Carlinhos, saia vestido de mulher, e era tratado como uma mulher. Parecia com a Maria Bethânia

Tive um amigo, que conheci durante o curso ginasial, Carlinhos. Quando viemos estudar em São Paulo, o Carlinhos teve coragem de assumir que era gay. E radicalizou na maneira de vestir e se comportar. Passou a se maquiar, e se descobriu como mulher, aprisionada em corpo masculino.

Aí inventou de tomar hormônio! Lembro de discutir com ele por causa disso, achava que fazia mal, era perigoso… Apesar disso, algumas vezes, acabei eu mesmo aplicando as injeções nele, por medo que ele se machucasse ao se auto-injetar. Não chegou a aplicar silicone, mas o hormônio desenvolveu seios, cintura, etc, chegando a ficar com uma aparência bem feminina.

Quer dizer, uma aparência completamente feminina: ele saia vestido de mulher, e era tratado como mulher, sem a menor desconfiança. Parecia bastante com a Maria Bethania, daí seu nome de guerra: Betha Pickles. E ele acrescentava: Betha Pickles, a conservada em álcool!!!

Um pouco depois surgiu o Ney Matogrosso, os Dzi Croquetes, quer dizer, o panorama estava mudando, São Paulo não era mais aquela cidade que tentou linchar o Flavio de Carvalho quando ele desfilou com sua saia pela pela praça do Patriarca. Já se permitia alguma diferença.

O Carlinhos era um atormentado, devastado por suas paixões não correspondidas, acabou se entregando ao alcoolismo, e dele não tenho mais notícias, provavelmente, desse mundo já partiu. Sempre lembro com muito carinho dele, um companheiro de primeira hora das nossas transgressões, na grande ruptura nos anos 70! Fizemos teatro juntos no ginásio, e tivemos a convivência de ir a brincadeiras dançantes, quando ele, ainda confuso com sua sexualidade, tentava namorar as garotas, jogar futebol, brigar, cuspir no chão, posar de macho alfa.

Lembro de algumas músicas: “Twist and Shout”, com os Beatles, o Carlinhos me mostrou logo que nos conhecemos, na sala de minha casa em Londrina, em plenos 14 anos, dançando o twist, quase em transe, me deixando desconcertado.

A “Ave Maria” de Schubert. Ele gostava muito dessa “Ave Maria” e, numa apresentação no grêmio da escola, declamou um poema sobre as Mães, com o José Dirceu Bernardino, que tocava acordeon muito bem, tocando uma versão dessa “Ave Maria” para acordeon.

Janis Joplin cantando “Summertime”. Lembro dele me mostrando na sala da casa dele, entusiasmadíssimo, falando da introducão com as guitarras, e da capa do LP, do R. Crumb.

E como ele gostava de cantar “Tu me acostumbraste”, que o Caetano havia gravado, e com a qual ele se identificava muito. Meu Deus, quanto ouvimos ele cantarolando isso…

E o momento de apoteose dele em Londrina, quando durante um show feito pelos músicos locais “A boca do bode”, ele entrava desfilando, travestidíssimo enquanto o Robinson Borba apresentava Babynete. Havia um momento na canção em que o Robinson discursava:

Após breve temporada por Paris, Montevideu e Nova York…
Eis-a de volta, linda e maravilhosa como há quarenta anos atrás…
Suas lantejoulas brilham!
Seus paetês ofuscam!
Vamos crianças, não tenham medo… Aproximem-se!
Aproximem-se!

E o Carlinhos entrava, divino e maravilhoso…

E continua divino e maravilhoso em nossa memória, Carlinhos, Zé Bita, Betha Pickles, José Carlos de Souza Neves, difícil e doce amigo.

* Texto originalmente publicado na coluna “Questões Musicais” do site da Revista Piauí no dia 28 de maio de 2012

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