A boate se chama Peace & Love, estamos no sábado, 12 de setembro, e nos preparamos para festejar o ano novo etíope no campo de refugiados New Jungle, em Calais, na França. Fomos levados para a discoteca construída com galhos de madeira, plásticos e fita crepe pelas mãos de um afegão de codinomes variados – ele é Ibrahim, que pode se transformar em Rachid, de acordo com o interlocutor.
Nós somos três jornalistas brasileiros que campeamos juntos, reunidos pelo acaso profissional e pela vontade de descobrir esta cidadela de refugiados de população flutuante (cerca de 3,2 mil pessoas), cuja contabilidade segue a simplíssima progressão aritmética do manual de sobrevivência na selva: quanto maior a quilometragem das cercas de arame farpado e a violência das polícias de fronteira, maior a concentração de grupos de migrantes de etnias, raças e nacionalidades diferentes no refúgio.
Quem explica é François Guennoc, um dos coordenadores da ONG Auberge des Migrants (Albergue dos Migrantes), com quem entrei em contato quando comecei a planejar meu encontro com esse enorme desconhecido que é o Outro, que são os Outros todos, esses continentes que nunca visitei, essas línguas de prosódia fascinante e, por que não assumir?, muitas vezes assustadora. Mas não o Outro europeu, ocidental, de Voltaire & iluminismos, mas o Outro das grutas de Kabul, das ruínas de Aleppo, esse Outro que boia, morto, no azul mediterrâneo.
Desse inferno que é o Outro (saravá, velho Sartre!), nós também fazemos parte, elétrons livres que somos: Marília é jornalista carioca de Bangu, que, entre outras coisas, hoje faz doutorado sobre imigração e mora em Bruxelas; Sandro é jornalista carioca de Campo Grande, que hoje mora em Moscou e, entre outras coisas, viaja como Mercúrio (aquele deus de asinhas nos pés) cobrindo conflitos no mundo inteiro; eu sou Márcia, jornalista de Belo Horizonte, dez anos mais velha que meus companheiros brasileiros de Jungle, que, entre outras coisas, fecho a cara para fingir que não estou emocionada enquanto manquitolo (tornozelo recém-operado) pelos 18 hectares (algo equivalente a 18 campos de futebol) da New Jungle, nessa cidade do extremo norte da França, última parada antes do Canal da Mancha, do Eurotúnel, da balsa, do Reino Unido.
Na favela da New Jungle, 25% dos refugiados que sonham chegar à Inglaterra vêm da península do nordeste africano que mira o Oceano Índico: Eritreia, Etiopia, Somalia; 35% vêm do Sudão e de outras ex-colônias britânicas como Gana e Nigéria; 30% são asiáticos afegãos, paquistaneses, iranianos, iraquianos e curdos. A imigração síria, que antes era relativamente pequena, cresce todos os dias.
A Nova Selva é uma espécie de versão em miniatura do planeta Terra: os refugiados tendem a se organizar em comunidades-nações, estruturadas por origens-religiões. Os únicos cristãos são os ortodoxos da península do nordeste africano, relata François Guennoc em seu blog no site frances Mediapart. A maioria fala inglês, e a língua define em grande medida para onde se quer migrar. Mas, na verdade, estão todos torcendo o nariz para a França, porque aqui eles já sabem: não há empregos.
A boate se chama Peace & Love, estamos no sábado, 12 de setembro, e nossa Mata Hari afegã – o Ibrahim, o Rachid (o Mohammed, talvez?) – me explica, enquanto me passa o narguilé (cujo vapor aspiro morrendo de medo de ter haxixe dentro, o primeiro narguilé os medrosos nunca esquecem) a diferença entre talibãs e Daech, os integristas radicais do Estado Islâmico que ele odeia: “Os talibãs são locais, como nós. Não atacam as mulheres. Respeitam”.
Com a mesma euforia quase adolescente, Ibrahim-Rachid-Mohammed defende Putin: “Ele fala a verdade. Fala mesmo. Ele fala como um bonhomme” (um homem médio, comum, em francês). Ibrahim-Rachid-Mohammed conversa em bom francês e mesmo num inglês inteligível. Ibrahim-Rachid-Mohammed mora na região há sete anos, viveu três prisões pela policia europeia e faz parte da população “flutuante-estável” da Nova Selva, essas pessoas que percebemos que já se misturaram tanto à condição fronteiriça, ao estado da margem, ao fora-da-lei, até esse fora-da-lei ter se tornado seu novo habitat, que temem deixar.
O narguilé não tem haxixe dentro, mas uma erva que rescende suave a tempero. Ibrahim-Rachid-Mohammed, o refugiado que se tornou um local da Nova Selva, não é agressivo, não provoca e, antes de nos levar para a incrível boate Peace & Love, convida-nos a comer um prato típico afegão no bar Chicken & Soup (com legenda em árabe) e não deixa nenhum de nós pagar.
O prato, uma espécie de fritura de frango, com um molho delicioso ultra-apimentado, nos é servido em pratos plásticos pelo cozinheiro afegão, um menino franzino e moreno de incríveis olhos azuis que se recusa a falar francês e nos dá as costas quando esquecemos o código e dizemos “merci”. “Ele odeia a França e os franceses”, explica Ibrahim. “Falem em inglês”. Thank you, guy.
A droga não é droga, o suposto agressor não é agressivo. Nada é o que parece, e a New Jungle acontece para explodir todos os nossos códigos, sejam eles quais forem. Tudo é “devenir”, dizia o incrível Deleuze. Tudo está se tornando. Nada é.
A boate se chama Peace & Love, estamos no sábado, 12 de setembro, os alto-falantes funcionam a partir de barulhentos geradores de energia externos e tocam Bob Marley ou Bobby McFerrin (“don’t worry, be happy”). Na segunda rodada de cerveja (Ibrahim pagou a primeira, quisemos retribuir) eu me lembro comovida de Ilyas, ou Elias, jovem etíope de 21 anos, estudante de direito, refugiado político de seu país, cuja família se reuniu inteira para pagar a viagem. “Escolhi a Inglaterra por uma questão simples, é a língua (estrangeira) que eu conheço. Quero retomar meus estudos de direito lá, é para isso que eu trabalho”, explica Elias (versão cristã), aliás Ilyas (versão muçulmana, como ele também explica), num inglês quase perfeito.
O trabalho de Ilyas é como o de Sísifo, o mito grego que rolava pedras sem parar até o alto de uma montanha: de quando em vez ele se reúne com um grupo de compatriotas e se dirige até o Eurotúnel, para tentar passar para a terra da rainha. Entre mortos e feridos, cada vez que eles não conseguem ou que as provisões acabam, cada vez que as pedras descem rolando de volta da montanha de Sísifo, o grupo retorna à Nova Selva, para descansar e planejar a próxima invasão.
A viagem que a família pagou custou caro: Etiópia, Sudão, Líbia, Egito, uma travessia de 17 dias num barco para Catânia, na Sicília, Itália, pelo qual ele desembolsou a bagatela de 2.500 dólares. Apenas do Sudão para o Egito, ele já havia desembolsado 900 doláres.
O que me comove em Ilyas não é essa espécie de romantismo mórbido, cheio de complacência pelo estado de calamidade. Nada disso me fascina. O que me tira do sério é a maneira como o doce e franzino Elias manipula um velho baralho de cartas enquanto fala: rei de copas, rainha de copas, três de copas. E a maneira sutil como ele gagueja no início de algumas respostas, gagueira não de hesitação, mas emocional mesmo, da palavra que não sai.
Peço para Ilyas e seus amigos cantarem uma canção etíope de que eles gostem para FAROFAFÁ. Insisto. Ninguém quer ser fotografado nem filmado na Selva. A doçura de Elias cede. Ele procura uma canção no seu smartphone Samsung, para servir de playback. Dessa vez ninguém gagueja.
E a tenda de Elias no quarteirão etíope da New Jungle sacode um pouquinho com aqueles meninos cantando supertímidos numa prosódia longínqua uma canção que fala sobre alguma coisa que eu desconheço.
Estamos no 12 de setembro, ano novo etíope, para o qual somos efusivamente convidados; “faremos uma grande fogueira, venham”.
A boate se chama Peace & Love, estamos no sábado, 12 de setembro, e eu ainda não encontrei nenhuma mulher que queira conversar comigo. Estou irritada, porque a História é sempre contada pelos homens e eu gostaria que as mulheres pudessem escrever suas Histórias da Selva. Meninas, um pouco de protagonismo, pode ser?
A linda garota de turbante que veio gritando “sister!” e me levou até a tenda do Elias desapareceu como apareceu: do absolutamente nada. Saindo da tenda, encontro a etíope Yusra Edo, 20 anos, que cozinha numa pequena fogueira no chão uma macarronada. Ela sorri um bocado, arranha um pouco o inglês, mas se recusa veementemente a ser fotografada (só de costas) ou a conversar comigo. Sei apenas que ela veio acompanhando o marido.
François Guennoc já havia me explicado que a maioria delas fica no “campo de mulheres” Jules Ferry, a uma boa caminhada da entrada da New Jungle. Consegui finalmente autorização para entrar no Jules Ferry no domingo, 13 de setembro. É o único local onde, invertendo a lógica do fora-da-selva, os refugiados circulam livremente e nós, jornalistas, estrangeiros, curiosos ou mesmo desejosos de ajudar somos absolutamente controlados. Ninguém entra.
Lá dentro, 115 mulheres dormem e podem tomar banho e ficar com suas crianças tranquilamente. Outras 85 estão na lista de espera para entrar. São 500 tomadas para carregar celular, 60 duchas, uma enfermeira disponível para homens e mulheres e 2.600 refeições distribuídas por dia para toda a New Jungle. Ao contrário do que eu imaginava, as mulheres são todas muito jovens, a grande maioria estudantes e, pasme, vieram sozinhas, viajaram sozinhas, fugiram sozinhas. Sem pai, sem marido, sem irmão. Elas vieram. Todas da África: Eritreia, Etiópia e Sudão. E não têm a mínima vontade de falar sobre isso.
Eu capitulo, porque não posso pretender sequer imaginar o que seja estar na pele delas.
O medo de ser fotografado ou midiatizado de alguma forma é amplamente compartilhado pelo “bairro” sírio, majoritariamente composto por homens de classe média ou média alta, fugindo da guerra. Os sírios não viajam com a família e podem ter uma reação extremamente agressiva se desconfiam de um celular (como o meu) apontando para suas tendas.
Mas eu sou uma jornalista sortuda e dou de cara com Moayad, engenheiro civil de 28 anos, recém-chegado a Calais. Com o olhar ainda perplexo dos novatos, ele se dispõe a conversar comigo, não sem antes me “entrevistar” durante uma boa meia hora sobre o Brasil, no qual parece estar muito interessado. Respondo, tentando não perder a concentração com o cansaço e o frio (sim, faz muito frio em Calais). A epopeia de Moayad merece ser contada em verso e prosa, é a epopeia de um povo, é quase uma lenda, é parte decisiva da nossa lenda civilizatória contemporânea.
Muçulmano, ele vem da cidade de Dier al-Zoor, no leste da Síria, invadida pelo Estado Islâmico, do qual ele foge. Para escapar, teve que deixar a barba crescer e o passaporte em casa: “Homens sem barba ou que carregam passaportes são imediatamente capturados e punidos pelas forças do ISIS (sigla em inglês para o Estado Islâmico)”, conta.
“Sou um homem de sorte”, diz Moayad, que cruzou a pé a fronteira turca e pagou 1.250 dólares para poder pegar um bote abarrotado de gente que o deixou na Ilha de Koos, na Grécia. “O barco que partiu antes de nós afundou. Algumas pessoas voltaram nadando para a praia, na Turquia. Outras subiram no nosso bote”, conta.
O preço destas travessias é variável, de acordo com o “passador” que negocia a “viagem”. “Paguei 1.250 dólares, mas muitas outras pessoas pagaram 1.300 euros cada”, ele faz questão de frisar. Na Ilha de Koos, onde ficou nove dias, Moayad teve que ser registrado, como determina a lei europeia para refugiados: todos devem preencher a papelada no país onde chegam. Na ilha grega, com ele, outros 1.500 sírios, assim como migrantes do Afeganistão, de Mali, do Paquistão e do Iraque.
Levados para Atenas, foram até a Macedônia e pegaram um trem da Cruz Vermelha até a fronteira com a Sérvia. Caminharam cerca de seis quilômetros na estrada de ferro e pagaram um táxi (250 euros) até a rodoviária, onde pegaram um ônibus para Belgrade, a capital sérvia. “País estranho”, afirma Moayad. A partir daí, começou a parte mais perigosa da travessia: atravessar a Hungria e tentar chegar à Áustria. Na Hungria, o pânico de serem “carimbados” pela polícia húngara, o que os levaria direto para uma espécie de campo de onde todos temem nunca mais sair.
Conseguiram escapar da polícia em Budapeste e chegaram à fronteira com a Áustria, onde subiram em um outro trem de refugiados para Viena. De Viena, um trem “normal” para Paris. “Fiquei andando pelas ruas de Paris. País legal”, solta Moayad, entre um detalhe e outro. De Paris, Calais. Moayad perdeu três botas durante a longa travessia, que se abriram completamente por causa da caminhada, e me mostra com alegria o tênis azul recém-adquirido na França.
Moayad me defendeu de um compatriota sírio que veio gritando quando me viu com o celular, tentando fazer uma geral do acampamento. Moayad subiu o tom e tranquilizou o homem, que me disse: “Não queremos que nossas famílias nos vejam assim, elas nos veem na internet e ficam preocupadas“.
No meio do nada, as usual na New Jungle, surge Toby, um inglês de 30 anos, em cima de uma bicicleta, com uma pá nas costas. Veio cavar uma fossa para dejetos no meio das tendas sírias, as bochechas e o nariz torrados de sol. Moayad me chama de lado e diz: “Esse homem é muito bom. Salvou ontem aqueles dois lá, que estavam morrendo de fome”. Entre uma ida e uma volta da bicicleta, Toby me explica que é professor de um jardim de infância em Londres. “Vim para ajudar, não para conversar”, e parte veloz na sua bicicleta maluca dobrável cheia de utensílios. Ah, e “no photos, please”.
A boate se chama Peace & Love, faz 14 anos e 1 dia que a Al-Qaida de Bin Laden comandou (com o conhecimento passivo e estratégico da alta cúpula dos Estados Unidos, dizem as más línguas) o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, e o Árabe is The New Black. Continua sendo. Sobretudo na França. Quando alguma coisa é considerada malfeita por aqui, escuto alguns franceses dizerem: “C’est des arabes” – “coisa de árabe”, como diríamos “tranquilamente” a frase “coisa de preto” no Brasil.
A boate se chama Peace & Love, fumo um narguilé que rescende a ervas frescas e ainda há pouco a excelente escritora senegalesa Fatou Diome, negra “como as asas da graúna”, disse num programa francês de televisão (aqui, com legendas em português) , face a um debatedor branco de extrema-direita:
“O senhor, vejo que o senhor está bem vestido, bem alimentado. (…) Se o senhor estivesse morrendo de fome em algum lugar, talvez sua família ficasse feliz de saber que o senhor poderia ir ganhar dinheiro em outro lugar, para ajudar a alimentar os outros que ficaram. (…) Não [cortando o branco que queria opinar], o senhor vai me deixar terminar… (…) Seu país está ficando esquizofrênico. Vocês não podem querer selecionar pessoas desse jeito: estrangeiros úteis e maus estrangeiros.”.
A boate se chama Peace & Love, e a Alemanha de Angela Merkel deu um baile de inteligência estratégica na França, ao conseguir reverter sua imagem de Lobo Mau da Grécia e da Espanha e abrir suas portas para os refugiados. Angela tira selfies com os refugiados enfrentando os gritos de neonazis em Dusseldorf. Na França, o prefeito de Béziers, do partido Frente Nacional, representante máximo da extrema-direita francesa, parte à caça de imigrantes sírios acampados no meio do mato, vestindo uma faixa “Bleu, Blanc, Rouge”, a faixa da República nacional, cercado de policiais da Gendarmerie e cães farejadores.
Uma cena da novela O Bem-Amado, com as três irmãs Cajazeiras de Sucupira espiando atrás, a França ensinando a ser odiada em todas as cores, em cadeia nacional de televisão. A boate se chama Peace & Love, e ontem a Hungria terminou a construção da cerca de arame farpado, de três metros de altura, na fronteira com a Sérvia, bloqueando todo o chamado Corredor dos Balcãs para os refugiados, antes de começar a repressão, conforme noticiado pela agência Reuters.
A boate se chama… Como é que ela se chama mesmo?
A boate se chama Peace & Love, eu não me lembro mais em que dia estamos, mas converso com feridos entre as várias pessoas de muletas que tentaram atravessar o túnel, o canal, e não conseguiram. Numa virada, abordo dois caras bonitões, jeans e jaquetas com capuz: Azar, 23 anos, e Dlzar, 26 anos, iraquianos, ambos estudantes de engenharia.
Azar fala um inglês praticamente sem sotaque. Por que você fala esse inglês perfeito?, quero saber. “Uma longa história”, me responde Azar. Você deixou irmãos no Iraque? Silêncio. “Eu tinha. Uma irmã.” Silêncio. Ela foi assassinada?, pergunto eu, a jornalista-mala brasileira estupefata. “Sim.” Estado Islâmico? “Sim. Na rua.”
Azar e Dlzar vêm da cidade de Musl, recém-tomada pelas forças do Daech. “O Estado Islâmico rouba os tanques do exército iraquiano. E de onde você acha que vêm os tanques do Exército iraquiano? Dos Estados Unidos, claro. Eles são indestrutíveis, tanques muito mais fortes do que os outros. Os curdos tentam resistir, os peshmergas, mas nunca dura muito tempo”, explica Azar com seu inglês perfeito.
Na hora de me despedir, minha pseudocara de brava se desmancha em muitas, muitas lágrimas, quando digo para Azar, olha, talvez nos vejamos ainda por aí, e ele mesmo responde: “Não. A gente se vê, mas é do outro lado”. Azar me dá um meio abraço encabulado, nem ele nem eu sabemos o que fazer com o meu choro, onde colocar o choro entre a New Jungle e o mundo, entre este espaço de calamidade e a possibilidade de uma espécie de Disneylândia que é simplesmente estar fora deste espaço de calamidade.
O que me emociona é o reconhecimento deste portal que parece existir, como se Azar e eu habitássemos ficções científicas diferentes, onde eu tenho um documento que me deixa ir, vir, viver e morrer como eu quero, e onde ele teve que deixar o passaporte em casa e circula sem nenhuma identificação ou escolha de ir, vir, viver e morrer como ele quiser. Estamos no mesmo espaço-tempo, Azar, Dlzar, e eu, mas uma espécie de portal nos separa.
No ritmo desta balada, eu me deixo perder nas avenidas, ruas e ruelas da New Jungle. Não tenho mais nenhum medo. Peço para sentar na porta da mesquita. Existem seis mesquitas no campo, e uma grande e impressionante igreja cristã, a Notre Dame da New Jungle, a Nossa Senhora da Nova Selva, tudo construído com plástico, fita crepe e galho de ávore/madeira.
Tem biblioteca. Tem tendas dos médicos sem fronteiras. Tem lojinhas que vendem tênis e sapatos a 15 e 20 euros, redbull, refrigerante, cigarro. Um afegão me aborda sorrindo, calçando um bom par de docksides à la francesa, com saltinho, e pergunta se ficou bom. Digo que sim. Morrendo de rir, ele responde: “Talvez para você”. As lojinhas são dos próprios refugiados, para os refugiados. Nenhum sujeito veio ou vem me encher o saco. Na verdade, sou eu que incomodo. Docemente, cheia de sorriso e cansaço, mas incomodo, manquitolando e anotando e olhando.
Domingo teve missa na igreja cristã. Não poderia ter deixado de ir: foi por causa de uma foto da Reuters dessa igreja que eu decidi vir a Calais. A liturgia é cantada num idioma que, segundo meus amigos brasileiros, deve ser algum dialeto etíope, já que os etíopes constituem a maior comunidade cristã da Nova Selva.
Horas depois, sentada numa inacreditável poltrona na porta de uma das mesquitas, um gerador fazendo um barulho estrondoso ao lado, homens de todas as cores e nacionalidades e credos se acocoram para carregar o celular, no meio desse lugar que mais parece um dos cenários de destruição pós-bomba atômica do dramaturgo e diretor inglês Edward Bond, conhecido pela desconstrução que arquiteta em suas peças de temas como capitalismo, violência, pós-modernidade e tecnologia.
Outro grupo de homens se acocora em cima de pequenas pedras para conseguir fazer a barba, lavar a cabeça, escovar os dentes, encher o galão de água, essas coisas que a gente faz na intimidade da nossa casa. Não posso deixar de pensar que, na Nova Selva, nossa intimidade é pública. Nossa dor é pública também, nossa perplexidade, nosso medo e nossos fracassos.
Mas os amigos que atravessaram o portal, cruzaram o túnel, fugiram escondidos em balsas, os amigos que chegaram ao Reino Unido, esses mandam notícias de lá, pelos celulares e smartphones. Do lado de cá, fazemos fogueiras e até soltamos fogos de artifício, como na incrível Copacabana do ano novo etíope em Calais, celebrando um futuro com menos passaportes e, certamente, com mais portas abertas.
[Márcia Bechara, jornalista, escritora e performer mineira de 42 anos, vive e trabalha em Paris desde 2009. Pesquisadora na área do teatro, defendeu em 2014 na Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris, mestrado sobre a dramaturgia da guerra, a escritura migrante e a memória na obra do autor, diretor e ator franco-libanês Wajdi Mouawad. Publicou três livros de ficção: Métodos Extremos de Sobrevivência (Publisher Brasil, 2009), Casa das Feras (7Letras, 2007) e Alegoria para Dinorah (Mazza Edições, 1994). Colaboradora freelancer para a Radio France Internationale em Paris, é tradutora da escritora francesa Virginie Despentes: Teoria King Kong (Grasset Éditions, 2006) será publicado no Brasil em outubro, pela N-1 Edições.]
Leia aqui a versão em francês da reportagem.
Ja fiz varios Comentarios e nao sao aceitos .
Pois é :Sete bi e meio de humanos. Não tem felicidade para todos. A felicidade é uma exceção na condição humana e não interessam os devaneios sócio-bélicos e ingênuos-raivosos dos pessoal da esquerda ( sim eles ainda existem…)
Calais é só um pedacinho. De fato, nem precisamos ir até lá. Aqui pertinho, em Curitiba ou São Paulo ou outra capital qualquer tem gente em situação parecida e até pior mas nossa hipocrisia nos cega. Se repararmos nos miseráveis que estão perto seremos forçados a tomar atitudes. Demonsrar indignação com os miseráveis lá longe facilita a hipocrisia afinal, estão láááááááááááá longe, na tal da França i num tem cumo ajudá…
Se possível não censurem meu comentário…
Joshua, a Márcia (que escreveu a reportagem) mora lá e a situação é bem próxima pra ela. Nós, do FAROFAFÁ, nos sentimos honrados de poder publicar esse texto justamente porque… parece tanto… com a situação de tantos brasileiros (e refugiados) no Brasil…
Fiquei pensando tanto em Foz do Iguaçu enquanto lia o texto da Márcia. Você por acaso tá no Paraná? Que tal você escrever uma dessas pra gente?!? 😉
mas Joshua, qual é sua medida de felicidade?
um país para morar e trabalhar sem que a cada dia morra uma pessoa próxima – mãe, pai, esposo, filho?
se essa for sua medida de felicidade, e se você achar normal que uma porcentagem dos 7.5 bi não tenha essa “felicidade”, caramba, estamos muito mal…
até porque essa “felicidade” você deve ter, então é fácil tratar refugiados (Haiti, Síria, Congo, Mali, Palestina, só pra citar os casos das últimas décadas) como uma casualidade estatística.
até porque sabemos que esta casualidade estatística é justamente parte de cáculo custo-benefício do direcionamento de política externa dos países centrais e respectivas corporações. mas não somos obrigados a tratar esses assuntos desse jeito. ou somos?
sem devaneios esquerdistas por aqui, é só uma questão de tentativa de aperfeiçoamento da raça humana. tentativa falha, pelo jeito.
Espetacular o relato, Márcia. Obrigado por compartilhar suas experiências.