O Brasil caminha para frente a passos largos, e essa é uma constatação que os não-tolos já encampam com facilidade, sem resistências e com júbilo. No Brasil de 2010, um festival de rock que procura beliscar a mitologia de Woodstock o faz sob os discursos da ecologia e da sustentabilidade – eis um ganho indelével, indubitável. O SWU trouxe em sua embalagem um mundo de materiais recicláveis, telhados verdes, banhos de sete minutos e cápsulas para coletar cinzas de cigarro – é um imaginário sedutor, fascinante mesmo, e não há de causar mal nenhum a uma juventude na qual não há descamisados nem caras-pintadas.

Eu estive lá, e aqui nos meus labirintos passei o tempo todo confrontando o SWU com o Woodstock que não conheci, e, também, com o maravilhoso filme “Aconteceu em Woodstock”, do maravilhoso cineasta Ang Lee, que me fez quase morrer de nostalgia pelo que não vivi. E, tenho de confessar, na maior parte do tempo me senti mais longe de Woodstock que jamais estive. Mas tampouco posso negar: foi uma experiência perturbadora, a começar mesmo pelo termo “sustentabilidade”, que esteve em todas as bocas na Itu de 9, 10 e 11 de outubro, mesmo quando em tom de zombaria salpicada de desconforto (e orégano, outro condimento onipresente no SWU).

De volta ao começo: o Brasil avança em passos firmes rumo ao futuro, mas por isso mesmo é preciso estar atento e forte (não temos tempo de temer a morte), é preciso processar joios e trigos (e recolher cada bago do trigo, e decepar a cana, e conhecer os desejos da terra…). É preciso (e prazeroso) reconhecer os progressos e reconhecer também os retrocessos que procuram puxar os pés dos progressos da superfície para os subterrâneos. É preciso tentar (ao menos tentar) separar o que é “novo” nesse dia que vem vindo do que é slogan, marketing, disfarce, fundamentalismo, obscurantismo, conservadorismo pintado em verniz verde-água.

Na “Revista Sustentabilidade”, Silvia Dias demarcou brilhantemente o que está em jogo, no texto “SWU expõe as contradições de quem vê sustentabilidade como oportunidade de marketing”. Vou tentar não repetir os argumentos de Silvia, mas acho que, sim, também tenho algumas observações a acrescentar.

Inclinado a certo grau de messianismo religioso, como costuma acontecer em qualquer festival (e em quase todo show) de rock, o SWU foi um espetáculo de alma branca, mesmo quando vestida sob os uniformes-padrão da multidão de camisas-pretas que cultuam as bandas mais “pauleira”. Para um jornalista trabalhando na cobertura do evento, foi duro ter de passar, a cada minuto, por cordões de isolamento e paredes de segurança compostos quase sempre e quase integralmente por homens (e umas tantas mulheres de porte masculino) negros. Fernando Anitelli, d’O Teatro Mágico, declarou, perante um descampado verde, imenso e aparentemente improdutivo, que é impossível falar sobre sustentabilidade sem falar sobre agricultura familiar e reforma agrária – e eu, embriagado pelos bastidores e pelas muralhas de serviços, acrescento: é impossível falar sobre sustentabilidade sem sequer arranhar o tema da desigualdade racial brasileira. O discurso pode até ser verde, mas nós somos brancos-amarelos-negros-etc. – nós somos cor de carne.

Verde é a moda, e no SWU nem parecia que estamos no meio de uma campanha eleitoral neste país habitado por Rainhas (barbudas) da Idade da Pedra e pela Fúria Contra o Sistema (filmada pela Globo, desde que sem rebelião e, principalmente, sem o boné do Movimento dos Sem-Terra – “quem é MST?”, perguntou pelo Twitter um neoverde mais afoito). Recordei minha irmã mais velha, que me repreendia quando eu tinha 16 anos, por ficar vidrado na tela global do primeiro Rock in Rio, poucos dias antes da (des)aprovação da emenda pelas eleições diretas. Em 2010, à beira da alternância de poder no Brasil, esse foi um tema-tabu no SWU – pouco ou nada se falou sobre eleição, não houve camisetas de Dilma Rousseff (eu trouxe a minha, mas não tive coragem de usar), nem de José Serra (existem camisetas de José Serra?), nem de voto nulo, nem nada. Nem da verdejante Marina Silva.

Mas, ah, sim, nós somos cor de carne – negra, amarela ou branca. O rock’n’roll é um fenômeno pálido, louro e atlético, se tomarmos como parâmetro a escalação ideológica do SWU – longe vai o tempo em que Jimi Hendrix, negro como as noites que não têm luar, se despedia do rock e da vida lambendo as guitarras lamacentas de Woodstock. O ecopopcapitalismo autossustentável ensaia um “novo” discurso, mas no backstage (e mesmo sob os holofotes) flerta, namora e trepa com o velho status quo de sempre – aquele que clama que bolsa-família é esmola assistencialista, que cotas universitárias para negros são racismo ao contrário, que a mulher presidenciável é reencarnação abortiva do satanás, que homossexuais assacam heterofobicamente o pobre Marcelo Dourado.

O status quo pode vociferar contra as cotas, mas é praticamente contumaz das cotas. No panteão de estrelas do SWU, houve cotas mínimas para negros (BNegão – quem mais?), mulheres (a “doce” Regina Spektor, a “sensual” Joss Stone), minorias sexuais (Cansei de Ser Sexy – quem mais?), nordestinos (Mombojó), minorias etárias e/ou de porte físico (Pixies), gente “independente” (O Teatro Mágico, o palco Oi – oi? – praticamente inteiro).

Existe algo mais selvagemente capitalista que um festival feito por e para machos-adultos-brancos-sempre-no-comando? O que significa à vera o verniz verde-Marina (mulher, negra, nortista, evangélica), diante de tanto hambúrguer, tanta latinha, tanto copinho de plástico, tanta “very important people”, tanto óleo diesel na estradinha vicinal de poeira, tanta mais-valia? No camping “premium”, as mulheres tinham oito chuveiros, dos quais quatro funcionavam; no camping “ralé”, o self-service do refeitório começou custando R$ 40 e terminou custando R$ 20), e assim a roda-gigante girava…

Mas o que significa à vera o “movimento” liderado por Eduardo Fischer se, como bem lembrou Flávia Durante, o megaempresário ultracapitalista autossustentável atende também pela conta transgênica da Monsanto? O que aqui é Marina Silva (o que em Marina Silva é Marina Silva?), o que aqui é “Avatar”? Quanto do discurso verde é verde mesmo, quanto é cobertor para mais e mais autoritarismo, capitalismo, clientelismo, patrimonialismo, TFPismo?

São perguntas complexas à espera de ser respondidas, e certamente serão intrincadas e estratificadas as respostas. Sob graus maiores ou menores de cinismo e pragmatismo, é preciso voltar ao ponto de início: pode até parecer que não, mas temos avançado, crescido e amadurecido, sim, a passos fortes. Se você chegou até o último parágrafo deste texto, mesmo depois de se rebelar contra a chatice desse discursinho “politicamente correto” pró-negro/mulher/homossexual/nordestino/sem-teto/sem-terra, acrescento umas últimas afirmações. Uma nação fraca, enrustida, é feita por cidadãos mal-assumidos – por serem índios, negros, mulheres, homossexuais, gordos, magros, viralatas etc. etc. etc. Uma nação que se ama e se respeita é construção de um festival de indivíduos que se (auto)amam e se (auto)respeitam, se (auto)aceitam e se (auto)sustentam. Começa por nós mesmos. Ou, como disse BNegão, você é parecido com aquilo que critica. Ou, mais ou menos como disse Fernando Anitelli: Com você… Você mesmo!!! Ou ainda, como disse eu outro dia ali no Twitter, eu sou sempre parte daquilo que critico.

(P.S.: Dedico este texto a mim mesmo e a muitas pessoas que saberão se reconhecer – entre elas, à educadora @GabiDioguardi.)

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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