Na terra de Luiz Gonzaga

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O enviado especial de FAROFAFÁ queria escrever sobre os 100 anos de nascimento do rei do baião. Decidiu ir para Exu, no sertão pernambucano, onde colheu histórias que conta agora.

O cabra macho que era, um matuto a vida toda, o véi Luiz Gonzaga não era de ir a hospital. Preferia ir dando um jeito com remédios ou tomando chás. Mas as pernas doíam e os shows, em meados dos anos 1980, eram feitos sentados e quase sem pegar nos 10 quilos de uma sanfona de 120 baixos. O rei do baião estava com 77 anos e o câncer na próstata já tinha avançado sobre o tecido ósseo. Os anos de osteoporose também não ajudavam. Em maio de 1989, ele passou mal logo depois de uma apresentação em São Lourenço da Mata, a uns 40 quilômetros da capital pernambucana. Ele precisava ser internado.

Luiz Gonzaga - Foto Memorial Luiz Gonzaga

Luiz não queria ir para Recife, mas voltar para Exu. Reginaldo Silva, o empresário que estava com ele havia 12 anos na estrada, teve que intervir. Só que contrariar o velho sanfoneiro significava enfrentar um homem autoritário, de fala violenta, tinhoso que só. “Falei que se ele passasse mal não daria tempo de trazê-lo ao Recife. Ele bateu o pé, mas como já tinha passado mal três vezes durante o dia, teve que ceder e ir para o Recife”, lembra Silva, em entrevista exclusiva para FAROFAFÁ. O rei do baião começava a se despedir do seu Araripe.

“Ele não queria mesmo ir para o hospital, fazer os exames. Me disse que dona Helena iria se zangar se ele não voltasse pro sertão e não queria chateação pro lado dele. Eu disse que iria conversar com ela e dar uma explicação que fosse boa”, rememora Silva. Mas o empresário não sabia bem como faria isso. O problema se chamava Edelzuíta Rabelo. E o ciúme de dona Helena – a primeira dama do baião, com quem se casou em 1948 – era famoso no meio artístico. Porém, ela e Luiz já estavam separados havia alguns anos e o namoro do ex-companheiro com a advogada caruaruense durava 12 anos. Naquele mês, o desquite saiu no papel e Luiz Gonzaga pode, enfim, tornar público seu relacionamento com Edelzuíta.

O curioso dessa história é que Luiz e dona Helena ainda moravam juntos, no Parque Aza Branca, em Exu. E o clima entre os dois não era fácil, mas um se preocupava com o outro. Insegura, de personalidade forte e viciada em remédios para a ansiedade, dona Helena quis saber porque Luiz não havia voltado com a banda. Reginaldo Silva teve que explicar que passou mal, mas disse que não iria falar mais nada. “Ela queria mesmo era saber onde ele estava”, afirma o empresário. Mas ela sabia. Era na casa de Edelzuíta, na praia de Boa Viagem, para onde o sanfoneiro nunca levou nem uma calça, porque em todo o tempo de relacionamento não queria dar a entender que estava vivendo com duas. Isso já era seu lado cristão, vindo do catolicismo, um traço forte na vida e na obra do cantador.

Mas não havia mais chás ou remédios que aliviassem a dor de Luiz. Logo, foi para um hospital no Recife e já nos primeiros exames os médicos decidiram que ele teria de ficar internado. Dona Helena chegou a visitá-lo, mas quem cuidava dele era mesmo Edelzuíta. Foi uma internação longa, daquelas que aperreava o rei do baião. Tanto que, num desses dias, inventou de ir a um show, no Teatro Guararapes, quando se apresentou com Gonzaguinha, Alceu Valença e Dominguinhos. Era um 6 de junho. Tudo contra a vontade e opinião dos médicos. Luiz foi na cadeira de rodas e não pegou na sanfona, mas não podia faltar ao que foi seu último show.

Era o fim de um dos pilares da música brasileira, com um legado muito maior que a sua própria obra. E uma história repleta de idas e vindas de um jovem cabra macho que um dia, por causa um pileque, foi armado tirar satisfação com um coronel que tinha falado mal dele, por causa do namoro do “muleque tocador de fole sem futuro” com sua filha. Dona Santana, sua mãe, não gostou nada e lá foi dar uma surra no filho pretensioso. Apanhar da mãe, sempre mais rígida, não era problema. O ruim foi ver seu Januário, o pai, entrar no quarto e continuar a pisa. Luiz, que só tinha 17 anos, decidiu fugir de casa de tanta vergonha. Ele nunca tinha apanhado do pai. Pior, todos os amigos souberam. Ele armou um plano de fuga e só uma pessoa sabia, Priscila, vizinha e amiga de infância, que tentou fazê-lo mudar de ideia. “Eu falei pra ele não ir, que era perigoso”, lembra a ex-doméstica, hoje com 97 anos, morando no centro de Exu. “Mesmo assim ele foi, mentiu que ia tocar no Crato, no Ceará, e não voltou mais. Seu Januário foi atrás dele, mas não encontrou, voltou pra casa chorando, todo mundo viu. E mãe Santana, essa sim ficou triste, mais de ano com cara triste, porque se sentia culpada”, recorda-se.

Até então, Luiz só tinha trabalhado na roça, cuidado de cavalos e desde os 8 anos acompanhava o pai nas festas, tocando e juntando até um certo dinheirinho para família. Não tinha registro de nascimento. Não sabia ler, nem escrever. Seu patrimônio era uma sanfona de 80 baixos, que conseguiu com a ajuda do coronel Manoel Ayres de Alencar, que pertencia à família que fundou a cidade, em 1709. No Crato vendeu a sanfona e se alistou no Exército, mentindo a idade. Jurou que estava com 21 anos. Lá ele tinha a segurança de uma cama, comida, roupas e por sua disciplina – que tinha adquirido com sua mãe, que não dava moleza – só foi pegar numa sanfona com oito anos de serviço militar. Tinha até esquecido como se manuseava o fole. Quando deu baixa, depois de quase dez anos, decidiu ir para o Rio de Janeiro, tentar a vida artística com uma sanfona debaixo do braço.

Em dois anos de solo carioca conseguiu entrar pela primeira vez num estúdio de gravação. Foi chamado às pressas para substituir um sanfoneiro. Assim, meio tímido, lá no fundo da canção “A viagem de Genésio”, da dupla Genésio Arruda e Januário França, ele estreou. E continuou lá no fundo, acompanhando os cantores, sendo músico free lancer de estúdio por mais cinco anos. Em 1946 ele consegue gravar como cantor. Ou melhor, gravar sua voz num disco. Porque cantor mesmo, de sucesso, demorou mais alguns anos. Mas ele não esperou o estrelado para dar um jeito de trazer toda a família para o Rio de Janeiro. Bancava tudo. Cumpria a sina do povo nordestino, que sempre que fica bom num lugar já traz família, amigos e quem mais puder, para de alguma forma compartilhar o momento bom.

Fátima Marcolino, filha do compositor Zé Marcolino (Caruaru/PE) - Fotos Dewis Caldas

Entrou os anos 50 e sua casa recebia muitos artistas, políticos e empresários. Passou a levar cantores, sanfoneiros e compositores nordestinos para tentar a vida no Rio, onde cedia a casa, bancava tudo, só para ver o cara se desenrolar. Fátima Marcolino, filha do compositor Zé Marcolino, autor de clássicos como “Numa Sala de Reboco” e “Légua Tirana”, lembra quando ela e toda a família saíram de Serra Talhada (PE) e foram, em 1961, morar na casa de seo Luiz. “Ficamos nove meses lá, entre as várias casas que o seo Luiz tinha. Toda a família dele morava lá, mas aí meu pai não gostou e decidiu voltar.” A aventura em terras cariocas teve um início difícil, mas também uma rápida ascensão, seu momento de glória, de rei, e enfim, o declínio. Até que depois de 43 anos longe de casa, ele decidiu voltar para Exu, seu Araripe, seu relicário.

Em uma entrevista à jornalista Leda Nagle, dois anos antes de morrer, o véi Luiz disse que a melhor coisa do mundo é conseguir alguma coisinha na cidade grande e poder voltar para sua terra. Como um sertanejo pé de serra, tentava justificar porque tinha voltado a morar em Exu, sertão do Pernambuco. Mas nem o povoado do Araripe, nem o próprio sanfoneiro eram os mesmos. Nasceu como um pobre sem futuro, morreu como um rei. Tinha uma vaidade de artista, daquela que se revela mesmo longe do palco. Nos sete anos que ficou por lá, até morrer em 1989, Gonzagão era como uma segunda prefeitura da cidade, ou melhor, como um homem santo, que resolvia milagres.

José Praxedes de Souza, ex-vaqueiro de Luiz. (Exu/PE)

“Todo dia aparecia gente aqui pedindo coisas”, lembra o ex-vaqueiro do rei, José Praxedes de Souza, nascido na fazenda Caiçara, a mesma que Luiz nasceu. “Era de comida a dinheiro, às vezes uma bicicleta, uma ajuda para construir a casa. E ele ajudava todos. Se sentia em dívida pois foi o Araripe que deu tudo pra ele”, recorda o funcionário da família de Luiz de 1968 até hoje. Era ele quem cuidava do gado e dos cavalos de Gonzagão e agora, aos 80 anos, é o responsável por cuidar da casa de Januário, que é um dos museus aqui no Parque Aza Branca.

O Parque Aza Branca foi um sonho antigo de Luiz. Ao voltar para Exu construiu uma casa bem na porta da cidade, com apartamentos separados, lugar para ensaiar e receber visitas. E, claro, um lugar amplo para fazer festança. Além da propriedade, também comprou mais cinco fazendas, terrenos pela cidade, construiu um posto muderno, segundo ele, e vários outros pequenos empreendimentos. Mas logo teve que vender as fazendas e ficou meio apertado de grana. “Ele era desorganizado. Por isso mesmo que casou com Dona Helena, que era contadora, organizadinha”, acrescenta Reginaldo Silva, que foi o empresário e o homem que resolvia os shows, a divulgação e as turnês de Gonzaga desde 1977.

Quando perguntado sobre quanto custava cada empreendimento que inventava ele respondia que não estava nem somando. “Se for ver antes quanto custa aí eu não faria nada”, explicava. Hoje, enquanto escrevo este texto, faltando apenas um dia antes dos seus cem anos de nascimento, percebo que o que ele queria era preparar a cidade para um novo momento, para uma Exu terra de Luiz Gonzaga, que antes dele só tinha a historia de que a avó de José de Alencar tinha nascido lá. Com o rei do baião, a cidade entrava no circuito cultural e turístico. O Parque Aza Branca vive hoje do universo gonzagueano, tem dois museus, o mausoléu onde ele está enterrado, tem a casa aberta para visitação e um palco para show, restaurante e uma pousada.

Compositor João Silva, Gonzagão gravou 88 músicas dele (Recife/PE)

Exu é muito importante na vida de Luiz, porque foi lá que ele se reencontrou. Nos anos 1970, seus discos não vendiam bem, estava fora da mídia. Nos seus álbuns, tocavam até boleros e músicas românticas, bem diferente daquele Luiz Gonzaga pé-de-serra, o homem do baião. “Até que fizeram uma reunião na sede da RCA, chamaram os principais compositores dele, os arranjadores, para descobrir porque ele só vendia 2 mil, 3 mil discos”, conta o produtor e parceiro que mais Luiz gravou, João Silva [88 musicas dele gravadas pelo rei]. “A conclusão foi que ele tinha se afastado do velho Luiz, tinha que voltar a tocar instrumento de coro, lá do sertão mesmo, ser o antigo Gonzaga”. E ele estando no Exu, de volta, pode rever o seu mundo, se reavaliar, se reencontrar consigo mesmo.

Depois da reunião, em 1982, lançaram o disco “Danado de Bom” que vendeu quase 800 mil cópias. Era o retorno do rei, que durante a década de 80 fez um clássico atrás do outro. No álbum seguinte, adotou seu último nome artístico: Gonzagão. Onildo de Almeida, que também estava naquela reunião, foi um importante compositor nessa nova e última fase de Luiz. Hoje aos 84 anos e com mais de 641 composições dele gravadas por artistas como Marinês (Rainha do Xaxado), Trio Nordestino, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Jorge de Altinho, Falcão, o também poeta e radialista lembra do primeiro encontro com o amigo:

“Ele era impetuoso, pra frente. Tinha poucos amigos, mas se dava bem com todo mundo. Certa vez eu estava na rádio onde trabalhava, e ele apareceu lá. Tava dando uma entrevista quando meu irmão colocou a música ‘A Feira de Caruaru’, que eu tinha feito dois anos antes, em 1955. Era eu cantando na gravação porque não tinha achado alguém para cantar. Ele chegou na sala e perguntou: ‘Por que você não me mostrou isso antes?’ E começamos uma amizade de mais de trinta anos”, lembra. Luiz gravou 23 musicas de Onildo, dentre alguns clássicos como “Hora do Adeus”, “Capital do Agreste” e “Regresso do rei”. “O Luiz Gonzaga é imortal, porque seu legado é. E eu estou no meio dessa obra.”

Compositor de

Ao cantar o Nordeste, Luiz deu um novo significado ao universo do sertão, da vida nas fazendas. A fome, a seca, os sonhos e a migração, tudo isso revelava uma visão política e social de um pedaço de terra que era pouco conhecido no restante do Brasil. A jornalista francesa Dominique Dreyfus, que fez a mais importante biografia sobre o rei do baião explica esse desconhecimento. “Na década de 40, as pessoas do norte não sabiam o que acontecia no sul, só ouviam falar, só ouviam histórias de que era uma terra de oportunidades. E quem era do sul, achava que o Nordeste era uma terra sem lei, de cangaceiros, que não existia ordem. A música de Gonzaga começou a mostrar um novo aspecto deste Nordeste”, explica a jornalista, que também é doutora em música brasileira.

“Gonzagão reprocessou os ritmos, urbanizou o que era lá do pé-de-serra e atravessou as fronteiras do Nordeste”, acrescenta o jornalista, crítico musical, produtor e professor universitário Bruno Nogueira, confirmando a função social e didática das canções. “Desde então, o sertão foi percebido de outra maneira, menos engessado, como um lugar poético e artístico”, disse em entrevista no pátio da AESO (Faculdades Integradas Barros Melo), em Olinda, que ainda este ano vai lançar um tributo ao rei feito pelos alunos do curso de produção fonográfica. “Então o legado que ele deixou não é só estético, mas também da forma de fazer música. E isso é presente em todas as gerações que surgiram depois”, acrescenta.

Apesar de voltar a fazer sucesso nos anos 1980, o rei já estava cansado. Já tinha pensando em parar de cantar em 1967, quando os cabeludos estavam em alta na TV e nos jornais, quando ninguém queria mais saber de baião, só de rock e Jovem Guarda. Luiz Gonzaga não aparecia na imprensa e o rei se sentia acuado. “Ele chegou pra mim e disse que queria uma música para parar de cantar. Eu disse: que conversa é essa?, Luiz”, lembra Onildo. “É que esse pessoal da imprensa do Rio de Janeiro não quer mais saber de mim, quer saber das novidades, então vou parar de cantar e voltar pra onde eu vim”, afirmou Luiz. Onildo, em um primeiro momento, disse que não ia fazer a música, porque não concordava com a ideia. Mas depois de um encontro com seu parceiro, o também caruaruense Janduhy Finizola, surgia a canção “Hora do Adeus”, que fez o sanfoneiro cantar aos quatro pulmões “Vou juntar tudo dar de presente ao museu/ é a hora do Adeus/ De Luiz rei do baião”.

A história, contudo, não terminaria nesse ponto. Não demorou para que o rei do baião percebesse que os novos cabeludos, na verdade, tinham a sua música no DNA e não se envergonhavam em dizer para a imprensa que a grande inspiração, da Tropicália, por exemplo, vinha também do Nordeste cantado por Luiz Gonzaga. E não só, mas também a indumentária, o estilo, a forma de pensar a música. “Até para a bossa nova ele era um pilar, a própria ‘Bim Bom’, de João Gilberto, era um baião”, explica Reginaldo Silva. “Aí foi quando os cabeludos começaram a ir atrás de Luiz, Gilberto Gil, Caetano, Tom Zé. E ele ficou todo taludo, orgulhoso, falava pros amigos que era o pai musical de todos esses.” Era um reencontro com o rei. Mais que isso, era a própria música de Luiz Gonzaga ganhando novos aspectos, se evoluindo, com um legado que até hoje, 23 anos após sua morte, mostra sua vitalidade.

Mas o homem Luiz Gonzaga do Nascimento tinha de partir. Ele morreu depois de ficar 42 dias internado no hospital. Teve uma parada cardiorrespiratória em 2 de agosto e – segundo os médicos – foi tocar sanfona para o “padim” Cícero.

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