Mr. Classe Média Paulista tocou a campainha e já era perto das 22h. Estávamos na cozinha tomando cerveja e contando lorota. Desci já meio trôpego e ele se apresentou como O Proprietário.
O Proprietário mora nos States com os filhos adolescentes, não trabalha porque vive de aluguéis de casas como essa que eu ocupo. Tem um lago nos fundos de sua casa em Boca Ratón. Não sabe quem é Charlie Brown, o personagem. Vive nos Estados Unidos com visto de estudante, é um saco, tem de voltar sempre para renovar.
Não estava satisfeito com os símbolos externos da casa que ilustravam a condução atual de minha instável vida. Queria que eu cortasse a amoreira que estava deixando crescer no canteiro, na calçada da rua. Disse que as amoras, quando maduras, caem e sujam tudo, fica tudo preto no chão, uma coisa nojenta. Contou que já tinha cortado uma vez e achou que ela não reviveria. Eu também permitira que uma jovem artista fizesse um grafite ali na fachada. Ele ameaçou pedir a casa de volta.
Pepe Mujica, em curta e já memorável entrevista ao TV Folha, disse que a burguesia paulista (assim como a argentina, para não falar da uruguaia) não consegue entender que estamos numa época de integração. Que essas burguesias deviam compreender que têm responsabilidade, como classe social, mas isso não consegue entrar em suas cabeças acumuladoras.
Em geral, numa situação assim, de aguda injustiça, eu sinto o sangue subindo à cabeça e fico louco. Mas eu ando apaziguador. Resolvi dialogar. Estamos em um tempo bom para dialogar. Mr. Classe Média Paulista acabou se mostrando um sujeito mais afável do que era no começo. Revelou que já tinha passado por ali antes, em frente à sua antiga casa, e que lhe enternecera o meu fusca (e os signos do que chamou de nossa “vida desencanada”). Disse que gostaria de viver assim, mas as expectativas de sua família o colocaram em outro caminho.
Mesmo um tanto alto da cerveja, eu tentei por um minuto me colocar no lugar dele: vivera na casa onde vivo, fizera suas escadas, colocara seus lustres, suas janelas de alumínio, seus azulejos feios. Escandalizou-se com as mudanças que eu fizera, parecia um sentimento até normal. Mas também me lembrava de um episódio lá da minha infância, de um vizinho que, não sendo nossa família proprietária, exigiu que meu pai cortasse as bananeiras do fundo do quintal porque invadiam a sua casa. E meu pai cortou.
Começamos a conversar. Mr. Burguesia Paulista não gosta de viver nos States, não tem amigos de verdade lá, disse que os condomínios são cenários de plástico, tudo se faz de carro, não há convivência real. Disse que “é tudo falso”. Me assombrou com sua consciência daquela vida sintética. Senti nele a agonia de uma grande solidão. Senti sua humanidade.
Resolvi seguir o conselho de Mujica, de tentar deixar sementes, em vez de um legado de vaidade (e destruição das chances dos outros). Não é que eu queira posar de desapegado, fazer demagogia em cima de ninguém. Estou realmente tentando me apegar aos impulsos fundamentais, viver com alegria, com vibração.
Argumentei ao Sr. Proprietário que tudo que eu fizera ali seria fácil de reverter, que eu comeria as amoras antes que sujassem o chão, que eu pintaria a fachada da casa como era antes. Tudo verdade. Já estávamos quase ficando amigos, mas ele tinha pressa. Falamos rapidamente dos vizinhos, ele contou que tem gente famosa por ali, tem uma ex-prefeita que mora na rua de cima. Embarcaria no dia seguinte de volta para sua vida nos Estados Unidos, parecia ter cessado o seu aborrecimento.
Ao final, eu voltara àquela minha questão de anos atrás: fiz bem em evitar o conflito? Houve algum aprendizado de parte a parte? Ou uma boa briga teria sido mais didática? Sei lá, há tempo de brigar e há tempo de mediar. Não era hora de virulência.
Por coincidência, caiu-me nas mãos na manhã seguinte o livrinho De Segunda a Um Ano, de John Cage, que está sendo reeditado (tradução do Rogério Duprat, revisão de Augusto de Campos). Abri aleatoriamente e eis que surgiu algo. “As pessoas dizem, às vezes timidamente: um terreno baldio, um pedaço de barbante e um sol poente; sem possuir nada, todos agem”.
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Me identifiquei tanto com seu post. Sinto na pele essa mesma situação de viver desapegado, tendo que enfrentar a fúria de próprietários de imóveis e a grosseria de gerentes de imobiliárias que vem sempre reclamar de algo estapafurdio.