foto marcos de paula

os caras se juntavam em grupos de 100, 200, mil, e ficavam na lateral do campo gritando para o richarlyson: “viado, viado, viado!”.

os caras se juntavam em grupos de 100, 200, mil, e ficavam atrás do alambrado perto do arouca, do daniel alves, do tinga, do aranha gritando: “preto fedido! macaco!”.

os caras se juntavam em grupos de 100, 200, mil, e ficavam gritando para a bandeirinha ana paula: “puta, vadia, vaca, chupadora de rola!”.

quando eu era moleque, os caras se juntavam em meia dúzia e ficavam gritando pra mim (porque eu era alto, desajeitado e muito magro): “paçocão de mil, paçocão de mil!”.
hoje eu acho até engraçado, mas na hora aquilo drenava minhas forças, me neutralizava.

além do racismo e do preconceito em si, vejo nessas atitudes todas uma tentativa covarde de enfraquecer, dobrar, tornar vulnerável uma pessoa (na visão deles, um adversário).
funciona, para o agressor, como uma dupla mentira: se fulano é um merda, então só pode significar que eu sou bom pra cacete!

e, no afã de humilhar, coagir, desmerecer, busca-se sempre o anonimato da multidão.
porque o “merda” deve ser execrado em praça pública, e os bons confraternizam instantaneamente.
ali no bolo, todos ficam valentes e soltam seus monstros interiores.

eu estava vendo o jogo e o aranha ia e voltava mexendo os braços como se estivesse coberto de abelhas.
era um grupo escolado atrás do gol, que sabia como ofender.
o juiz não quis saber do aranha. só com a intervenção do time todo é que a agressão foi identificada.

é um ato de covardia extraordinária que não tem porque ser relativizado.
não aceito o argumento da tradição, da coisa corriqueira, normal, usual.

a aceitação da normalidade de um ato desses é uma afronta ao movimento que devemos esboçar em direção à civilização.
ou estamos nos movendo para adiante ou estamos nos acomodando nessa bosta de “todo mundo pensa assim desde meu bisavô, porque então eu seria diferente?”
não há porque aceitar isso nem minimizar isso.
“o mundo é assim, isso sempre foi assim”.
ora, então é hora de começar a dar um pé na bunda desse mundo primitivo.

nas salas de imprensa de cobertura de festivais, muitas vezes tive a impressão de que tentavam me cooptar para certa estratégia de “unanimidade” preconceituosa.
tipo: maria gadú é uma sapata xarope, temos de odiá-la.
tipo: djavan não fala coisa com coisa, temos de enforcá-lo em seus próprios versos!
esse luiz caldas é uma doidivanas descalça.
fulano é uma bicha brega, temos que detestá-lo.
e quem não estiver conosco, está contra a gente.
já aderi muitas vezes, e já ri de piadas que não eram de fato engraçadas, mas não ando mais concordando com isso.
escapei dessa armadilha já tem um tempo.
tem gente que gosta de parecer o tough guy espirituoso de meia dúzia de velhotes cúmplices.
estou fora.

não, não sou perfeito, tenho o DNA de muitos preconceitos embutidos nesse sangue antigo e paraibano.
mas quero que se foda, não quero mais rir de nenhuma daquelas “piadas de socialização” cretinas. prefiro ficar calado a noite inteira.

na multidão, todos ficam corajosos.
obviamente que um ato de ignorância não justifica outro, mas acho que esse nem é o debate real.
é preciso que a sociedade demonstre que não vai mais aceitar esse cerco.
e, quem insistir, que se cerque de bons advogados.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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