ELA está morando sozinha num condomínio um pouco histórico, um pouco deteriorado, chamado Aquarius. Um empreendedor imobiliário voraz sonha em destruir o velho condomínio com vista para o mar do Recife à base de dinamite, de machadadas, mas sabe que no mundo moderno o uso da força bruta nem sempre pega bem. ELA é o empecilho que atravanca o progresso da força bruta e da força branda.
ELA passa a ser assediada brandamente, passivo-agressivamente, pelo som ao redor que quer transformar a saudosa maloca, maloca querida, em tower of power. O mundo de alta prevalência masculina que a cerca passa a demonstrar de modo crescentemente violento (embora quase nunca explícito) que o projeto de continuidade da vida como ela era não tem futuro.
As forças quase 100% masculinas que sustentam os alicerces do prédio começam a minar as estruturas silenciosamente, de dentro para fora. A árvore chamada edifício vai pouco a pouco se infestando de parasitas. Pouco a pouco, à medida que o edifício é corroído de dentro para fora, os nervos da quase velha senhora vão sendo postos em frangalhos.
A quase velha senhora é uma jornalista e escritora pequeno-burguesa que se chama Clara, apesar de ser ~acusada~ pelo jovem empreendedor formado em ~bizness~ nos Estados Unidos de ter a pele ~escura~ demais para ser digna de ocupar feito abelha-rainha soberana o condomínio que se almeja implodir. Ela, Clara, ganha cor, luz, formas, som e fúria na figura da atriz Sonia Braga, paranaense nascida em Maringá, também terra natal do juiz justiceiro Sérgio Moro (que não tem nada a ver com este filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho, o mesmo diretor do rumorejante filme O Som ao Redor, de 2012).
O assédio acontece por todos os flancos, majoritariamente o moral. O jovem construtor é interpretado por Humberto Carrão, galã de novelas revelado pela Rede Globo, assim como foi nos anos 1970 a própria Sonia. Chamado Diego ou Diogo, o doce personagem primeiro testa a trilha da ~imoralidade~, via sexo e escatologia (assalto sexual?, corrupção?). Não funciona. A mulher solitária resiste.
Ele tenta a solução da moralidade cristã: cunha uma igreja evangélica no coração do edifício, povoa o habitat de fervor, atravanca a garagem da solitária com carrões de fiéis religiosos empenhados em servir a Deus e à justiça. Não funciona. A mulher resiste, isolada, temendo, mas sem temer.
Ele apela para a tática black bloc: toca o terror, queima colchões no quintal. Não funciona. A mulher resiste e caminha descalça pelas praias da Boa Viagem e do Pina, rumo à favela de Brasília Teimosa.
Ele (o diretor do filme) brinca à farta com os símbolos disponíveis da casa grande à senzala, com morada preferencial nas tribos indígenas de caetés e outros povos originais. O filme se abre (e se fecha) ao som de “Hoje” (1969), canção de protesto romântico do índio brasileiro nascido uruguaio Taiguara.
De cabelos longos, lisos e negros como as noites que não têm luar, a índia paraná-paraguaya Clara-Sonia-Gabriela dança a bondade passivo-agressiva da canção romântica “O Quintal do Vizinho” (1975): “Sonhei que entrei no quintal do vizinho e plantei uma flor/ no dia seguinte ele estava sorrindo, dizendo que a primavera chegou”. Quem canta é Roberto Carlos, capixaba que, como o gaúcho Getulio Vargas, nasceu em 19 de abril, dia do índio.
(Atenção ao dobrar uma esquina, atenção, menina: revelações apimentadas relacionadas a Sonia Braga teriam sido um dos supostos motivos do “rei” para exigir a proibição judicial da biografia Roberto Carlos em Detalhes, quase-publicada em 2004 pelo historiador baiano Paulo Cesar de Araújo.)
Embora tratada com franca simpatia pela trama, Clara é personagem burguesa de classe média alta disposta ao ~egoísmo~ de morar sozinha num edifício condenado e até a operar uma chantagenzinha aqui e outra ali. Mesmo dona de cinco imóveis e do apartamento de costas para o morro valorado pela ambiciosa construtora em R$ 2 milhões, ELA é uma espécie de quase sem-teto, quase sem-terra, candidata a índia cigana nômade exilada desterrada: ocupe Estelita, se conseguir fazer frente aos tubarões machos que a pretendem sangrar e devorar.
Sobretudo, Clara é SONIA BRAGA. Sua presença em Aquarius reescreve não só a trajetória da própria atriz como a história de todo o cinema brasileiro. Não deve ser grande o rol de atores e atrizes que podem empunhar em público uma linha cronológica como a dELA, que parte da nudez jovial, empreendedora imobiliária, de filmes de Bruno Barreto e Arnaldo Jabor, e vem desaguar, esplendorosa, na nudez madura e sem freios morais do filme de Kleber Mendonça Filho. Inteira, a Sonia que brilha nua em Aquarius é o que não tem vergonha nem nunca terá, o que não tem governo nem nunca terá, o que não tem juízo.
ELA à parte, ele (Kleber, o diretor) é jornalista e crítico cinematográfico antes de ser cineasta, e talvez por isso saiba brincar como ninguém com os signos do jornalismo e de sua suposta decadência. Além de índia pseudo-sem-terra, sua Clara é uma sem-MP3, uma ex-leitora de jornais que tomou asco pela antiga matéria-prima, uma ex-rata de redação que sabe como cavar informações ~constrangedoras~ sobre ~inimigos~ quando isso se faz ~necessário~.
O modo iconoclasta como Kleber se refere ao exercício do jornalismo (e de outras profissões ~amigas~ do poder) talvez ajude a explicar a relação de amor e ódio que a mídia brasileira tem desenvolvido com seu Aquarius. Talvez haja bem mais entre o filme e seus potenciais espectadores, admiradores, críticos e censores do que faz supor a mera cena de vida real de um protesto político de atrizes e atores ~subdesenvolvidos~ no mundialmente cobiçado Festival de Cannes.
Talvez as razões para os gritos de “fora Temer” que têm explodido ao final de diversas de suas sessões país afora estejam encapsuladas dentro do próprio filme, e não em nada que ocupe tapetes vermelhos e esteja alheio ou exterior a ele.
Quem sabe Aquarius seja um filme exemplar da tal era de aquário de que tanto falavam os velhos hippies?
Sentei atrás de você na sessão do Itaú Cultural, comentei com meu companheiro, ele não tinha a menor ideia de quem se tratava. Ao fim da sessão, a senhorinha japonesa que estava na primeira fileira e puxou o coro “fora temer” me fez ficar emocionado. Ele era tão mais jovem do que eu. Chorei e ainda choro lembrando.
Hahahah, Stalker Acidental, tenho testemunhas então… Você viu o cara que tava à minha direita, que saiu da sala na hora de alguma cena mais “forte” (não consigo lembrar qual) e fugiu correndo na hora do “fora Temer”? 3-)
A senhorinha japonesa é a que estava com um bottom “fora Temer”?
Ainda não assisti ao filme e não sei se irei fazê-lo. A reputação do filme fica bastante comprometida pelo fato de seus integrantes (atores e diretores) acharem que a destituição de uma presidente que violou fragorosamente a Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo governo foi um dos mais corruptos da história brasileira, que engendrou a maior crise econômica de todos os tempos, ajudou a quase destruir a Petrobras, tem culpa pela demissão de milhões de trabalhadores e praticou outras mazelas é golpe de Estado. Vale lembrar que o impeachment é um procedimento jurídico e político. Assim, o impeachment da Dilma foi legal e legítimo.
Não vi e não gostei é um ouriço, Jorge Alberto. Ainda mais quando a gente usa um filme que não viu para provar um golpe que jura não existir. Cáspita.
Pena que o principal atrativo do filme – a luta contra o golpe – tem atraído poucas pessoas aos cinemas. Ontem assisti ao filme e na sessão havia em torno de 15 pessoas.
Texto incrivel.
parabens!
Obrigado, Daniel. 🙂
Texto bem pertinente e até profético,com a história de alguém do poder querendo construir (e não demolir) um edifício em área tombada.