JOHN FANTE NA ESTRADA

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Aquela família era um “clã impulsivo, imprevisível, dado a decisões bruscas e a remorsos terríveis”. Uma família ítalo-americana barraqueira liderada pelo pedreiro Nick Molise, o patriarca, o pai da família, com seu cheiro de charuto velho e as calças de operário. Batia na mulher, batia nos filhos, quebrava portas de bares dos quais era expulso com bancos de madeira. Um constrangimento para os vizinhos, uma encrenca para o chefe de polícia.


Quem narra a história toda é Henry, o filho que se tornou escritor após uma temporada na estrada.

Segundo nos conta Henry, seu pai Nick tinha “as bochechas rubras de um inveterado bebedor de Chianti e seus olhos castanhos tinham uma teia de minúsculas veias vermelhas”. Sem sombra de dúvida, Nick era um canalha – avaliação unânime da mulher, dos filhos, dos assistentes sociais, dos advogados e dos velhos italianos que limpavam seus bolsos na jogatina e na putaria do Café Roma. “O problema do meu pai era insolúvel, desafiava a lógica, não fazia nenhum sentido”, descreve Henry.

Mulherengo inveterado, tentou tirar até uma casquinha da mulher de um dos seus filhos. No dia do casamento. “É um velho sujo e safado com olhos de carcamano que me deixa arrepiada”, disse a nora.

Pedreiro, tinha paixão pela profissão, uma terrível avidez pelo trabalho, talvez a única paixão genuína que demonstrava. “Seu amor pela pedra era um prazer mais satisfatório do que sua paixão pelo jogo, pelo vinho ou pelas mulheres”.

A mãe, resignada e frágil, nunca teve coragem de tomar uma atitude contra Nick Molise. “Apertei-a em meus braços e beijei seu rosto quente e senti o cheiro dos temperos italianos sempre presentes em seus cabelos”, lembra Henry.

A história de Nick Molise me lembra a minha própria e a dos meus irmãos (na lida com o nosso velho). Me lembra também outras histórias, como a do pai tirano que o Mário Bortolotto descreve em seus textos (nunca com rancor, no máximo com alguma raiva e até com bastante carinho).

Entre sexta e esta manhã, eu viajei 14 horas de ônibus pelo sertão da Bahia, saindo de Pernambuco. Depois, levei mais umas 7 horas em aviões e aeroportos. Tive tempo de sobra para ler o livro que levava na mochila. Trata-se de um inédito de John Fante (1909-1983, A Irmandade da Uva, que acaba de ser lançado pela José Olympio Editora.

A Irmandade da Uva foi escrito após um período de 25 anos em que o autor não lançou nada. John Fante escreveu o clássico Pergunte ao pó (1939), uma das obras iniciáticas fundamentais da minha geração (que virou filme em 2006 com Colin Farrell e Salma Hayek).

É um livro foda. Havia tempos não me sentia tão satisfeito lendo algo.

A concisão, a naturalidade e a compreensão do ser humano que escapam da escrita de John Fante são de constranger alguns posers da nossa época.

Como Arturo Bandini ou Henry Chinaski (personagens de Fante e Bukowski), a trama também parece oferecer ao jovem escritor Henry Molise uma passagem gratuita para o establishment, mas também ele não parecia combinar com o establishment. Isso não é possível, porque seu batismo foi na estrada, como todos os escritores daquela geração. Vagabundeou pelos Estados Unidos como os beatniks, fumou guimbas de cigarro no lixo, foi garçom, motorista de táxi, trabalhou carregando sacos de sal grosso em fábrica de conserva aos 18 anos. O que o despertou para a escrita foi a descoberta de Dostoiévski.

“Dostoiévski tinha epilepsia, eu tinha asma. Para escrever bem, um homem precisa ter uma doença fatal. Era a única maneira de lidar com a presença da morte”.

O cerne da história é a seguinte: é a saga de como o filho escritor (e não o filho guarda-freios nem o filho bancário) vai tentar construir um defumador de pedra com o pai pedreiro nas montanhas. É uma tentativa desesperada de aproximação entre dois universos que já nasceram inconciliáveis.

Separei um trecho do livro para meus parcos leitores:


Meu pai teria sido um homem mais feliz sem uma família. Não fossem seus quatro filhos, teria se divorciado e partido havia muito tempo para outras cidades. Adorava Stockton, que era cheia de italianos, e Marysville, onde a gente podia jogar na loteria chinesa dia e noite. Seus filhos eram os cravos que o crucificavam à minha mãe. Sem filhos, estaria livre como um passarinho.

Não gostava de nós em particular e com toda a certeza não nos amava nem um pouco. Éramos apenas crianças comuns, simples e indistintas, e ele esperava mais. Éramos tarefas a serem cumpridas, não uma rica colheita, nem aspargos, figos ou tâmaras, mas papa menos fina, batatas, milho e feijões, e ele ficou preso àquele fardo, xingando e chutando torrões do solo até que as colheitas amadurecessem.

Era um homem das montanhas dos Abruzos, obstinado e de punhos grandes, baixo, um metro e setenta, largo como uma porta, nascido numa parte da Itália em que a pobreza era tão espetacular quanto as geleiras que a cercavam e onde qualquer criança que sobrevivesse aos primeiros cinco anos viveria até os 85. Claro, não eram muitos os que chegavam aos cinco anos de idade. Ele e minha tia Pepina, agora com oitenta e morando em Denver, foram os únicos entre os 13 filhos que tinham sobrevivido. Aquele modo de vida deu a meu pai resistência. Pão e cebolas, ele costumava gabar-se, pão e cebolas – do que mais um homem precisa? Foi por isso que passei minha vida inteira com repugnância a pão e cebolas. Ele era mais do que o chefe da família. Era o juiz, o júri e o carrasco, o próprio Jeová.

Ninguém cruzava com ele sem uma batalha. Desgostava de quase tudo, particularmente da mulher, dos filhos, dos vizinhos, da sua igreja, do padre, da sua cidade, do seu Estado, do seu país e do país do qual havia emigrado. Não dava a menor importância ao mundo também, ou ao sol e as estrelas, ou ao universo, ao céu ou ao inferno. Mas gostava das mulheres.


a foto acima fiz ontem pela manhã na beira do rio são francisco, em petrolina, um pai levando os filhos de carroça para tomarem banho no rio. lembrei da nossa infância no paraná.

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