter que contar essa história para gente, está rolando.
PAS: Outro dia perguntei pro Ailton o que ele estava achando do golpe, ele falou “golpe a gente sofre desde 1500, não teve nenhuma novidade neste”.
AM: Eles sabem mais desse assunto do que nós. Eles vão tirar a gente da deprê. Golpe? Que golpe? É mais um, cara. Eles têm uma reserva de conhecimento do Brasil que a gente não tem e que para nós é muito importante. Não é só que a gente está ajudando eles, é uma dupla mão, eles vão trazer muito conhecimento para cá, como trazem permanentemente. Quem for nesse evento vai poder usufruir de um bate-papo de muita importância neste momento difícil que a gente está vivendo no Brasil, de qual é a expectativa de Brasil. Eles têm muito a dar esses toques na gente, na real, nesse tom meio épico deles: calma, não vai acabar agora, não vamos desesperar, golpe já tem há 500 anos, é mais um, vocês acham que não ia ter mais um?
PAS: Golpista por golpista, eles acham que Dilma era, que Lula era, que todo mundo é…
AM: A gente tem que ser franco, o governo Dilma não foi bom para os indígenas. No governo Fernando Henrique tinha a Ruth Cardoso, que tinha um olhar. Eles têm uma relação sempre tática com esses governos, foram duríssimos com o governo Dilma. A gente vai ter que lidar com isto, a esquerda não lidou bem com esse tema. O MinC foi uma ilha. Haddad aqui lidou melhor, ajudou a demarcar as terras dos Guarani, foi atrás, mexeu um pouquinho mais, mas ainda longe de satisfatório. Avançou mais em outras pautas do que nessa. Todas as famílias políticas têm uma dificuldade. É claro que o PT na sua história está mais ligado à luta por direitos, tem mais abertura, mas os indígenas são muito críticos às grandes obras, como Belo Monte e como Tapajós, que iam fazer agora e ia ser um desastre. Temer parou Tapajós, não porque gosta de índio, mas porque acho que acabou a grana, a Lava-Jato está em cima. Mas, seja o que vier daqui para frente, essa temática tem que estar no centro, porque ou a gente vai ser uma sociedade uniforme que vai atropelar e massacrar toda a diversidade, uniformizando uma visão consumista totalmente esgotada, ou a gente vai se abrir para esses processos todos que aqui no Brasil são fortíssimos. Não é só dos indígenas, é das religiões afrobrasileiras, de ciganos, das novas modalidades. É uma discussão política das mais importantes para qualquer futuro possível. É até anterior à política, é pré-política, da própria civilização: que tipo de vida a gente quer aqui neste lugar. Nossa democracia é meio formal, é voto, não lida muito bem com essas questões, tende a uniformizar. A Aldeia SP é um evento pequeno, modesto, mas acho que neste momento ele pode dar uma boa contribuição. E os filmes vão ter ainda mais força, porque ficam de um outro jeito, vão para além da retórica, são as provocações que vão mexer com as pessoas, quebrar preconceitos.
PAS: Nem começou a segunda Aldeia ainda, mas, com o cenário político posto hoje, teremos Aldeia 3?
AM: Espero que sim. O prefeito Haddad colocou bem na fala dele que quer dar um toque republicano à transição. Espero que esse gesto dele desarme um processo de polarização que está posto e vem da eleição, para que os dois lados tenham uma visão maior. Quero crer que sim, a orientação que o prefeito nos deu é de apostar que as políticas públicas podem obviamente ter orientação diferente, mas que as coisas estruturantes fiquem. Minha opinião é que isso é estruturante. Essa questão da diversidade em São Paulo é uma questão de direitos humanos, sociais. Não é uma questão de partido, pelo menos não deveria ser. De nossa parte, vamos fazer o possível para que esse conhecimento possa estar presente na nova administração e possa ser compreendido, apropriado. Tem que ver com a sociedade, como a sociedade acompanha e fiscaliza, mas a nossa parte é torcer para que sim. Vamos torcer, e ficar atentos.
(Este texto integra a cobertura da Aldeia SP, em parceria de FAROFAFÁ com a Bienal de Cinema Indígena.)
Nunca a expressão “programa de índio” teve um significado tão forte