Roda viva outra vez

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“Em 1967, os militares pararam Roda Viva. Hoje, os petistas pararam Roda Viva.” O diretor de musicais Cláudio Botelho cuspiu a comparação com o grau de ódio que caracteriza estes dias. Na cusparada, equiparou o governo militar golpista de 1968 ao partido depauperado que peleja para não ser golpeado em 2016.

Além de não compreender essa prosaica distinção, esqueceu-se de que petista, também, era o dono da voz da voz do dono, o autor de todas as músicas da encenação, Chico Buarque, aquele que pela grandeza da obra que criou vem garantindo ao Botelho a cesta de pão e o cálice de vinho. Chico reagiu rápido e, pumba!, doravante o filho ingrato não mais poderá lhe mamar nas tetas sagradas.

A dramaturgia do golpe de 2016 é ruim, tosca, mal-ajambrada, inverossímil nos detalhes e fora-da-lei no macrocomportamento. É desacosturada a tal ponto que a metáfora potente a que a arte sempre se presta vem acontecer, desta vez, numa encenação de musical supostamente brasilianista, mas de imitação de Broadway ou Hollywood.

Enquanto o Botelho dá de sinhozinho de engenho no bastidor da própria peça (de resto pouco comentada), Zé Celso Martinez Corrêa, o encenador da Roda Viva original, é anunciado presente lado a lado com Luiz Inácio Lula da Silva, na manifestação antigolpista da sexta-feira 18 de março, na avenida Paulista.

Bem ou mal (e rusgas à parte), Zé Celso e Chico e Caetano Veloso (é só conferir manifestações recentes desse último) continuam do mesmo lado em que estavam 48 anos atrás: o lado das liberdades, da legalidade, do estado democrático de direito. No outro front está o Botelho, os botelhos, ao afirmar que um ator em cena é “um rei” que não pode ser desafiado por um “negro” (referindo-se ao homem digno e altivo que puxou o “não vai ter golpe” na plateia de Belo Horizonte).

Mais jovem que nossos decanos da cultura, o Botelho não representa aqui a si próprio, mas antes o passado, a elite branca inculta e violenta que não consegue compreender nem formular metáforas, a violência simbólica, o racismo malcontido, a misoginia espirrada histericamente, o assassino amanhã do velhote reacionário que morreu ontem, o velhote golpista em pessoa.

Auto-arvorado a “dono” (de escravas e escravas brancas e negros inclusive), o Botelho representa em seu corpo doído o velhote em pessoa, o velhote autoritário e antidemocrático chamado Organizações Globo, Fiesp, Rede Folha de São Paulo, Anarquia Abril etc.

A sangria está desatada. O censurado de 1968 censura o censor das liberdades e direitos de igualdade de 2016. Por meio de gravação clandestina o ex-censurado fica sabendo da diarreia verbal do encenador de petiscos que, ironia grossa, odeia petistas. Será o Benedito que não só a presidentA da República em pessoa, mas também o Botelho foi grampeado pelo juiz justiceiro de Gotham City, Paraná (PIG-USA)?

Provavelmente não. Alguém que estava no camarim deve ter gravado a verborreia valentemente contemporizada por uma suposta funcionária do diretor (Soraya Ravenle, pelo que diz o boatório). Se estava no camarim, devia privar da intimidade do diretor (e divergir dos absurdos que ele falava).

Ela, a artista à mercê do “dono”, mostrou na preciosa atitude de resistência que um patrão autocrático não compensa a dignidade, a liberdade e a alma de uma funcionária. Ela, a pessoa que “vazou” o ataque, mostrou que qualquer um que estiver presente pode, por exemplo, gravar e espalhar uma fala em que um William Bonner mande seus cães de guarda pegar um Lula.

Não, não foi um grampo de juiz justiceiro o que o Botelho sofreu, embora reflita, sim, o estado de anomia em que ameaçamos nos internar. Uma sociedade que assiste passivamente ao grampeamento da presidência da República se esquece, de fato, das garantias mais elementares de liberdade individual.

Como a própria presidentA Dilma Rousseff acabou de advertir, o episódio da falsa Roda Viva encena uma situação em que a palavra de ninguém vale mais nada (se grampeiam/grampeamos a presidentA, quem não vão/vamos grampear?).

A Rede Globo Golpe de Televisão já vem há dias enunciando o mesmo que o Botelho viveu agora na carne: nós podemos, apenas porque queremos, estuprar os mais elementares direitos individuais e coletivos. Podemos grampear. Podemos censurar. Podemos derrubar gente na rua apenas porque queremos. Podemos tirar (e colocar) se acharmos melhor.

Mas não, senhores estupradores, nós não podemos. Não pode o Botelho, não pode o Chico, não pode a Dilma, não pode o Lula, não podem as ratazanas golpistas, não podem os inimigos ocultos do Brasil, não podemos nós. Ninguém pode.

Se você está feliz porque o juiz justiceiro Zorro do Paraná grampeou a Dilma, amanhã o grampeado pode ser você (como o Botelho já aprendeu).

Se você está contente porque o herói Chico usou de suas prerrogativas neoliberais para impedir a peça do Botelho de seguir adiante, amanhã o impedido de trabalhar pode ser você.

Se você está satisfeita porque hoje o Lula está ameaçado de prisão apenas porque os inimigos dele assim o querem querem, a jaula de amanhã pode estar reservada para ser sua.

Se você está radiante porque podem derrubar a presidentA contra a qual você nutre fobia irracional, o presidente deposto de amanhã pode ser aquele de que você escolheu como representante da sua identidade particular.

Se tudo mais nos desune nesses momentos dramáticos em que a anomia parece querer ser lei, aquilo que nos une a tod@s ainda existe e é o que vai acima. Se a coesão se quebrar, a roda viva vem outra vez e carrega o nosso destino para lá – para Cuba, para Guantánamo, para a Broadway, para a Sibéria, para qualquer lugar desses que você e eu nunca gostaríamos de conhecer pessoalmente.

 

 

 

 

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2 COMENTÁRIOS

  1. Se as canções são do Chico (e sobre elas ele possui direito autoral, nas modalidades moral e patrimonial) e ainda por cima a montagem usa seu nome no título (direito de imagem), ele tem todo o direito de proibi-la a qualquer momento, mesmo que não tivesse havido o episódio relatado pelo artigo. As leis em vigor lhe garantem isto. .

  2. Eu concordo com quase tudo a exceção de que o Chico Buarque não deveria suspender o direito de usar a sua obra. Certamente no texto original não havia referencia ao “será que ex-presidente já foi preso” e que a “presidente ladra espera o impeachment”. Isso foi público. Deplorável foi o vazamento da discussão no camarim, mostrando uma pessoa desarvorada, que certamente pensaria mil vezes antes de repetir isso em público, acho…

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