Parada da diversidade musical

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Daniela Mercury e Ellen Oléria rompem paradigmas na Parada Gay paulistana, fazendo shows de música brasileira ao vivo para multidões e falando livremente sobre suas sexualidades.  

 

O domingo foi um dia de sonho realizado para quem vive em São Paulo e é apaixonado pelas inúmeras sonoridades musicais do Brasil. Já são 17 edições de parada da diversidade sexual na cidade – é até maluco de pensar, mas existe uma geração inteira que só conhece o mundo com parada gay.

Nesses 17 anos, já aconteceu um pouco de tudo nesse manifesto coletivo em progresso e movimento. Mas uma das tônicas tem sido sempre o predomínio da música eletrônica tocada por DJs, frequentemente extraída do repertório pop mais raso e aguado da indústria fonográfica norte-americana. No mundo gay se fala em música “bate-cabelo”, e lá se vão quase duas décadas em que a parada se deixou, em grande medida, escravizar por aquele formato modular e cada vez mais anacrônico.

O ano de 2013 ficará marcado como um ponto fora da curva, na menor das hipóteses, ou como instante de uma mudança importante de paradigma, para quem quiser sonhar mais alto. Andando pela parada, eu via carros de “bate-cabelo” meio atirados às moscas e me perguntava: será que neste ano a chuva espantou os libertários das ruas paulistanas?

Não se tratava disso, e fui decifrar o enigma assim que me aproximei do terceiro carro de som, o trio elétrico de Daniela Mercury, e passei a acompanhá-lo aqui do chão. A sensação era de que estava TODO MUNDO ali. Lotação completa, total, esgotada.

Há nisso um efeito extramusical, sabemos: a população gay está em lua-de-mel com Daniela, desde que ela notificou publicamente ao Brasil seu casamento com outra mulher. Motivações à parte, era uma cena a que nunca imaginei assistir nesta cidade tão dura: São Paulo entregue de corpo e alma à axé music baiana e ao cardápio variado de MPB que Daniela canta hoje em dia.

Houve quem reclamasse: o governo baiano patrocinou o trio da cantora e está, portanto, jogando dinheiro do contribuinte no lixo. A mim parece um pensamento tacanho de quem não acredita que uma das missões do poder público seja alimentar a população de cultura, arte, diversão, lazer, descanso, felicidade. Mas deixemos esse lado polêmico da questão de lado, por ora.

Vendo a multidão sacudir ensandecida ao som de “O Canto da Cidade” (1992), me lembrei imediatamente de 13 anos atrás, quando fui convidado, como repórter da Folha de São Paulo, a subir no trio elétrico de Daniela no carnaval de Salvador. Com a axé mais ou menos desgastada, ela tentava se modernizar inserindo música eletrônica no carnaval baiano. Era ousado, mas não soava, digamos, orgânico.

O momento protagonizado desta vez pela potente e imponente cantora de multidões carnavalescas é simetricamente inverso àquele de 2000: sendo apenas quem ela é, sem artifícios mdernosos, Daniela arrastou consigo toda uma população habitualmente identificada com um suposto cosmopolitismo que só fala inglês e com o desprezo (quando não ódio explícito) às brasilidades musicais. “A cor dessa cidade sou eu/ o canto dessa cidade é meu” de repente, não dizia respeito à africaníssima Salvador, mas sim à europeizadíssima São Paulo.

Daniela, que já havia rompido um enorme tabu menos de dois meses atrás, acaba de romper mais um: é mentira que São Paulo e o Brasil sejam irremediavelmente divorciados em termos culturais e musicais. Aliás, acaba de romper mais dois tabus: parada paulistana de diversidade sexual não é só “bate-cabelo” robotizado e pode, sim, ser lugar de show, de trio elétrico e de música ao vivo.

Lembrei, emocionado e choroso, que há pouco tempo voltei a entrevistá-la (por telefone) após 13 anos, e Daniela manifestou, sonhadora (ou será que isto já estava sendo arquitetado?), o desejo de quem sabe um dia liderar, à maneira da parada gay, uma “parada nordestina” em São Paulo, a maior capital nordestina do planeta fora do Nordeste.

Não sei se ela planejou isso e nem se se deu conta disto, mas foi justamente o que Daniela fez na parada gay de 2013. “Tem preto aí?”, provocou, num momento em que criticava a conservação de Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, mesmo depois de ele, nas palavras dela, tanto ter “esculachado” os pretos do Brasil. E, sim, a parada, democrática como só ela, estava lotada de pretos. Parada gay, parada baiana, parada nordestina, parada preta: nesse evento São Paulo se reencontra consigo como ela é, não como a mídia e a maioria de nós costumamos fingir o tempo todo que ela fosse.

À noite, no encerramento, na praça da República, a baiana Mariene de Castro e a brasiliense Ellen Oléria fizeram shows de samba, MPB, rock, black music brasileira etc. Negra, grande e genial artista, Ellen estava sisuda, fechada, aparentemente receosa de permitir que os paulistanos (e turistas) se apaixonassem por ela. Mas não deixou de se colocar com a pureza e a simplicidade que “nine out of ten music stars” evitam desesperadamente ainda hoje em 2013: “É uma alegria, como boa sapatão que sou, dividir este tempo com vocês”.

De volta ao começo, o domingo foi de sonhos realizados para os libertários e para os que acreditam na malfadada MPB como recanto sagrado de expressão de liberdades. Prestes a completar maioridade, a parada gay é gigantesca e importante não porque é gay (ou lésbica ou trans ou bi ou hétero ou assexuada): é importante e gigantesca porque é um espaço único para a expressão de TODAS e quaisquer sexualidades, singularidades, identidades, liberdades.

Daniela Mercury tornou-se de novo importantíssima não só porque é uma excelente artista, mas porque agregou a esse fato a atitude de vir a público não para impor uma identidade qualquer, mas simplesmente para dizer: é meu direito inalienável ser quem eu sou e quem eu queira ser, como é meu direito inalienável, talvez ainda mais importante, poder dizer isso para vocês com todas as letras.

Eu, de meu canto feliz e choramingoso, segui sonhando com a parada de diversidade sexual (e humana, e cultural, e musical) dos meus sonhos ainda não realizados: um ou vários carros para os DJs, mas também muita música AO VIVO em trios elétricos de axé, de samba, rap, MPB, funk carioca, rock’n’roll, brega, tecnobrega, forró, sertanejo, black music, samba-rock etc. etc. etc. Afinal, como poderíamos ser individual/sexualmente livres, no duro, se não fôssemos também musical/culturalmente livres, e vice-versa?

(Texto e fotos publicados originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 

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