Em plena floresta amazônica, ao lado do Rio Madeira, em Rondônia, um improvável festival de rock atrai milhares de pessoas. Mais surpreendente ainda é saber que esse festival, o Casarão, comemora sua 15ª edição ininterrupta a partir desta sexta-feira. É uma história de muita luta e perseverança que revela os bastidores da música independente no país, do início mambembe dos primeiros encontros até a atual profissionalização que atende pelo nome de patrocínio.
Subirão aos palcos neste ano 3 bandas inéditas e 11 consagradas nos palcos do Casarão. O evento acontece no pub Pioneiros, em Porto Velho, nos dias 30 e 31. Destaque para as apresentações dos acreanos Los Porongas, do paranaense Nevilton e do paulista Jair Naves. A lista de atrações parece destoar de outros festivais, como o Bananada (realizado de 16 a 18 de maio e que contou com a presença da banda Mudhoney e cerca de 100 atrações), mas o dinheiro explica a diferença. O Casarão não conta com patrocínio, enquanto o de Goiás ganhou edital da Petrobrás e pode cacifar a vinda de mais artistas.
A realidade da cena independente está mudando radicalmente nos últimos anos. Talvez estejamos vivendo uma das fases mais criativas, artisticamente falando, da música brasileira, mas apenas poucos privilegiados estão tendo acesso a ela. Os artistas se tornaram caros, muitos se mudaram para o eixo Rio-São Paulo e circular para outros Estados deixou de ser interessante para eles. “As bandas não pensam mais em ocupar territórios”, afirma Vinicius Lemos, criador do Festival Casarão. Só saem de sua zona de conforto quando os organizadores de festivais conseguem bancar a vinda deles a salgados cachês impraticáveis para quem não está calçado pelos editais de cultura.
É algo diferente do que se viu, 6 anos atrás, quando festivais de regiões como Norte e Nordeste se uniam para levar artistas como Emicida, Pitty, Macaco Bong e Tulipa Ruiz até seus palcos. A Associação Brasileira de Festivais (Abrafin) e o coletivo Fora do Eixo (FdE) criaram uma estratégia de cachês compartilhados para viabilizar as turnês dos artistas. E estes tinham interesse em conquistar novos públicos. Mas em 2011 alguns organizadores de festivais romperam com a direção da Abrafin, e por tabela com o FdE, e a vida se tornou dura para eles, incluindo o Casarão.
Nos 15 anos, o Casarão contou com patrocínio público em duas ocasiões, em 2008 (Petrobrás) e no ano passado (Banco da Amazônia), e duas vezes com recursos de maior porte de empresas privadas, em 2005 (Claro) e em 2010 (Usina Santo Antônio). Nessas ocasiões, as atrações iam de Vanguart e Autoramas a Cidadão Instigado e Cachorro Grande. O público variou bastante. Só em 2008, ano em que os rondonienses guardam as melhores lembranças, segundo Lemos, 7 mil pessoas assistiram aos shows do festival.
Com 80 mil reais no caixa, por conta do patrocínio da estatal do petróleo, o Casarão pode trazer Pitty, Dead Fish, Daniel Belleza, Macaco Bong e outras 40 bandas. Vinte e cinco jornalistas de todo o país foram convidados para cobrir o evento. Ao final, além das críticas negativas (disseram que a “cena amazônica” se resumia ao heavy metal), o evento amargou um prejuízo de 20 mil reais.
Prejuízo não é exatamente algo novo para o festival. Está na origem dele. Em 2000, Vinicius Lemos teve de organizar o Casarão como saída para pagar o rombo deixado ao trazer para Porto Velho a banda Ira!, que na época excursionava com o disco “Bebendo Vinho”. Universitário que fazia e promovia shows na capital rondoniense, Lemos sabia que se chamasse os amigos para “festinhas” com bandas locais atrairia um público suficiente para ganhar algum dinheiro.
As duas primeiras bandas, Blackbird e Fato Consumado, que tinham repertório próprio, mas também faziam cover, foram suficientes para atrair 1 mil pessoas num bucólico sítio às margens do Rio Madeira. Era lá que havia um casarão de estilo medieval, que acabou por batizar o festival. Em 2001, no ano seguinte, a cena incipiente de Porto Velho não tinha sido devidamente impulsionada. Na verdade, ela definhava pela falta de palcos para as bandas tocarem. Lemos fez uma segunda edição para 500 pessoas. Se quisesse continuar nesse negócio, ele tinha de criar um público. Decidiu montar um bar para fomentar essa cena. Em pouco tempo, as três bandas locais viraram mais de 20.
Em 2002, o Casarão sofreu a concorrência saudável do Madeira Rock Festival, que levou bandas como Detonautas, Tihuana e O Rappa. O que se percebia, lembra Lemos, era que os rondonienses estavam empolgados com a vida cultural na capital. Em 2003, o Casarão sofreu com a proibição do Juizado de Menores para entrada de jovens abaixo de 18 anos. Mas, nos anos seguintes, o festival voltou a ganhar força, acompanhando o bom momento da cena independente do rock brasileiro. Não só o Casarão, como também Calango, Varadero, Madá, Demo Sul, Goiânia Noise e Quebramar. Havia recursos da Petrobrás fomentando esses eventos.
“Aí veio a história da ruptura com o Fora do Eixo”, adianta Lemos, que teve como primeira consequência a saída do Casarão e outros 12 festivais, em 2011, da Abrafin e a criação do Grupo dos 13. Passados três anos daquele episódio, Lemos analisa como vital para que o Casarão ganhasse uma visibilidade própria, pudesse participar de forma independente dos editais de cultura e deixasse de ser visto como mais um festival do FdE.
Talles Lopes, um dos dirigentes da Abrafin, considera positiva a divisão da cena independente entre grupos divergentes, sobretudo em um cenário em que o Ministério da Cultura deixa de atuar em favor dos festivais independentes – como havia acontecido nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira. “De certa forma, (a ruptura) fez inclusive com que os festivais conseguissem se manter em alta, mesmo com toda a crise trazida pelo fim das políticas públicas federais nesses últimos 4 anos”, reconhece Lopes. “Existiam diferenças claras entre grupos dentro da entidade, e a tentativa de manter aquele espaço com tantas divergências poderia reproduzir uma lógica autofágica, que não ajudaria ninguém.”
Coincidência ou não, após a ruptura, o Casarão não ganha mais editais como o de 2008, e a consequência é que trazer artistas de renome se tornou cada vez mais difícil para Lemos. O que cria uma lógica perversa para todos os festivais. Só aqueles que recebem verbas públicas conseguem as maiores atrações e, por tabela, os maiores públicos. “Uma coisa estava clara desde o início da Abrafin e inclusive foi por isso que ela surgiu: se deixarmos apenas a lógica do mercado prevalecer, esse processo cruel se perpetuaria”, acrescenta Lopes.
O Casarão deixou de ocorrer ao lado do imóvel que lhe deu nome desde 2009. Passou por vários locais, que iam desde clubes da cidade até casas de espetáculo. Nesse tempo, Lemos viu muito do público que vinha formando frequentar outros espaços, onde o rock cede lugar ao pagode e ao sertanejo. Restam aqueles mil roqueiros de carteirinha que, chova ou faça sol, nunca abandonarão o rock’n’roll. Eles estarão nesse ano para apagar as 15 velinhas do festival.
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