Alienado que estou ultimamente, fui todo desavisado assistir ao documentário “Alô, Alô, Terezinha”, de Nelson Hoineff, sobre o Chacrinha. E voltei feliz da vida, por várias razões.
É fácil quando se trata de uma história espetacular, protagonizada por um personagem fenomenal. Mas não se trata só disso. Minha impressão satisfeita é de que a montagem, a edição e o trabalho jornalístico por trás do filme (vejo aqui na Wikipedia que Hoineff é um figurão da televisão, mas confesso que não sei nada sobre ele) são tão formidáveis quanto o material em que se apoiam.
Seguir os raciocínios por trás das emendas entre os muitos depoimentos é tão fértil (e divertido) quanto acompanhar os incidentes surreais que acontecem diante da câmara (a asa delta que atropela Biafra quando ele canta “voar, voar, subir, subir”, conhecida por todo mundo, é só uma delas). Toda uma outra história (senão a mesma) é contada ali, nas entrelinhas, de modo particularmente talentoso.
Outra intervenção que me agrada muito é a de dar voz eloquente a personagens anônimos (ex-calouros, ex-chacretes etc.) do estranho mundo de Chacrinha, tanto quanto à galeria de artistas que passaram por suas garras, uma galeria absurda de tanta diversidade.
Baby Consuelo (ou melhor, Do Brasil), faz um rasante daqueles em “Alô, Alô, Terezinha”, entremeando a fala amalucada pró-Deus com o canto diabólico de tão bom (quando é que a gente vai reconhecê-la como uma das maiores intérpretes da nossa história, tanto com os Novos Baianos como em fase solo, hein?). Fábio Jr., Fafá de Belém, Agnaldo Timóteo, tudo é de encher os olhos e os ouvidos.
Mas, por improvável que pareça, não é nos “famosos” que o filme se apoia. Os momentos protagonizados por ex-calouros e ex-chacretes são emocionantes, e concedem ao documentário um tom moderno à beça, com cara de anos 2010 (OK, talvez o artifício seja mera reprodução do que Chacrinha já fazia em mil-novecentos-e-antigamente, mas não faz mal nenhum se isso significar que ele, sim, Chacrinha, tosco e grotesco como era, era moderno à beça em mil-novecentos-e-antigamente).
Imagino que o tratamento dado aos “perdedores” da história (ou seja, calouros e chacretes, exceto a genial Rita Cadillac) provoque urticária nas hostes politicamente corretas (das quais sou adepto em grande medida, e não tenho vergonha nenhuma de assumir). Mas eu lançaria a hipótese contrária: Hoineff respeita bastante os “perdedores”, ou pelo menos os respeita muito mais que representantes das camadas “pensantes” que vivem(os) jurando “defender” os desassistidos.
O filme os mostra, os expõe na carne, como eles são, misturados a “famosos”, “bem-sucedidos” e diretores escrotões de TV – ou seja, insinua, naquelas entrelinhas de que eu falava, que os que foram não são muito diferentes dos que poderiam ter sido. Malucos são os periféricos fluminenses nos quais o filme se atira com afinco, malucos são e eram os artistas, maluco era Chacrinha.
Maluco? Malucos? O pernambucano Alceu Valença dá a melhor das pistas na narrativa, ao observar que o pernambucano Chacrinha nada mais era que a adaptação televisiva dos “velhos” gaiatos condutores dos pastoris pernambucanos – tipo o Pastoril do Velho Faceta (não sei se é pernambucano, é?), em que Maria Alcina se apoiou para emplacar nacionalmente “É Mais Embaixo” e “Calor na Bacurinha”. Arte de povo, de arena, de praça pública, portanto.
E acrescento, porque não é dito explicitamente no filme: o imaginário de Chacrinha era o dos pastoris e era também, em igual intensidade, o do circo, o do circo tão desprezado e marginalizado pelas classes “pensantes” de hoje e de ontem. O circo, provam os especialistas, é pai da MPB, do cinema, do rádio, da TV, da imprensa (de toda indústria cultural-informativa, enfim); todo mundo que trabalhava em circo migrou para esses outros meios quando entrou em decadência o depois rejeitado pai-patrono-patriarca-esfarrapado. E Chacrinha, assisto em “Alô, Alô, Terezinha”, era a mais perfeita extrapolação do circo para a televisão.
O que me ficou rondando a cabeça, revendo aquele caos organizado, é que os programas do Chacrinha eram uma ilha de democracia encravada dentro de um Brasil entupido de ditadura e autoritarismo. Eles eram também, evidentemente, uma das faces da ditadura e do autoritarismo (que o digam Russo, Big Boy e as chacretes), especialmente na fase “global”, mas esse outro lado, divergente daquele, é geralmente negado e varrido para baixo do tapete por gente graúda das classes médias para cima, da ditadura midiática para baixo.
Mesmo autoritário, Chacrinha furava o bloqueio e expunha o Brasil como ele era justamente na tela da famigerada Rede Globo. Mesmo tacanho em termos musicais, levava a música brasileira adiante de modo extremamente plural e democrático, sem distinguir Ney Matogrosso de Nelson Ned ou Chico Buarque de Agnaldo Timóteo.
Por sinal, Timóteo, ex-motorista de Angela Maria, é respeitado no documentário à mesma medida que é respeitado, por exemplo, Gilberto Gil, e aqui se repete nessa outra esfera o mesmo reposicionamento de forças que o filme promove entre “famosos” e “anônimos”, “bonitos” e “feios”, “ricos” e “pobres” [o mesmo reposicionamento que está havendo na “vida real”, acrescento posteriormente]. Não sei se há gente irritada com o filme, mas se houver, eu apostaria que é por aí, muito mais pela inserção do “povo” no panorama que por uma suposta reação protetora ao dito cujo “povo”. O choro de Agnaldo Timóteo é outro desses momentos emocionantes do filme de que eu falava.
É por isso que acho e digo que é moderno à beça.
Um último comentário, que “Alô, Alô, Terezinha” fez vir à tona no meu já combalido coraçãozinho. Eu passei a infância e a adolescência assistindo ao Chacrinha na TV Globo. Odiava Chacrinha, me incomodava com ele, praguejava contra o desrespeito com que tratava os calouros. Mas assistia. Todo sábado eu estava lá [por que será?, indago posteriormente]. E uma das sensações que me provocou rever todas aquelas cenas (meu Deus do céu, eu não sabia como me lembrava do figurino tipo urso-polar-tropicalista de Baby Consuelo!) foi um certo lamento por não ter usufruído sem tantos melindres daquela quantidade brutal de talentos (“famosos” e “anônimos”) que passavam sem parar diante do nariz de batata do palhaço-faceta-Chacrinha (e do meu).
E isso me faz pensar, algo desconcertado, da música e na cultura que se produzem no Brasil de 2009. Será que vou demorar mais uns 30 anos para aceitá-la e reconhecê-la?
(Observação mais ou menos inédita: tenho um compromisso estourando aí, e publico assim mesmo, sem releitura nem revisão; a releitura será feita depois, e a revisão também, se necessária; quem quiser me buzinar, portanto, eis aqui um ótimo momento!) (Observação posterior, às 16h45 de 9 de novembro: arremedei uma coisinha aqui, outra ali, nada muito grave, além do que destaco nestes itálicos.)