Acostumada à pressão dos trios elétricos, a cantora baiana critica o assalto de Marco Feliciano à CDHM e fala de amor e sexualidade sem pedir licença ou desculpas a ninguém.
É como se o pastor Marco Feliciano houvesse aberto sem querer uma insondável caixa de Pandora. Dela passaram a sair monstrengos grotescos, fantasmas e males de todos os tipos – mas também, entre eles seres misteriosos e figuras maravilhosas que ainda não conseguimos compreender muito bem. Desde que o pastor (ex-)declaradamente racista e homofóbico tomou posse como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, a caixa aberta não parou mais de cuspir preconceitos, xingamentos, ofensas, segredos, protestos, manifestações, passeatas, beijos…
Depois de tanto alvoroço, eis que a cantora baiana Daniela Mercury foge esplendorosa dos domínios de Pandora. “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiraçãoo pra cantar”, contou via internet a artista, com a mesma fibra de quem tem força de segurar, do alto do trio elétrico, multidões por horas e horas e horas e dias e dias e dias seguidos. Alguém já disse que cantoras de carnaval têm de soltar a voz como homens, para se impor diante de imensa e intimidadora multidão, e é o que Daniela faz agora, mais uma vez. Ela se referia à jornalista Malu Verçosa, sua atual companheira: “Comuniquei meu casamento com Malu para tratar com a mesma naturalidade que tratei outras relações. É uma postura afirmativa da minha liberdade e uma forma de mostrar minha visão de mundo”.
Daniela não se utilizou de intermediários midiáticos para falar de sua vida real. O Instagram lhe serviu de palanque e diferencia este momento, por exemplo, daquele, controverso, em que a também cantora Ana Carolina se disse bissexual à revista Veja e atraiu para si a irritação tanto de heterossexuais quanto de homossexuais. Vejamos bem, Daniela não veio a público declarar “eu sou homossexual”, “eu sou bissexual” ou “eu sou heterossexual”. Ela disse, apenas e simplesmente, que está casada com Malu (as leis atuais, por incrível que possa parecer, permitem e as protegem). Você não tem que gostar ou desgostar (a menos que queira invadir a vida delas). Você só tem que aceitar.
Daniela já foi casada com homem. Hoje está casada com mulher. Tem cinco filhos, três deles adotados. É embaixadora brasileira da Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. Ao sair da caixa de Pandora com nada mais nada menos que a verdade, se colocou diante de cada um de nós, mas também, mais especificamente, diante de cada um de seus filhos e de cada uma das crianças abrigadas sob o guarda-chuva da Unicef. Ela sabe a responsabilidade que tem, e não nos venham subprodutos obscurantistas da caixa de Pandora fazer confusão entre homossexualidade e pedofilia (existem pedófilos homossexuais, bissexuais, heterossexuais etc.; alguns padres e treinadores de futebol, por exemplo, abusam de meninos por razões que só eles conhecem, mas também porque meninas não estão à disposição).
“Numa época em que temos um Feliciano desrespeitando os direitos humanos, grito o meu amor aos sete ventos. Quem sabe haja ainda alguma lucidez no Congresso brasileiro”, cravou Daniela, perfeitamente ciente do alvo em que mira. O jornal Correio Braziliense captou no ar o que está acontecendo: saiu do armário junto com ela (infelizmente, apenas pelo lado feminino) e fez poesia hiper-realista em página inteira: “O amor nos tempos de Feliciano”. A disputa que se trava aqui é entre quem tem a defesa dos direitos humanos (quaisquer) como nosso bem mais precioso e entre quem se acostumou, voluntária ou involuntariamente, a pisoteá-los. Ouvi quem comparasse a preocupação com os direitos humanos à “criação de lesmas albinas na Polinésia” – me soa um jeito enviesado e envergonhado de se declarar reacionário.
Uma vez ouvi de um ator global que conheço meio por coincidência que “80% da Globo é gay” – imagino que estivesse falando em termos gerais, sobre funcionários que são atores, jornalistas, faxineiras, músicos, camareiras, maquiadores, executivos etc. Discutir se eles podem ou não ser gays ou héteros ou bis é, com o perdão do trocadilho infame, debater o sexo dos anjos. Eles são o que são, queira você ou não. O xis da questão não é esse: se 80% da Globo (da MPB também?) é gay e nas páginas da revista Caras só vemos casais globais heterossexuais exibindo suas casas e suas felicidades, alguém está enganando alguém nesta história.
Nasci no interior do Paraná. Diferentemente de Daniela, tenho sido gay desde que me conheço por gente. Até meus 20 e poucos anos, pensava que os únicos gays que existiam no mundo éramos eu, Clodovil e Clóvis Bornay. Eu não me sentia nada bem com essa constatação. Sou do tempo em que Vange Leonel cantava “Noite Preta” (1991) na abertura da novela Vamp. Só depois de algum tempo fui concatenar que ela formava um casal com a jornalista (e sua parceira musical) Cilmara Bedaque. Hoje tenho orgulho de ser amigo das duas, por intermédio de conexões que passam pela Folha de São Paulo e pela gravadora Sony, pelo jornalismo e pela MPB. Antes de ser jornalista em São Paulo, eu intuía vagamente uns romances “proibidos” entre cantoras e atrizes, ou entre compositorees e diretores de TV. Mas eles nunca falaram abertamente sobre isso (ou, sei lá, os jornais e revistas não publicavam o que eles falavam). Como repórter, sempre fiquei sem jeito e sem ação para perguntar sobre a sexualidade de algum entrevistado.
O que estou tentando dizer, emocionado e meio confuso, é que a novidade de Daniela Mercury é o que de mais lindo saiu até agora da caixa de Pandora de Marco Feliciano. Ontem foi emocionante ver oJornal Nacional (que não costuma ser gentil com todo mundo) tratar respeitosamente a simples declaração da intérprete de “Swing da Cor”, “Menino do Pelô” (1991), “O Canto da Cidade” (1992), “Vulcão da Liberdade” (1994), “Crença e Fé” (2000) etc. etc. etc. Talvez você já tenha dançado, sido feliz e/ou se irritado ao som da voz dela – nada disso faz diferença, você e ela e eu somos o que somos.
O poder excepcional que a caixa de Pandora está expulsando desta vez é o de, além de tudo, nos colocar de frente com nossas próprias hipocrisias e incoerências. Não gosta de gays, mas ama rock ou MPB e vê Globo e Hollywood o dia inteiro? Estamos de olho em você.
Moram hipocrisias, inclusive, dentro do heterogêneo mundo LGBT, seja quando seus representantes igualam todos os evangélicos (ou religiosos quaisquer) como seus demônios particulares, seja quando vociferam contra absurdos felicianos bem guadados e escondidos dentro de casa. Calar-se sobre Feliciano é autoagressão das mais duras (comparável às que o pastor comete contra si mesmo). Vociferar “fora, Feliciano!” escondido de familiares, amigos, colegas de trabalho, patrões (e fãs) pode parecer fácil ou confortável (não é). Fazer como fez Daniela Mercury mata mais preconceitos que 100 milhões de gritos de “fora, Feliciano!” partidos de dentro do armário.
(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)
Nem toda religião é dogmática e conservadora,o espiritísmo (kardecismo),nunca condenou a homossexualidade,e sim tenta entender porque uma pessoa precisa passar por tal experiência na terra.