AO LIVRO VERDE

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O ÚLTIMO LIVREIRO DO IMPÉRIO

Há quase 170 anos, numa ruazinha no centro de Campos (RJ), abre-se uma livraria que nunca deixou de funcionar nem sequer um dia

Jotabê Medeiros

Enviado Especial

CAMPOS DOS GOYTACAZES

Comenta-se que José do Patrocínio, filho e cidadão de Campos dos Goytacazes, comprou ali na livraria Ao Livro Verde a pena com a qual a Princesa Izabel assinaria a Lei Áurea, em 1888, libertando os escravos no Brasil. E olha que, àquela altura, a livraria já tinha 44 anos, e já tinha durado mais que a imensa maioria das livrarias atuais do Planeta, as Barnes and Noble e as Borders que morrem como moscas face às mudanças da era digital e do e-commerce.

A história da caneta de Patrocínio é meio lendária, mas quase todo o resto ainda está por ali para ser comprovado, como os três balcões originais da antiga loja, uma cristaleira-palito de perfumes (na época, perfume se vendia em livraria, e não em farmácia), fotografias antigas por todo lado, a fachada original com o nome do estabelecimento em relevo. Em 1995, o Guinness Book reconheceu sua longevidade e lhe concedeu o título de A Livraria Mais Antiga do Brasil.

Os tempos ditaram as mudanças, pela sobrevivência: apesar da oferta de volumes novinhos de Getúlio, de Lira Neto; Marighella, de Mário Magalhães; Verão da Lata, de Wilson Aquino; e da autobiografia de Neil Young; a loja Ao Livro Verde é hoje mais papelaria do que livraria. Vende livros didáticos, arquivos de papel e pen-drives. Tem um pequeno café e um computador para acesso à internet. Possui 27 funcionários, a maioria especializada no atendimento de papelaria, sem intimidade com a literatura.

A uma quadra do Rio Paraíba do Sul, a livraria chegou a ser a jóia da intelectualidade portuguesa da corte que atracava no antigo Cais do Imperador. Foi para esse público que foi criada, em 1844, pelo empreendedor português José Vaz Corrêa Coimbra. Citada pelo escritor José Cândido de Carvalho (outro filho de Campos) no livro O Coronel e o Lobisomem, a livraria fluminense Ao Livro Verde foi inaugurada em 13 de junho de 1844, e pertenceu a três famílias – a atual, a família Sobral, a comprou do alemão Max Zuchner e a administra desde os anos 1940. Um anúncio no jornal O Monitor Campista, de 1844, já mostrava a vocação futura do estabelecimento: a loja oferecia, além de livros e serviços gráficos, “miudezas, lindo sortimento de jóias, drogas medicinais e para pinturas e o legítimo rapé Bernardes”.

A ruazinha onde fica o predinho já teve três nomes (Barão de Cotegipe, Rua Bananal e a atual denominação, Rua Governador Teotônio Ferreira Araujo) e a numeração foi mudando, mas a livraria nunca se mexeu um milímetro do seu lugar. “Eu não posso acabar com essa livraria, ela vai para 200 anos”, diz o atual proprietário, Ronaldo Sobral. No momento, a rua está em obras, estão alargando as calçadas e revitalizando, mas os trabalhos prejudicaram sensivelmente o movimento, queixa-se o comerciante.

O balconista Carlos Américo Machado Franco, de 76 anos, começou a trabalhar ali aos 16 anos. “Eu vinha de bonde. Atendi aqui clientes que tinham 95 anos, e que eu conhecia da vida toda. Tinha muitos do tempo das usinas, mas as usinas fecharam”, conta Franco. O comércio que mais resistiu foram duas casas de ferragens e duas farmácias, que passaram do século 19 para o século 20, mas que também já fecharam.

Muitos foram até ali conferir a lenda da livraria que nunca fechou, do acadêmico Austregésilo de Athayde ao escritor Carlos Heitor Cony e o cartunista Ziraldo, que deixou um desenho e um autógrafo num cartaz da livraria. “Aqui reúne uma turma muito boa, vem o pessoal da Academia Campista de Letra”, orgulha-se o fotógrafo aposentado Wilton Moreira, de 85 anos, um dos mais antigos clientes – tem mais de 50 anos que passa por ali diariamente, toma um cafezinho e pega os jornais para ler.

Em 1988, o Primeiro Encontro Internacional de Tradutores levou até a Ao Livro Verde intelectuais do mundo todo, que deixaram seus nomes no livro de visitantes: a francesa Alice Raillard, o alemão Curt Meyer-Clasen, o italiano Mario Merlino, o dinamarquês Per Johns. Os jovens poetas e escritores da cidade são habituês, mas compram pouco. “Intelectual não tem veia comercial. Livro raro é coisa de colecionador, a casa aqui sempre foi fiel ao fundador”, diz Ronaldo Sobral, o proprietário, de 65 anos. O prédio foi tombado pelo município, mas nunca recebeu nenhuma atenção dos governos do Estado e Federal.

Ao Livro Verde passou por duas guerras mundiais, pelas revoluções todas, pela ditadura militar, pela dance music, pelos livros de auto-ajuda. “E nunca fechou!”, sentencia Ronaldo Sobral. Ele tem três filhos, um advogado, uma especialista em informática e um gerente de banco. Se vão prosseguir com a tradição? “O passado já passou, e o futuro quem sabe?”, diz o livreiro. “Mas é muito difícil, é uma luta. Tem hora que dá vontade de desistir”, admite.

“Quando o Kadafi morreu, lembraram que ele tinha escrito um certo Livro Verde e telefonaram para mim, não sei se foi da Folha de S.Paulo ou do Estado, para perguntar o porquê do nome da loja”, diverte-se às gargalhadas Sobral. O nome já era um século mais velho que o ditador líbio, mas ninguém sabe sua origem. Não há referência bibliográfica. O jornal Monitor Campista, o primeiro a registrar uma oferta da livraria, em sua abertura, já começou com um deslize digno de um “Erramos”: chamou-a de Loja do Livro Verde, quando na verdade a própria fachada dizia Ao Livro Verde.

Reportagem publicada ontem no jornal O Estado de S.Paulo

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