Não é só Milton Nascimento. As canções de trabalho povoam a música brasileira, de Clementina de Jesus a Chico César, de Ataulfo Alves aos rappers paulistas. Seguem abaixo um guia e uma compilação de “work songs” à brasileira.
1. Clementina de Jesus, “Cinco Cantos de Trabalho” (1976) – o condensado de Clementina parte de “Os Escravos de Jó”, de Milton e Fernando Brant, passa pelo “Ensaboa Mulata” de Cartola e deságua nos cantos anônimos de trabalho: “Alegria do Carreiro”, “Peixeira Catita”, “Atividade no Abano”.
2.Milton Nascimento, “O Homem da Sucursal” (1970) – “Os Escravos de Jó” surgiu como canto de escravos em 1973, em dueto de Milton com Clementina. Mas a canção já existia, e na primeira forma tinha sabor urbano-jornalístico, no contexto de um documentário sobre o jogador de futebol Tostão. Em 1977, ganharia uma terceira letra de Fernando Brant, para a voz de Elis Regina, sob o título “Caxangá”. Nas três versões, o espírito laborioso está preservado.
3. Astrud Gilberto, “Zigy Zigy Za” (1972) – moça baiana da bossa nova, já radicada nos Estados Unidos, Astrud usa essa estranha grafia de título, mas não se trata de nada mais que a cantiga infantil dos “escravos de jó” que “jogavam caxangá” e faziam “zig-zig-zá”.
4. Jorge Ben, “Zumbi” (1974) – Na conexão África-Brasil, Jorge canta as dores da escravidão e da lida na lavoura: “Aqui onde estão os homens/ de um lado cana de açúcar/ do outro lado o cafezal/ ao centro senhores sentados/ vendo a colheita do algodão branco/ sendo colhidos por mãos negras”.
5. Luiz Gonzaga, “Algodão” (1959) – o forró é o palco para um canto rural submisso do rei do baião: “Quando chega o tempo rico da colheira/ trabalhador vendo a fortuna se deleita/ chama a famia e sai pelo roçado vai/ cantando alegre, ai, ai, ai, ai, ai/ sertanejo do norte/ vamos plantar algodão/ ouro branco que faz nosso povo feliz/ que tanto enriquece o país/ o progresso do nosso sertão”.
6. Jorge Ben, “África Brasil (Zumbi)” (1976) – na versão heavy-funk-rock do mesmo “Zumbi” de dois anos antes, Jorge acrescenta alguns versos e reivindica um futuro próximo, simultâneo à critica de um cruel presente aparentemente perpétuo: “Eu quero ver o que vai acontececer/ eu quero ver o que vai acontecer/ eu quero ver o que vai acontecer quando Zumbi chegar”.
7. Dorival Caymmi, “Retirantes” (1975) – A abertura da telenovela global Escrava Isaura pintava retrato de tintas bem mais fortes do que o título fazia supor: “Vida de negro é difícil/ é difícil como o quê/ (…) eu quero morrer de açoite/ se tu, negra, me deixar”.
8. Trio de Ouro, “Pescaria (Canoeiro)” (1944) – um dos muitos cantos de pescadores de Caymmi, em interpretação do trio de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins – e Nilo Chagas, vocalista negro de que a história se esqueceu com maior facilidade que aos outros dois.
9. Elza Soares, “Viagem de Jangada” (1975) – canto praiano de pescador, em leitura de samba e morro cariocas.
10. Elis Regina, “Arrastão” (1965) – inauguradora da era dos festivais, o tema furioso de Edu Lobo e Vinicius de Moraes cravava uma versão mais ácida dos cantos pesqueiros de Caymmi.
11. Marku Ribas, “Canção do Sal” (1979) – a “work song” inaugural de Milton Nascimento, aqui em versão suingada, samba-roqueira, mineira.
12. João Bosco, “Quilombo” (1986) – segunda versão, mais afro-samba, do canto escravo rebelde lançado por João em seu LP inaugural, de 1973.
13. Martinho da Vila, “Batuque na Cozinha” (1972) – obra-prima de João da Baiana, um dos fundadores do samba, faz um retrato da tensão entre casa-grande & senzala – e, subjacente a ele, entre trabalho & prazer.
14. Clementina de Jesus, “Canto II” (1982) – peça do tocante álbum O Canto dos Escravos, dividido por Clementina com Doca e o sambista paulista Geraldo Filme.
15. Doca, “Canto X” (1982) – o canto potente de tia Doca, noutra (linda) faixa d’O Canto dos Escravos.
16. MPB 4 e Quarteto em Cy, “O Cio da Terra” (1978) – versão a oito vozes do encontro musical de Milton e Chico Buarque, em clave de canto rural católico, de “debulhar o trigo/ recolher cada bago do trigo/ forjar no trigo o milagre do pão/ e se fartar de pão”.
17. Ruy Maurity, “A Senha do Lavrador” (1973) – os rituais do lavrador, com pé de arruda, chuva miúda, mutirão e trem danado pra Catende.
18. Wando, “O Ferroviário” (1973) – Um Wando pré-“brega”, tenso e denso, retratando as penas diárias do ferroviário.
19. Nara Leão, “Maria Moita” (1964) – à frente do tempo sob vários aspectos, o afro-samba de Vinicius e Carlos Lyra mistura racismo & miscigenação racial, machismo & feminismo, escravidão & prostituição, casa-grande & senzala, riqueza & pobreza, resignação & rebelião: “Deus fez primeiro o homem, a mulher nasceu depois/ por isso é que a mulher trabalha sempre pelos dois”.
20. Milton Nascimento, “Maria, Maria” (1978) – do Clube da Esquina 2, mas imortalizada a seguir na voz de Elis, o labor feminino que “é o som, é a cor, é o suor”.
21. Fafá de Belém, “Maria Solidária” (1978) – trabalho & festa & prazer & corpo & solidariedade, unificados na voz paraense quente de Fafá.
22. Francis Dalva, “Galope” (1982) – canto de trabalho paraense, das confluências rurais-caribenhas quentes e úmidas da Ilha do Marajó.
23. Pinduca, “Dona Maria” (1973) – trabalho feminino paraense braçal, suingado, jazzístico, para pegar a geral pelo estômago.
24. Fafá de Belém, “Estrela Radiante” (1979) – o tema baiano de Walter Queiroz começa com jeitão de canto escravo e se revoluciona em celebração, festa, carnaval.
25. Simone, “Povo da Raça Brasil” (1979) – “ponha a mão na mágoa, ponha a mão no povo/ ponha a mão na massa pra fazer o pão”, canta Simone em mais uma “work song” do ciclo de “ir onde o povo (negro) está” de Milton e Brant.
26. Monsueto Menezes, “Lamento da Lavadeira/ Na Casa de Antônio Job” (1962) – canto de lavadeira do autor do clássico samba “Mora na Filosofia” (“pra que rimar amor e dor?”).
27. Cartola e Creusa, “Ensaboa Mulata” (1976) – o herói do samba ensina submissão à filha, que canta com dor de fundo de peito.
28. Luiz Melodia, “Juventude Transviada” (1976) – mais um canto urbano, pós-tropicalista, de lavadeira: “Lava roupa todo dia, que agonia/ na quebrada da soleira que chovia”.
29. Marlene, “Lata d’Água” (1952) – sambão de trabalho de outra Maria Moita: “Lata d’Água na cabeça, lá vai Maria/ lá vai Maria/ sobe o morro e não se cansa/ pela mão leva a criança, lá vai Maria”.
30. Nana Caymmi, “Acaçá” (2013) – canto de pregoeiro de melancolia absoluta, de pai Dorival para filha Nana, e vice-versa.
31. Gal Costa, “A Preta do Acarajé” (1979) – enquanto os homens de Caymmi saem para pescar, suas mulheres mercam delícias culinárias nas ruas de Salvador.
32. Trio Irakitan, “A Velha das Ervas Bentas” (1956) – os cantos de pregoeiro vêm de longe na música brasileira – artistas como o Trio Irakitan e Gilvan Chaves dedicavam discos inteiros ao tema.
33. Gilvan Chaves, “Pregões de Pernambuco” (1956) – a criatividade e os dizeres inusitados dos pregoeiros nordestinos.
34. Inezita Barroso, “O Batateiro” (1958) – o canto estranho do pregoeiro napolitano pelas ruas antigas de São Paulo. E as saudades de Inezita.
35. Ruy Maurity, “A Xepa” (1977) – os pregoeiros modernos, urbanos, alegres: os feirantes.
36. Jovelina Pérola Negra, “Feira de São Cristóvão” (1987) – Jovelina, pregoeira moderna, urbana, feirante, sambista.
37. MPB 4, “Linha de Montagem” (1980) – composição de Chico Buarque, o ABC paulista, o operariado, as greves…
38. Ruy (MPB 4), “O Jumento” (1977) – na capital ou no interior, a coisificação do homem transmutado em jumento, de acordo com a fábula infantil marxista buarquiana de Os Saltimbancos.
39. Luiz Gonzaga, “O Jumento É Nosso Irmão” (1968) – do sertão pernambucano que também nos deu Luiz Inácio Lula da Silva, o truque gonzaguiano de confundir bicho & gente, gente & bicho.
40. Dominguinhos, “O Cortador de Cana” (1980) – a travessia campo-cidade e a profunda melancolia do sanfoneiro.
41. Ataulfo Alves, “Bonde de São Januário” (1959) – “Quem trabalha é que tem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ o bonde São Januário leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”, dizia o samba em parceria com Wilson Baptisa, lançado originalmente em 1940, no contexto do getulismo. As Pastoras de Ataulfo brilham fulgurantemente no contracanto.
42. Joyce, “O Trem Atrasou” (1976) – o medo do desemprego e o samba-explicação, tintim por tintim: “Patrão, o trem atrasou/ por isso estou chegando agora/ trago aqui o memorando da Central/ o trem atrasou meia hora/ o senhor não tem razão pra me mandar embora”.
43. Luiz Wanderley, “Trabalhadores do Brasil” (1959) – canção de protesto e desemprego – e de saudades de Getúlio Vargas.
44. Léo Canhoto & Robertinho, “O Presidente e o Lavrador” (1975) – canto caipira de trabalho e mais um presidente na ribalta, desta vez o ditador Ernesto Geisel.
45. Dom & Ravel, “Obrigado ao Homem do Campo” (1979) – aliança trabalhista nas gargantas de dupla demonizada como apoiadora da ditadura.
46. Tom Zé, “Profissão Ladrão” (1968) – no avesso do avesso do avesso, Tom Zé pergunta: entre tantas e tantas e tantas profissões, por que não essa?
47. Luiz Wanderley, “Trabalha Paulista” (1961) – depois de “Baiano Burro Nasce Morto” (1959), o alagoano tenta uma desforra bem-humorada contra alguns dos maiores discriminadores (e instrumentalizadores) de nordestinos.
48. Gordurinha, “Vendedor de Caranguejo” (1960) – canto de catador de caranguejo e muita dor, na voz do autor de “Baiano Burro Nasce Morto”.
49. Os Incríveis, “Vendedor de Bananas (1969) – “work song” urbana de Jorge Ben, pelos intérpretes do famigerado “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”: “Ninguém diz pra mim ‘vá trabalhar, vagabundo'”.
50. Paulo Sérgio, “Alfaiate” (1971) – o drama e a ternura na voz do cantor romântico que foi, de fato, alfaiate.
51. César Sampaio, “Secretária da Beira do Cais” (1975) – o sexismo, a mulher sem voz, a profissão: prostituta.
52. Julia Graciela, “Anúncio de Jormal” (1981) – o sexismo, a mulher-objeto com voz, a profissão: secretária (seria uma tia-avó da vilã sedutora do dr. Antonio Fagundes na novela das 21h?).
53. Trio Nordestino, “Canário do Reino” (1973) – o forró-soul popularizado por Tim Maia, em versão puramente forrozeira. Profissão: cantor.
54. Bebeto, “Nos Bailes da Vida” (1993) – o “profissão: cantor” essencial de Milton Nascimento e Fernando Brant, em versão samba-rock do mestiço paulista.
55. Magazine, “Sou Boy” (1983) – ainda que sob os óculos de sol do humor, Kid Vinil se faz pioneiro na inclusão à música brasileira de uma das categorias mais maltratadas de trabalhadores urbanos.
56. Molejo, “Dança da Vassoura” (1997) – o pagode não tem sido um gênero propriamente afeito às “work songs”, mas… será que vale o “vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo”?
57. Sampa Crew, “Vai à Luta” (1992) – ainda sob o formato soul-pop do Sampa Crew, o hip-hop começa a se insinuar como tradutor principal dos cantos de trabalho para o século que vai chegar.
58. Chico César, “Mama África” (1995) – A condição negra em versos agudos de Chico: “Mama África, a minha mãe/ é mãe solteira/ e tem que fazer mamadeira/ todo dia/ além de trabalhar como empacotadeira/ nas Casas Bahia”.
59. Nega Gizza, “Prostituta” (2002) – mulher-sujeito em primeira pessoa e uma outra abordagem sobre a prostituição: “Sou puta, sim/ vou vivendo do meu jeito, prostituta atacante, vou driblando preconceito”.
60. Emicida, “Rua Augusta” (2010) – uma combinação rara entre mulher-sujeito e homem-solidário.
61. Posse Mente Zulu e Leci Brandão, “Dona Maria” (2004) – no início da história de Rappin’ Hood, a fusão entre o canto de trabalho de mais uma Maria (“do morro, cidadã brasileira”) e o rap de menino de favela de “Deixa, Deixa” (1985) de Leci.
62. Ogi, “A Vaga” (2011) – à procura de emprego, um dos mais afiados atualizadores dos cantos brasileiros de trabalho para o século XXI.
63. Ogi, “Eu Tive um Sonho” (2011) – mais uma do rapper, com lirismo, travessia, dor e mensagem direta: “Me apresentei pra trabalhar direto na carga pesada/ subi pontes, edifícios, minha mão já calejada”.
64. Blecaute, “Pedreiro Waldemar” (1948) – samba carnavalesco de Wilson Baptista, voz do negro Blecaute e papo reto sobre racismo e a invisibilidade social do avô do personagem do rap de Ogi: “Você conhece o pedreiro Waldemar?/ não conhece/ mas eu vou lhe apresentar/ de madrugada toma o trem na circular/ faz tanta casa e não tem casa pra morar/ (…) o Waldemar, que é mestre no ofício/ constrói um edifício e depois não pode entrar”.
65. Rael, “Trabalhador” (2010) – mais um ponto alto do rap de trabalho: “Você, trabalhador/ que despertou/ foi trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar/ sem tempo para o amor/ só pra trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar…”.
66. Clara Nunes e Clementina de Jesus, “P.C.J. (Partido Clementina de Jesus)” (1977) – mas será que é mesmo só “trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar…”. Clementina, sacerdotisa dos cantos de trabalho, é quem responde.
Bom dia;
Sou professor de história da rede pública paulista e estou desenvolvendo um projeto com os alunos sobre as músicas afro-brasileiras. Adorei essa matéria e gostaria de saber se existe bibliografia a ser indicada sobre a música de trabalho que remonta à época da escravidão no Brasil.
Oi, Thiago.
Confesso que desconheço se há bibliografia sobre isso. Imagino que os livros do Nei Lopes (que, por sinal, devia estar nessa lista!) sejam valiosos nesse aspecto.
No mais, eu construo essas coisas intuitivamente, pela minha observação e meu hábito obsessivo de colecionar música… Vou baixando tudo e fazendo minhas listas íntimas, de músicas de “liberdade”, “igualdade racial”, “cantos de trabalho”, “África”… Se quiser conversar sobre, anota aí: pedroalexandresanches@gmail.com.
Considero “Juventude transviada” um canto feminista, que tira da juventude o protagonismo da transformação social e afirma que este poder está com as mulheres.
Faltou Os Mutantes na lista, com “Sr. F”: Dê um chute no patrão!
Pode acrescentar “Capitão da indústria”, do Paralamas.
Que legal, Simoni, nunca pensei em “Juventude Transviada” por esse ângulo!
E, putz, pode crer, vacilo total esquecer o “chute no patrão” e o “Capitão de Indústria” (que era da trilha sonora da primeira “Selva de Pedra”, do Marcos Valle)!
Lembrando: Criolo com Demorô, entre outras.
Tudo é trabalho,mas o trabalhador braçal é o que mais trabalha e menos ganha.Quanto ao “Bonde de São Januário”,dizem que a letra original falava em otário e não operário,o Departamento de censura da época exigiu que trocasse.
Boa lembrança, Ademar!!!
Oi, Pedro.
Delícia de tema! Lembrei de mais algumas: Feira de Mangaio (Sivuca), Construção, Pedro Pedreiro e Vai Trabalhar Vagabundo (Chico Buarque), Vende-se Sonhos (Novos Baianos), Mãe Preta (Caco Velho), Falta um zero no meu ordenado (Ary Barroso), Cidadão (Zé Geraldo), O menino das laranjas (Theo de Barros), Triste Margarida (Adoniran Barbosa) e Torresmo à Milanesa (Adoniran Barbosa/ Carlinhos Vergueiro), Morro Velho (Milton Nascimento), Acertei no Milhar (Wilson Batista), Três apitos (Noel Rosa), Sá Rainha (Maurício Tizumba), Arrumação (Elomar)… vixe, o negócio vicia! rsrs
Abraço!
Demais, né, Lívia?! Qualquer hora volto ao assunto, e tuas sugestões estão anotadas! 🙂