Alceu Valença está vivo :-)

1
3523
dominguinhos_simplicidade_frente-484x499
“Simplicidade”, de 1982

“No breu da noite a luz de um vagalume azul piscou, brilhante, no breu/ se aproximou da estrada, iluminando a estrada, era um imenso balão/ um objeto veloz virava estrelas e sóis e vagalume-balão/ virando estrelas e sóis, passou veloz sobre nós o objeto-clarão.”  O lirismo pop dos versos de “Estrelas Somos Nós”, rara parceria entre Alceu Valença Dominguinhos, só ficou registrada num álbum do sanfoneiro, Simplicidade (1982), jamais relançado em outros formatos.

dominguinhos-e-alceu-500x487Melhor sorte merece a outra parceria bipernambucana naquele 1982, “Lava Mágoas”, que integrou originalmente o histórico LP Cavalo de Pau, de Alceu – o mesmo que contém os hits pop-rock-nordestinos “Tropicana”, “Como Dois Animais” e “Pelas Ruas Que Andei”. Cavalo de Pau integra, ao lado de outros quatro álbuns, um pacote de reedições da obra de Alceu nos anos 1980, levada a cabo pela gravadora Universal (a mesma que guarda parte preciosa do catálogo de Dominguinhos).

Mais moderno que o parceiro ocasional na abordagem da música nordestina, Alceu estava em atividade desde 1968, em Recife. Só estreou em disco em 1972, ao se mudar para o Rio de Janeiro e dividir com outro conterrâneo a estreia dupla Alceu Valença & Geraldo Azevedo. Trata-se de um objeto perdido no tempo-espaço entre a tropicália e o que veio depois dela, um acachapante disco psicodélico orquestrado e regido pelo maestro (não-)tropicalista Rogério Duprat.

A experiência tropicalista com Geraldo não surtiu efeito mercadológico. Alceu iniciou em 1974 uma trajetória solo na gravadora da Rede Globo, a Som Livre, agora sim começando a desenvolver a mistura áspera entre rock, MPB, baião e maracatu que o firmaria. As reedições da Universal partem de Coração Bobo (1980), relançado de forma avulsa ao lado de Cavalo de Pau.

Um dos temas autorais de força no LP de 1980 é “Gato na Noite”, em que o refrão “meu maracatu é da coroa imperial/ é de Pernambuco, ele é da casa real” celebra a tradição e anuncia a fusão rock-maracatu que, acrescida de hip-hop e outras modernidades, ficaria conhecida uma década mais tarde como manguebit.

0000406345_350
“Cavalo de Pau”, de 1982

Coração Bobo trazia versões “forrock” para dois sucessos antigos de Luiz Gonzaga, “Vem Morena” e “Cintura Fina” , ambas de 1950. A veia autoral falava mais alto, no entanto, em faixas como a balada tensa “Na Primeira Manhã”, que Maria Bethânia tornaria mais conhecida em 1984: “Na primeira manhã que te perdi/ acordei mais cansado que sozinho/ como um conde falando aos passarinhos/ como um bumba-meu-boi sem capitão”.

O lado áspero-agreste seria acrescido de levada sensual e temperada em tempo de reggae a partir de Cavalo de Pau, seu primeiro grande estouro comercial, com versos inspirados de “Como Dois Animais” (“meu olhar vagabundo de cachorro vadio/ olhava a pintada e ela estava no cio/ e era um cão vagabundo e uma onça pintada/ se amando na praça como os animais”) e “Tropicana” (“da manga-rosa quero o gosto e o sumo/ melão maduro, sapoti, joá/ jabuticaba, teu olhar noturno/ beijo travoso de umbu-cajá/ pele macia, ai, carne de caju/ saliva doce, doce mel, mel de uruçu/ linda morena, fruta de vez temporana, caldo de cana-caiana/ vem me desfrutar”.

Os outros três títulos reeditados estão reunidos na caixinha Três Tons de Alceu ValençaCinco Sentidos (1981) conta com “Quando Eu Olho para o Mar”, em que a musicalidade mestiça de Alceu avança pela dualidade água/seca, a mesma de seu “Lava Mágoas” (1982) com Dominguinhos: “Quando eu olho para o mar/ dentro do mar vejo um rio/ quando eu olho para o rio/ dentro do rio vejo a chuva/ quando eu olho para a chuva/ é como se olhasse as nuvens/ quando eu olho para as nuvens/ é como se olhasse o mar/ quando eu olho para mim/ dentro de mim tem você/ quando eu olho pra você/ por dentro sinto saudade/ quando eu olho pra saudade/ meus olhos vão desaguando/ e é como um rio passando/ que não corresse pro mar”. Excelentíssimo poeta, pois não?

capa
“Anjo Avesso”, de 1982

O caixote segue com Anjo Avesso (1983) e outro dos maiores clássicos de Alceu, “Anunciação”, regravado agora mesmo pela brasiliense-revelação Ellen Oléria. “Na bruma leve das canções que vêm de dentro/ tu vens chegando pra brincar no meu quintal/ no teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento/ e o sol quarando nossas roupas no varal/ tu vens, tu vens/ eu já escuto os teus sinais”, diz a poesia épica, simbolista, marítima sem ser, prima-irmã da do contemporâneo paraibano Zé Ramalho em “Frevo Mulher”  (1979).

“A cor do pecado é rouge carmin”, explode em sangue a vermelha “Rouge Carmin”, nova investida sensual-sexual. “Tambores de branco, tambores de preto, batendo tambor/ tambor encarnado, tambor coronário, coração-tambor/ tambor de trabalho, tambor operário, martela o tambor”, a voz de Alceu vai cantando à esquerda em “Batendo Tambor”, até que surja, não mais que de repente, a voz ancestral de Clementina de Jesus num contracanto arrepiante.

Embora “Batendo Tambor” e a capa de Anjo Avesso explorem os nexos com o maracatu e o folclore, o disco seguinte, Mágico (1984), mergulharia bem mais fundo em territórios circenses-populares nordestinos, em faixas como “Cambalhotas”, “Casaca de Couro (Mourão)”, “Rajada de Vento” e “Maracatu Colonial”. O grande sucesso, aqui, é o grave baladão “Solidão”: “A solidão é fera, a solidão devora/ é amiga das horas, prima-irmã do tempo/ e faz nossos relógios caminharem lentos/ causando um descompasso no meu coração”.

A poesia aguda e afiada é marca em canções quaisquer de Alceu, como é também no tema de vagalumes solitários “Estrelas Somos Nós”, em que sua poética se encontra com a funda melancolia de Dominguinhos e produz versos como os seguintes: “No véu da noite a luz, um par de olhos azuis piscou brilhante no breu/ me acompanhou na estrada, iluminando a estrada, e depois se perdeu/ nós, objeto-balão, perdidos na escuridão, dois vagalumes tão sós/ era um balão colorido, um objeto perdido, um vagalume no ar/ estrelas somos nós, dois vagalumes sós, dois objetos sós, tão sós, tão sós, tão sós/ vamos vagando no ar”.

Enquanto seguimos vagando no ar nós, os vivos, primos-irmãos dos mortos, fiquemos com a eloquente “Anunciação”, nas versões de Ellen Oléria e do autor.

PUBLICIDADE

1 COMENTÁRIO

  1. Cara, Alceu nunca foi tropicalista nem em sua estréia com Geraldo. Poderias considerar que o tropicalismo teve em Gonzagão e contemporaneos sua matriz provocadora mas dizer que Alceu foi tropicalista é uma tentativa superficial de classifica-lo naquele momento. A superficialidade pela tentativa de construir uma narrativa que o pudesse classificar repete o mesmo erro quando afirma que Alceu foi matriz do maguebit. É óbvio que no desenvolvimento da história seja impossivel renegar as influencias anteriores no mesmo espaço geográfico, mas existe uma diferença de prisma de classe social na abordagem poética do movimento MANGUEBEAT que o separa do mesmo. Se fosse possível fazer tal ligação estética seria melhor afirmar que o manguebeat nasceu em “chiclete com banana” de Jackson do Pandeiro.

    Grande Abraço.

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome