Escrita por Chico Buarque e encenada por José Celso Martinez Corrêa, a peça musical “Roda Viva” (1968) sofreu na carne as navalhadas do Brasil sob ditadura civil-militar. Poucos meses antes da decretação do Ato Institucional No 5 (AI-5), em julho de 1968, o teatro paulista onde era encenado foi invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O elenco foi humilhado e espancado. Em setembro, o horror se repetiu após uma única apresentação em Porto Alegre, desta vez por ação direta do Exército brasileiro. Em 13 de dezembro, o AI-5 sacramentou definitivamente a mão pesada da censura sob o país.
Depois de 43 anos e de todos os percalços vividos por “Roda Viva”, quem resta em guerra com o texto é seu próprio autor, cujos olhos azuis Zé Celso gostaria de ter colocado no cartaz da peça, boiando numa posta sangrenta de fígado. Como relatei em reportagem publicada no jornal “O Estado de S. Paulo”, Chico interditou o texto da peça e não permite que ela seja reencenada no circuito comercial.
As razões da guerra particular só o próprio artista poderia desanuviar – e, por razões para mim misteriosas, ele gosta cada vez menos de responder perguntas. Para o Brasil, é (ou deveria ser) perturbador constatar que, nesse caso, o censurado virou o (auto)censor.
Nos acostumamos às atitudes do supostamente “alienado” Roberto Carlos, que, por transtorno obsessivo-compulsivo ou descompromisso político não apenas não canta mais “Quero Que Vá Tudo Inferno” como fez mutilar a reedição de um disco de Nara Leão que continha a música. Ao longo das décadas, o “Rei” já clamou pela censura de um filme de Jean-Luc Godard, expurgou a palavra “mal” de suas canções (e depois voltou atrás), proibiu a reedição de seu primeiro e hoje obscuro LP, abortou reportagens do jornal “Notícias Populares” e tirou de circulação a biografia “Roberto Carlos em Detalhes”(2006), de Paulo Cesar de Araújo.
A autocensura de Chico, tomado como herói de esquerda e sempre proclamado como o artista brasileiro mais perseguido pela censura nos anos 1970, soa mais desconcertante. Não só os “alienados”, mas também nossos heróis mais conscienciosos tentam por vezes apagar o próprio passado? Quando são eles que o fazem, perdoamos com maior tolerância que se fosse um general ou um cantor de iê-iê-iê?
A fúria censora de Roberto Carlos é célebre, e eu apostaria que tem muito a ver com TOC. Chico, que se saiba, mandou para o limbo “apenas” uma obra – simplesmente a peça-símbolo de 1968, que hoje Zé Celso considera uma antecipadora de “Hair” (orgulho teatral-musical dos hippies estadunidenses). Gilberto Gil, libertário tropicalista de 1968, mirou-se no conluio de Roberto com um juiz-cantor-fã, e fez brecar uma biografia não-autorizada que estava em curso. Certamente há muitos mais exemplos.
Uns entes públicos vetam-se a si próprios (eventualmente vetam, junto, um trecho da história do lugar de onde vêm). Outros se abatem sobre tentativas alheias, por se acreditarem donos e controladores únicos do que produziram para a fruição pública (e para a própria subsistência). Não são “só” eles. De um jeito ou de outro, todos nós (nos) cesuramos (e aos outros).
Por controverso que seja o assunto, é preciso notar o momento inédito – e positivo – que vivemos. No auge da ditadura, a sociedade outorgou a cidadãos fardados e burocratas a tarefa de determinar o que NÓS podíamos (ou não) encarar em termos ideológicos, políticos, comportamentais. Como se fôssemos incapazes, uma comissão decidia em nosso lugar nossa vontade política e nossos “bons” costumes.
Vários estudiosos (como o historiador Gustavo Alonso, autor do fundamental ensaio “Simonal – Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga”, que a editora Record publicou ano passado, após grande relutância) chamam atenção para um fato desconcertante: arrefecida a censura oficial, na virada dos anos 1970 para os 1980 e adentro, o governo federal recebia toneladas de correspondências de cidadãos “indignados” – que exigiam MAIS censura, e não menos. Como indaga Gustavo, seria mesmo esse povo “vítima” de uma ditadura forçada?
Da redemocratização para cá, a censura institucional desmoronou no Brasil – devagar e muito aos poucos, mas desmoronou. O Estado ainda intervém aqui e ali, e produz desastres e/ou aberrações vez por outra (pense no Pinheirinho, na Cracolândia, em Belo Monte, na Favela do Moinho, na USP, no Big Brother Brasil). No mais das vezes, entretanto, cada um tem de decidir sozinho o que pode tolerar e o que o escandaliza. E tem, acima de tudo, de arcar com as consequências de seus ímpetos e atos libertários e/ou censuradores.
Vale para qualquer um de nós: eu, você, Roberto Carlos, Chico Buarque, a presidenta do Brasil, o papa. E não deixa de ser perturbadoramente eloquente que, mortas e enterradas as tesouras censoras “oficiais” da outrora famosa dona Solange Hernandez & seu pares, Chico Buarque se tenha se convertido no censor oficial de “Roda Viva”.
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