Irreverente, genial, complexo e incompreendido muitas vezes, Jards Macalé, aos 70 anos, diz estar vivendo sua segunda juventude. O morcego, dono de diversas obras-primas dentro da música brasileira, falou da atual cena musical no Brasil, da tropicália, do Ecad e até da legalização da maconha.
Mais vivo do que nunca, ele segue apresentando seu show com a banda Let’s Play That e divulgando o documentário sobre sua vida pessoal, intitulado Jards, que foi lançado em 2012 sob a direção de Eryck Rocha, filho do cineasta Glauber Rocha.
João Paulo Martins: Como você analisa a atual fase da música brasileira, nos seus diversos aspectos? Você indicaria algo interessante que esteja acontecendo por aqui?
Jards Macalé: Ainda que haja uma ebulição interna, ela ainda não conjuminou na música brasileira em seu total esplendor, mas as coisas estão acontecendo. Há vários grupos novos, vários intérpretes, várias músicas com concepções diferentes. O leque da música brasileira está totalmente aberto. Cabe tudo, desde que o brasileiro o faça com a linguagem própria do brasileiro, podendo ser rap, funk, samba, valsa, bolero, o diabo que for, como sempre foi na nossa música. O Brasil sempre esteve aberto a todo material musical e sempre o reinterpreta. Aí reside toda nossa genialidade. É dessa maneira que vejo este atual panorama. Não vou indicar grupos específicos, mas eu trabalho com essa moçada nova que está buscando concepções originais da música e produzindo um trabalho realmente muito bonito.
JPM: Você participou como compositor e compôs as trilhas sonoras dos filmes Amuleto de Ogum (1974) e Tenda dos Milagres (1977), ambos do Nelson Pereira dos Santos. Como foi essa sua experiência como ator e qual é o ponto em que a música se comunica com o cinema para você?
JM: Eu fui convidado pra fazer trilha sonora. Minha primeira trilha sonora foi de Macunaíma (1969, cartaz à dir.), de Joaquim Pedro de Andrade. Ele me convidou para musicar alguns poemas de Mário de Andrade, e eu musiquei. A partir daí comecei a ficar muito próximo do cinema, e depois de Glauber Rocha, e de amigos de Glauber também. E quando percebi estava inflando dentro de mim todo aquele momento com o cinema. Com Ana Carolina (Teixeira Soares), fiz a trilha sonora do (documentário) Getúlio Vargas. Até que o Nelson Pereira dos Santos me convidou pra fazer a trilha sonora de O Amuleto de Ogum. E, lá pelas tantas, de “trilheiro sonoro” eu virei ator, porque ele me botou como o ceguinho Firmino, personagem que conta a história do filme. E depois fiz música para a trilha sonora de Tenda dos Milagres, baseado no livro do Jorge Amado, quando ele me convidou, também como ator, pra fazer o personagem de Pedro Archanjo, o Jeová do filme. O que me leva ao cinema, às artes plásticas, à dança e à poesia é a música. Eu sou essencialmente músico. Ela é o centro nervoso das coisas para mim. Inclusive o Nelson me convidou para fazer Dom Pedro II, o novo filme dele. Não serei Dom Pedro II, mas estarei na corte. É o Groucho Marx: não entro em clubes que não me sinto como os sócios.
JPM: Como você chegou à metáfora do Batman em “Gotham City” ?
JM: Não fui eu, foi o Capinan, meu parceiro. Nós começamos a fazer algumas coisas juntos e, naquele momento, ele fez uma metáfora do período em que estávamos vivendo na ditadura militar. Foi logo após o AI-5, em 1968. Capinam fez a letra, e eu musiquei. Chamava-se “Gotham City”, que é uma parábola da Gotham City original, paralela ao que estava vivendo a cidade. Esse lance do bem e do mal, do guardião e da guardiã, do Batman e do Robin. Então fomos convidados a participar do Festival Internacional da Canção, em 1969. Foi um escândalo, porque as guitarras entraram em cima, junto à orquestração de Rogério Duprat – que eram os padrões de orquestras da Globo. Eu toquei com Os Brazões, que acompanhavam Gal Costa em “Divino e Maravilhoso” (1968). E eu entrei com uma bata pintada por um artista plástico baiano, chamado Dircinho. Aquela bata tinha um fogo desenhado que saía de dentro dela. Foi um escândalo: vaiaram unanimemente do princípio ao fim. Aí me lembrei do majestoso Nelson Rodrigues, quando disse que só a vaia consagra. Dito e feito: eu e Capinam dormimos anônimos e acordamos famosíssimos no dia seguinte.
JPM: O que o inspirava antes ainda o inspira hoje? O que se perdeu com o tempo e o que ele trouxe de novo para você, como fonte de inspiração?
JM: Nada se perdeu e tudo se resolveu. Por exemplo, na época fiz músicas com Capinan, Torquato Neto, Duda Machado. Musiquei poemas de Confúcio, Maiakóvski, Vinicius de Moraes. Então eu diria que aquele foi um momento único. Hoje, toda essa relação continua sendo a mesma em meu fluxo musical. Com 70 anos, tenho me relacionado com o pessoal de 20, 30. Eu sempre me interessei pelo que estavam fazendo no presente. Acho que aprendi algumas coisas no século passado, nesse negócio de exercer a música. Estou vivendo a minha segunda juventude (ri).
JPM: Macau, você manteve boa parte de sua trajetória como músico à margem do mainstream. Como você lidava e lida com isto hoje?
JM: Eu aprendi isso com o modo de produção do cinema e do teatro. Hélio Oiticica disse na época: “Seja marginal, seja herói!”. Nós estávamos marginalizados com a economia péssima pra arte, então eu aprendi com o teatro de Zé Celso Martinez Corrêa e com o cinema novo em geral a ser independente. Mas também gravei na PolyGram, na Som livre, na Continental, na Atração. Porém, fundamentalmente eu mantive a minha independência. Não só criativa, mas também de produção.
JPM: Você se considera um gênio incompreendido?
JM: Não. O gênio é outra besteira, como dizia Oswald de Andrade. O que existe é trabalho, 24 horas por dia pensando em música, vivendo música, trabalhando, respirando música. Não tem gênio na história.
JPM: Sobre o Ecad, recentemente houve um alarde na classe artística sobre os novos rumos do escritório. A Lei Nº 12.853 propõe uma maior fiscalização dos repasses e um maior controle social do órgão. Como os direitos autorais lhe eram repassados e o que você espera dessa reforma do Ecad?
JM: Desde pequeno acompanho o Ecad. Quando comecei a fazer música eu não pensava em direitos autorais, pensava em fazer música. E, aos poucos, você vai se tornando consciente de que existem esses direitos. Naquele tempo era pior, nos anos 1960. Em 1964 eu comecei a ser profissional de música. E já havia os direitos de comércio, de músico, de intérprete e de orquestração, mas fui tomando consciência deles aos poucos. Em um determinado momento, essa consciência me fez brigar com todas as gravadoras. Em 1973, voltando do exílio, fiz uma piada dizendo que iria fazer um show em autobenefício. Oras, sempre que se fazia um show era em benefício de alguém ou para levantar grana para esse alguém. Eu queria fazer diferente, queria levantar grana para mim mesmo. Encontrei-me com o diretor da Cinemateca no Rio de Janeiro, e ele me sugeriu unir a ideia do show em autobenefício com a comemoração de 25 anos da Declaração dos Direitos Humanos feita pela ONU. A ideia era ótima, já que a minha intenção era humanizar o processo musical. Então fui me apresentar aos diretores do Museu de Arte Moderna e ao Antônio Morrinho, diretor do centro de informações da ONU. A partir daí, nessa nova concepção, vários colegas meus toparam fazer o show comig,o quando expliquei o viés político e humanista daquela empreitada. Então tocamos no MAM , em 1973. Eu, Chico Buarque, Raul Seixas, Paulinho da Viola, Gal Costa, Dominguinhos, Gonzaguinha. Foi a primeira célula da nossa geração que de fato lutou pelos direitos autorais (o espetáculo resultaria no álbum duplo coletivo O Banquete dos Mendigos, censurado em 1974 – capa acima, à dir.).
Então, em 1978, nós fomos reconhecidos como trabalhadores. Nessa comissão, fui a Brasília com o pessoal do sindicato dos artistas. Fundamos o Projeto Pixinguinha, nessa história de armar o plano de trabalho real, com campo de atuação e reivindicação pelos direitos autorais. Então, conseguimos tirar da gaveta de Nei Braga, ministro da Educação na época, o tal do Ecad como lei para regulamentar o processo, unir as pessoas e as sociedades de autores com esse nome. Parecia uma boa ideia, mas no contexto é muito, muito dinheiro. São bilhões. Direitos autorais é uma grana preta. E no Brasil, o Ecad se constituiu dessas sociedades, e aos poucos as próprias sociedades dos autores foram revindicando uma maior distribuição. Para arrecadar é fácil, distribuir é que é difícil. Não tem fiscalização possível por enquanto. Eu acho que o Ecad não pode terminar. Esse negócio de que o Ministério da Cultura deve administrar direitos autorais, nesse nível, é uma piada. O Ministério da Cultura nem consegue administrar a si próprio, quanto mais a um universo tão complexo. Não dá. Desde o início da discussão eu dizia questão autoral no Brasil é caso do Ministério da Justiça. E, se vacilar, é uma questão de polícia! Enquanto não provem o contrário, é roubo! Se esse grupo encabeçado pela Paula Lavigne desejar a melhor distribuição para todos, ele tem todo meu aval. Se interessar apenas a uma determinada classe musical, a luta sempre vai continuar.
JPM: Como você enxerga o Brasil politicamente hoje?
JM: É simples: nós saímos de uma ditadura e estamos em plena “ditamole”!
JPM: Você poderia falar um pouco sobre seu período em Londres?
JM: Eu fui pra lá convidado a fazer um disco com Caetano Veloso. Ele me convidou pessoalmente por telefone. Eu já não aguentava o Brasil naquele nível que estava e aceitei ir para colaborar com ele. E o cotidiano era normal: a gente passava o dia inteiro tocando, cantando, nos divertindo por ali, passeando nos parques, tomando muito ácido aqui, muito ácido lá, fumando haxixe. E aí, lá fomos nós, trabalhando, produzindo, criando até chegar ao que vocês ouviram em Transa (1972).
JPM: Um grande debate hoje é sobre a legalização da maconha. Como você se posiciona nele?
JM: Sou favorável à legalização da maconha. Agora, sou favorável também à proibição da bebida e o tabaco. Contra o álcool e o tabaco e a favor da maconha.
JPM: Como você vê as drogas como elemento inspirador para a arte?
JM: A arte talvez sensibilize algumas drogas, mas eu não acho que inspirações e expirações dependam delas. Não acho mesmo. Você é sua própria droga. E tenho dito.
JPM: Qual a sua relação atual com as gravadoras?
JM: Eu passei 11 anos sem gravar nas grandes gravadoras devido às minhas atitudes, até que eu mesmo produzi meu próprio disco.Então destravou: O Júnior Gordo (Wilson Souto Jr.), da Continental, me convidou para gravar. Gravei 4 Batutas & 1 Coringa (1987). Todos foram discos econômicos, mas ricos de conteúdo. Gravei na Atração O Q Faço É Música (1998), que é um disco carta-branca. O último foi o Jards (2011), pela Biscoito Fino. E dessa forma eu sigo até hoje.
JPM: Você teve algum motivo especifico para romper com a tropicália?
JM: Não, nunca rompi com a tropicália. Principalmente porque eu não sou tropicalista. Eu sou amigos deles de circo, amigo fraterno. E o nome foi um sucesso, todos já sabiam que era o nome propício para o momento em que nos encontrávamos.
JPM: A música “Farinha do Desprezo”, de 1972, é um desabafo pelo fato do Caetano não lhe ter dado os devidos créditos pela gravação de Transa?
JM: Não, isso é bobagem! Na época, o Capinan escreveu isso como sentimento de rejeição ao sistema que nos rejeitava. A letra é de 1967, antes do Transa e do episódio com o Caetano. Agora, uma coisa é fato consumado: todos os rejeitados que se sintam à vontade para cantar “Farinha do Desprezo“!
JPM: Como é sua relação com Caetano?
JM: É boa. Já tivemos nossas desavenças, mas, como somos da mesma geração, nos respeitamos muito. Eu conheço Caetano desde 1958, 1959. Torquato me apresentou ao Caetano, e mais tarde ele foi morar na minha casa, em Ipanema. E ali, pra minha casa, começaram a convergir todas as pessoas. Conheci Rogério Duarte, que é a grande inteligência dessa historia toda. Foi como jogar uma pedra na água: ela bateu e a coisa fluiu naturalmente.
Boa idéia essa de proibir a venda de bebida de ácool e tabaco,e liberar a venda da maconha.Pelo menos por um ano,seria uma boa provocação,e um bom tempo pra reflexão.
Monstro esse tal de Macau, hehehehehe, grato pela entrevista xará.