A música popular brasileira ajuda (como sempre ajudou) a entender o riquíssimo momento político que nosso país vive: como (não) diria Gilberto Gil, VIVEMOS DIAS DE LIBERTAÇÃO.
Domingo, 23 de junho de 2013. Faz bastante frio hoje na cidade de São Paulo. As temperaturas se movem velozmente.
Até outro dia, éramos, como cantavam em 1969 meus ídolos musicais cariocas Jorge Ben e Wilson Simonal, um “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Ontem, sábado, a seleção brasileira goleou em casa um adversário dificílimo, a europeia Itália. Nem antes do jogo, nem durante o jogo, nem depois do jogo eu ouvi um foguete sequer estourar no céu de São Paulo. Como diria o norte-americano de terras gélidas Bob Dylan, alguma coisa (muito importante) está acontecendo, e você não sabe o que é, mister Jones.
“Praia e sol/ Maracanã, futebol/ domingo/ praia e sol/ Maracanã, futebol/ que lindo”, cantava em 1981 meu ídolo musical paulista Bebeto. Éramos, apenas – “apenas” -, o país do futebol, do carnaval, do verão, da praia, do sol, da bunda da mulata.
Não somos mais isso. Não somos “apenas” isso mais.
Os estádios da Copa das Confederações de 2013, sediada irretocavelmente pelo Brasil, não andam 100% lotados. Cadeiras vazias se espalham pelas arenas, como a demarcar um vazio que mora dentro do peito de cada um(a) de nós.
As cadeiras vazias do negro gaúcho Lupicinio Rodrigues ocupam talvez os espaços que deveriam ser da maioria não-branca na composição multirracial do país. Monopolizada pela Fifa e pela Rede Globo, a Copa das Confederações não é convidativa para espectadores não-brancos. A palidez loira exibida pela Globo quando passeia pela plateia é um escândalo, de um vandalismo silencioso mais feroz que mil agências bancárias depredadas por “baderneiros”.
Contra o racismo atroz exibido ao vivo e em cores pela Rede “não somos racistas” Globo, ninguém fala nada, ninguém porta cartazes, ninguém cria hashtags. Mas o silêncio dos rojões fala mais alto que 400 mil gritos tolos e despolitizados de “sem partido!”.
“Vou ser presidente do teu corpo/ governar/ anarquizar”, cantava minha ídola musical Rita Lee em 1982. Na inauguração oficial do inverno brasileiro de 2013, em 21 de junho, a presidenta Dilma Rousseff vai à TV em cadeia nacional, vestida de terninho creme, e acalma todo um país. Se ela não está com medo de “golpe” (ah, como falam de “golpe” nestes dias de celebração), por que eu estaria?, por que você estaria?
“Eu quero o povo feliz”, cantava a Rita ruiva paulista interiorana indígena comanche norte-americanizada. “Vão às ruas, crianças, só não façam bagunça demais”, diz, em outras palavras, a presidenta democrática e não-repressiva que alegoriza, em seu semblante vivaz, um país, um povo, uma Copa, um corpo violento e violentado, uma enchente amazônica de passeatas e manifestações, uma indescritível sensação de paz.
“Non ducor duco”, diz um cartaz, sampleando o brasão da quase sempre direitista capital paulista: “Não sou conduzido, conduzo”. Não sou governado, governo. (Não carrego o país nas costas, sou carregado por ele.) “Prometo que se eu ganhar a eleição/ só vou dar poder ao seu coração”, cantava a mutante tropicalista ruiva Ritalina.
Éramos, segundo nossos colonizadores, um país macunaímico, como fabulou cruelmente Mário de Andrade em 1928: “Ai, que preguiça”. Às vésperas do Inverno Brasileiro de 2013, Macunaíma-Grande-Otelo chorou: “Preguiçoso é o caralho, meu nome agora é Zé Pequeno!”.
Éramos o país da casa grande “protetora”-aterrorizada da senzala. Éramos o chicote, o chicoteado e o chicoteador. Éramos a (não-)”dialética” da malandragem. Éramos, em 1979, Chico Buarque, o burguês-coxinha-leite-com-pera de olhos azuis cheio de ódio e piedade despolitizantes pelo jeitinho “dialético” brasileiro: “O malandro pra valer (não espalha!) aposentou a navalha/ tem mulher e filho e tralha e tal/ dizem as más línguas que ele até/ trabalha, mora lá longe, chacoalha/ num trem da Central”.
Éramos um país tropicalista, antropófago, que comia carne negra (a mais barata do mercado) e produzia bananas para dar e vender. “Viva a banda dadá/ Carmen Miranda dá dá dada”, cantava em 1968, (des)organizando o movimento, o índio de alma cativa Caetano Veloso.
Ao mesmo tempo éramos (somos) Gilberto Gil. Negros, medrosos, muito, muito, muito valentes: “As latas tomam conta do balcão/ vivemos dias de rebelião/ enlate o seu café queimado/ enlate o seu café solúvel/ enlate o seu café soçaite/ enlate os restos do barão/ a lata luta por mais força/ adeus, elite do café” (se ficar a fim de brincar, ouça “A Luta Contra a Lata ou A Falência do Café”, de 1968, entre outras músicas de passeata, abaixo).
Não estamos fazendo uma Primavera, como têm feito lindamente diversos países árabes, entre outros.
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, compôs o baiano suicida Assis Valente em 1940. Seu samba “Brasil pandeiro” fora imaginado para a voz da portuguesa abrasileirada pré-tropicalista Carmen Miranda, mas ela, recém-transferida para os Estados Unidos (onde morreria em agosto de 1955, um ano após o suicídio de Getúlio Vargas), não gostou, não quis, não gravou. Assustada, disse não. O samba renasceria em plena ditadura civil-militar braZileira, em 1972, pela garganta hippie coletiva dos pós-tropicalistas baianos Novos Baianos. Esta gente bronzeada não era exatamente bronzeada: era, no duro, índia, preta, mulata, cafuza, amarela, muçulmana, judia, branquela, multicolorida.
Por agora, não há Primavera com pê maiúsculo no Brasil. País do verão, invejado & discriminado por nossa morenice, estamos nas ruas fazendo o nosso próprio Inverno, que é para nós mesmos, e para o planeta. Vivemos dias de libertação.