O “Catedrático do Samba” completa 78 anos e permanece o mesmo garoto selelepe do samba sincopado. Depois de relativo ostracismo nos anos 1980, volta a ter prestígio
No dia 2 de junho de 2012, o sambista Germano Mathias completa 78 anos. Mas ninguém diz. Camisa estampada, sapado “couro de chupa-cabra” e chapéu de aba estreita, ele continua o mesmo garoto serelepe do samba sincopado apelidado de Catedrático do Samba. Filho de pai carioca e mãe paulista, Germano nasceu no bairro do Pari e se iniciou no samba nas rodas de engraxates do centro velho da cidade. Quando o movimento começava a cair, eles batucavam na caixa e levavam o samba, que atraía os tradicionais frequentadores da região: marreteiros, entregadores e biscateiros. Fã do samba carioca, que ouvia no rádio, frequentador das escolas de samba e cordões do Bixiga e da Barra Funda, Germano foi contratado pela Rádio Tupi, em 1955, depois de se apresentar em um programa de calouros da emissora (À Procura de Um Astro). O sucesso na rádio o credenciou a figurar no filme “O Preço da Vitória” (1956), de Oswaldo Sampaio, ao lado de Joel de Almeida, Inezita Barroso e outros atores e cantores consagrados. Em 1956, lançou seu primeiro disco, com a polêmica e politicamente incorretíssima “Minha Nega na Janela” (parceria com Doca), em que cantava:
Minha nega na Janela
Diz que está tirando linha
Êta nega tu és feia
Que parece macaquinha
Olhei pra ela e disse
Vai já pra cozinha
Dei um murro nela
E joguei ela dentro da pia
Quem foi que disse
Que essa nega não cabia?
Hoje, seria preso e enquadrado em vários artigos de variadas leis. Embora não seja filho de pai assustado, Germano prefere evitar problemas e não canta mais a música nem que lhe paguem. O samba foi o carro-chefe de seu primeiro LP, lançado em 1957, Germano Matias, o “Sambista Diferente”, cujo título revelava sua forma irreverente de cantar o sincopado acompanhando-se de uma latinha de graxa e imitando um trombone com a voz, o que lhe valeu no registro em carteira na rádio Tupi a informação de que era cantor e tocador de “instrumentos exóticos”. A latinha ele não toca mais, desde que se machucou em um acidente (Serelepe, o septuagenário Germano achou um jeito de cair do palco durante um show do Projeto Pixinguinha, em São Luís do Maranhão e teve de colocar três pinos no ombro). O primeiro álbum lhe valeu o prêmio Roquete Pinto, o mais importante do rádio e TV naquela época, e abriu-lhe o caminho para o segundo disco, “Em Continência ao Samba”, com aquele que seria um de seus maiores sucessos, “Guarde a Sandália Dela” (em parceria com Sereno). Germano também ficou marcado pela gravação de poderosos sambas de Zé Kéti, como “Nega Dina”, “Malvadeza Durão” e Roberto Piva, como o clássico “Tem Que Ter Mulada”.
Em 1959, lançou mais dois discos, “Malvadeza Durão” e “Malandro de Araque”, e cantou no filme “Quem Roubou Meu Samba?”, uma comédia musical no gênero das chanchadas, dirigido por José Carlos Burle e Hélio Barroso, com participação de Ankito, Marlene e Angela Maria. Nos anos 60, foi contratado da TV e da rádio Record, teve programa na TV Paulista (Nosso ritmo é sucesso) e lançou novos álbuns (“Ginga no Asfalto”, 1962; “Samba de Branco”, 1966; “O Catedrático do Samba”, 1967). Na década seguinte, perdeu um pouco do espaço no cenário musical para o “sambão jóia” e outros ritmos da moda. Mesmo assim gravou diversas marchinhas carnavalescas em álbuns solo ou em “paus de sebo”, aqueles discos caça-níqueis com diversos artistas dividindo as faixas. Mas continuou fiel às suas origens, relançando velhos sucessos e novos sambas sincopados, em álbuns como “Samba é Comigo Mesmo” (1971), “Germano Mathias” (1974), “Antologia do Samba-choro” (1978) em que divide as faixas com Gilberto Gil. Germano sempre foi o rei da caitituagem, a arte da divulgação sem jabaculê (divulgação paga). Invadia redações e estúdios de rádio levando embaixo do braço seu último lançamento e atormentava colunistas e programadores que, vencidos pelo cansaço ou rendidos ao seu talento, não deixavam de lhe reservar um pouco do espaço cada vez mais disputado pela indústria fonográfica.
Depois de passar os anos 80 em relativo ostracismo, voltou a ser prestigiado e vive hoje um instante de reconhecimento. “Eu me agarro a esses bons momentos com unhas e dentes. Agora, com mais unhas do que dentes, porque esse aqui, ó, eu perdi na semana passada”, brinca. No final dos anos 90 participou da antologia História do Samba Paulista, do selo CPC-Umes. Depois de gravar os CDs “Talento de Bamba” (2002) e “Talento do Samba” (2004), em 2005 lançou o disco “Tributo a Caco Velho“, em homenagem ao seu ídolo e modelo de interpretação, de quem mantém um retrato na parede de seu apartamento da CDHU, no bairro paulistano da Brasilândia. Foi com o sambista gaúcho que ele aprendeu a cantar o samba “malandreado”. Em 2007, o pianista Guilherme Vergueiro produziu seu DVD “Ginga no Asfalto”, com participação do trombonista Raul de Souza.
Há dois anos, participou do projeto “O Samba Pede Passagem”, em que relembrou os velhos sucessos do baiano Waldeck Artur de Macedo, o Gordurinha (1922-1969), uma produção do compositor Eduardo Gudin com direção de Livia Mannini. Hoje, Germano tem um show estruturado no embalo da Copa da África do Sul, Futebol e Gafieira, no qual canta músicas relacionadas ao esporte das multidões, como “Bola de Meia”, de Nerino Silva e “Samba Rubro-Negro”, de Wilson Batista e Jorge Castro.
* Julio Cesar de Barros é editor-sênior de VEJA, onde publicou a coluna “Passarela” no site da revista com perfis de artistas, crítica de livros e discos, roteiro de escolas de samba e shows musicais, de Osesp a samba. Aos poucos, vai migrando esse conteúdo para seu blog, o Música Boa do Brasil. Este texto foi atualizado e republicado em 26 de março de 2012 e originalmente na VEJA.com em 27 de setembro de 2010
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