Bia Abramo comenta a morte de Magro, do MPB 4, que cantou “Roda Viva” com Chico Buarque em 1967 (na foto, é o primeiro à esq.) e foi o Jumento d’Os Saltimbancos.

 

Era 1995, e estávamos num carro indo para um sítio perto de São Paulo. Nessa pré-história da música digital, os discos, sobretudo de MPB, eram relançados como CDs em poucas quantidades e sumiam logo do mercado. Portanto, se você não tinha determinados discos em vinil por qualquer que fosse a razão (no meu caso, três irmãos mais velhos que saíram da casa dos meus pais antes de mim), tinha de ficar muito atento aos relançamentos – e correr às lojas.

Nesse dia, alguém tinha acabado de comprar o CD d’Os Saltimbancos e botou para tocar no som do carro. O percurso de mais ou menos uma hora até o sítio foi pontuado pelas vozes (ruins) de cinco adultos em torno dos 30 anos que acompanhavam palavra por palavra (e com pausas e entonações certas) as canções e as falas todo o disco. Nem respirávamos.

Ao longo daquele final de semana, ouviríamos mais umas tantas vezes e nos reapaixonaríamos, como já tinha acontecido com cada um de nós aos 12, 10 ou 8 anos, pela Gata de Nara Leão, a Galinha de Miúcha, o Cachorro de Ruy e, sobretudo, pelo Jumento de Magro.

Os Saltimbancos, a versão setentista e de esquerda da tradicional história infantil dos Músicos de Bremen, foi uma espécie de  bildungsdisco”, o disco que fez a formação, nesse caso política, de algumas gerações de brasileiros que hoje têm entre 40 e 50 anos. E o Jumento, na voz do Magro, foi o herói justo, modesto, democrático para esses mesmos brasileiros em 1977  – pelo qual ainda, em 1995, ansiavam.

A memória desse dia, das vozes desafinadas, nostálgicas e emocionadas, voltou hoje imediatamente com a notícia da morte do Magro do MPB 4. As linhas protocolares e mal traçadas das primeiras matérias que li on line não mencionavam sua participação nos Saltimbancos. Mau sinal, pensei. Significa que esses redatores consultaram rapidamente o verbete da Wikipedia sobre o MPB 4. E não havia ninguém, nas redações, que tivesse uma lembrança original do Magro – nem que fosse como essa minha, fragmentária e, talvez, injusta. Parcial porque, claro, a carreira do Magro não se resumiu a sua brilhante atuação como Jumento.

Desde 1964, quando formou o MPB 4 ao lado de Aquiles, Ruy e Miltinho, Antônio José Wahgabi era a segunda voz e fazia a direção musical do grupo. O MPB4 era a encarnação do nacional-popular: diretamente herdeiros da tradição dos grupos vocais da bossa nova, nasceram sob a égide do CPC (Centro Popular de Cultura). Participaram dos festivais dos anos 1960 secundando artistas da ala protestista e nacionalista – é deles, por exemplo, o arranjo vocal vertiginoso que dá relevo ao fio de voz de Chico Buarque em “Roda Viva”, segundo lugar no festival de 1967 da TV Record.

Ao longo dos anos 1970, o conjunto prosseguiu ao lado da MPB de resistência, tanto nas escolhas de repertório de seus discos como nas parcerias – entre elas, uma das mais marcantes, novamente com Chico, aconteceu no espetáculo Construção, em 1971.

Injustamente, o MPB 4 era muitas vezes confundido com um grupo de acompanhamento vocal para outros cantores. Não era. Era mesmo um grupo vocal, de notável coerência musical, que criou interpretações definitivas para certas canções e deu relevo a compositores estreantes – é deles, por exemplo, a primeira gravação de uma música de Aldir Blanc, “Amigo É pra Essas Coisas” (1970).

Algumas canções emblemáticas dos anos 1970 têm a textura das vozes de Magro, Aquiles, Ruy e Miltinho – “Pesadelo” (1972, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro), “San Vicente” (1972, de Milton Nascimento e Fernando Brant), “De Frente pro Crime” (1974, de João Bosco e Aldir Blanc).

A carreira de Magro, bem como a do MPB 4, prosseguiu na mesma coerência desde lá, mesmo que a MPB (que levavam tão a sério a ponto de estar cravada no nome do grupo) tenha entrado numa certa baixa de prestígio e público desdeos anos 1980. Coerência é uma daquelas palavras ruins de usar, uma vez que seu sentido já foi esgarçado pelo mau uso. Mas às vezes parece se aplicar a determinadas trajetórias que permanecem íntegras, mas não estanques, e não se deixam abalar com facilidade.

E, não fosse tudo isso, Magro ficou no afeto e na memória de muitas crianças dos anos 1970, como o Jumento, o explorado rebelde, herói sem vaidade e líder não-autoritário. Hi-hó!

 
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5 COMENTÁRIOS

  1. HI Hó, realmente fará uma puta falta! E se a Bia lembra, imagina a Beá que era a irmã do colega do Chico Buarque na FAU e que ia aos festivais de vela do namoro do querido irmão.

  2. E eu, nascida no fim dos anos 70, filha de pais sem lenço e sem documento, tive o prazer de redescobrir a beleza de Os Saltimbancos com minha filha de 1ano e 10 meses. Apresentada ao quarteto pelo tio erudito, me emociono cada vez que ela canta: “jumento não é, jumento não é o grande malandro da praça… I-ó”
    Belo texto de homenagem. E podes ter certeza que o lindo e justo jumento de Magrão jamais será esquecido!

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